Ironia climática: em meio a uma das maiores estiagens da nossa História, estreia no Brasil o filme “Noé”, sobre o Dilúvio.
Noé, filho de Lameque, é uma das figuras mais controvertidas da Bíblia. Na verdade, a Bíblia mal começa e já nos apresenta seus dois personagens mais intrigantes, Caim e Noé.
É evidente, pelo que se lê em Gênesis, que Deus tinha outros planos para Caim, não o de ser o primeiro vilão e o primeiro desterrado do mundo, mas um dos fundadores da aventura humana sobre a Terra.
Deus amaldiçoa Caim com uma marca que o identifica como assassino do seu irmão, mas também o protege dos vingadores de Abel (“Qualquer que matar a Caim”, avisa o Senhor, “sete vezes será castigado”) e permite que ele se case (até hoje nenhuma exegese da Bíblia conseguiu explicar de onde, de que criação paralela, saiu a mulher de Caim) e procrie, e construa uma cidade, a que dá o nome do seu primogênito Enoque, e inicie uma prole que incluirá Jabal, “pai dos que habitam em tendas e têm gado”, e Jubal, “pai de todos que tocam harpa e órgão”.
Nada mal para um fratricida: acabar como patriarca, construtor de cidades e precursor da pecuária e das artes. Abençoado por Deus, pode-se dizer, com a marca da maldade.
Se o Deus da Bíblia camuflou seu apoio a Caim, não há nada ambíguo na sua escolha de Noé e família para sobreviverem ao Diluvio, que viria para acabar com a vida de todos, salvo os poupados, sobre a face da Terra. “Porque me arrependo de os haver feito”, disse, textualmente, o Senhor. Dá-se pouca atenção a essa segunda criação que parte do arrependimento.
O Dilúvio é um grande gesto de autocrítica do Senhor. Transforma todo o relato bíblico, de Adão e Eva até então, na descrição de um fracasso, de uma primeira tentativa frustrada. Por que Noé, de cujas virtudes pouco se sabe, foi o escolhido para construir a arca e se salvar do Dilúvio, é uma questão que deve ter intrigado até a Noé. É difícil imaginar que Deus tenha apelado para o uni-duni-tê.
A explicação da Bíblia para o arrependimento de Deus começa com uma acusação genérica: “Aconteceu que, como os homens começaram a se multiplicar sobre a face da Terra, lhes nasceram filhas. E viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas e tomaram para si mulheres de todas as que escolheram.” Nasceu aí a corrupção que desagradou ao Senhor (As mulheres, sempre as mulheres).
É claro que Deus poderia ter simplesmente optado por criar mulheres menos formosas e tentadoras, para não desencaminhar os homens, em vez de apelar para a superprodução do Dilúvio — mas aí não teríamos uma boa história.
Luis Fernando Veríssimo é escritor
Fonte: Blog do Noblat
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