sexta-feira, 18 de abril de 2014

Tchékhov diante da verdade

          Em uma carta datada de 1900, o escritor russo Anton Tchékhov —  em quem sempre me apoio para pensar a literatura — diz a um amigo: "Nunca se deve mentir. A grandeza da arte reside no fato de que ela não admite a mentira. É possível mentir no amor, na política, na medicina; é possível enganar as pessoas e até mesmo Deus, mas na arte é impossível mentir". 

          As palavras de Tchékhov me servem de bússola. Eu as pesquei em "Sem trama e sem final", reunião de alguns de seus pensamentos sobre a escrita organizado por Piero Brunello (Martins Fontes). Elas me ajudam a pensar. Em um momento no qual muitos escrevem "para o mercado", "para as listas de best sellers", ou "para a crítica", ou "para os prêmios" — são tantos os desvios! — é importante refletir a respeito do que seja escrever para si mesmo. O que significa buscar a verdade pessoal, tal qual Tchékhov aconselha. 

          Antes de avançar, detenho-me em outra carta, de doze anos antes, escrita ao amigo Aleksei Plechtvhéiev. Diz Tchékhov, com a franqueza que sempre o caracterizou: "Não sou nem liberal, nem conservador, nem progressista, nem monge, nem indiferencista. Queria ser um artista livre, mais nada, e lamento Deus não ter me dado forças para isso". Todos temos nossos limites, e Anton Tchékhov tinha os seus. Mas seu objetivo maior foi sempre o mesmo: escrever para tornar-se dono de si. 

          É comum, em minhas oficinas literárias, encontrar alunos que chegam cheios de projetos alheios a si mesmos. Seguir tal moda. Tal tendência consagrada. Atingir o sucesso com rapidez. Corresponder aos desejos da família escrevendo uma biografia do pai ou do avô. Em resumo: guiar-se por padrões externos. A verdade, para um escritor, é interna. É acessar aquela voz interior que lhe diz isso, e não aquilo. Que o leva a pensar numa coisa, e não e outra. Seguir obsessões, manias, idéias fixas que o assediam e o importunam sem parar. Ser fiel àquelas fantasias, narrativas, imagens, sensações que carrega dentro de si. "Cair em si" — este deve ser o objetivo do escritor, e só assim 
ele chegará a uma escrita singular e verdadeira, seja ela qual for. 

          Não existem, portanto, regras, normas, protocolos. De nada adiantam apostilas recheadas de truques e fórmulas do "bem escrever". Por isso também me parecem inúteis, senão negativas, as provas, avaliações, notas, classificações. Quando converso com um aluno sobre um texto que me deu, não interessa saber o que penso do texto, mas o que o aluno busca com seu texto. O desejo está no centro do ato da escrita e ser fiel a seu desejo é o primeiro passo para quem deseja se aproximar da verdade. 

          Em mais uma carta, a seu editor Aleksei Suvórin, datada de1890, Tchékhov diz: "Eu vi tudo; portanto, a questão agora não é o que eu vi, mas como vi". Tchékhov foi sempre um grande defensor da escrita realista. Isso está em suas cartas também. Mas a escrita realista não é o mesmo que fazer fotografia. Que abster-se, ausentar-se, esquivar-se, na esperança de que, "mecanicamente", a realidade surja por si mesma. A realidade não aparece por si mesma. A arte não é realidade, mas ronda da realidade. O que interessa, nos diz Tchékhov, não é "o que", mas "como".
 
          Claro — e Tchékhov ele mesmo se lamenta disso —, ninguém chega "inteiramente" a si. A escrita é uma ronda. Uma ronda em torno da verdade, que sempre nos escapa, pelo menos em grande parte. A busca de si é uma busca fadada ao fracasso. Podemos dizer que este fracasso — esta sobra, esse resto de verdade — é a literatura. Trata-se, por isso mesmo, de uma luta interminável. Mas é na luta que a escrita se produz. A escrita "é" a luta. Um escritor verdadeiro não é um escritor que sabe tudo, mas alguém que busca sem cansar sua própria (e limitada) forma de saber.
 
José Catello
(www.oglobo.com.br/blogs/aliteraturanapoltrona/josecastello/06-02-2014)
 
*Sugestão de postagem do amigo Adauto Neto
 

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