sábado, 24 de novembro de 2018

Unanimidade burra

Nelson Rodrigues é autor de frases brilhantes. Um dos maiores fazedores de frases da nossa língua, juntamente com Millôr Fernandes, Paulo Leminski, Guimarães Rosa, Glauco Mattoso, Otto Lara Resende... 

Não apenas a frase sentenciosa, que exprime um conceito redondo, impactante: “Nem toda mulher gosta de apanhar, somente as normais”. Mas a frase-incompleta, que precisa vir apensa a um texto maior, mas dá-lhe um colorido e significado inconfundíveis: “o olho rútilo e o lábio trêmulo” é uma imagem rodriguiana que serve para descrever o personagem tomado por uma emoção incontrolável, seja a luxúria, a raiva, a cobiça.
Uma das frases mais desperdiçadas pelos que o citam, no entanto é o famoso “toda unanimidade é burra”. 

Eu diria que toda frase que tem o formato “todo x é y” é burra, mas esse tiro-no-pé tautológico me força a equacionar a coisa de outra forma. 

Frases com o formato “todo x é y” não exprimem uma verdade científica (uma verdade exterior à mente que a enuncia, uma verdade verificável por terceiros), nem mesmo uma opinião definitiva do autor. 

Frases assim são explosões, desabafos, e não é por lhes faltar um ponto de exclamação que são menos exclamativas. Podem até não ser verdade, mas são algo que o autor pensou por impaciência num certo instante e resolveu explodir.
O problema com esse formato de frase é que esse é o modelo preferido de enunciado para a afirmação de preconceitos: todo baiano é preguiçoso, todo árabe é terrorista, todo russo joga bem xadrez... 

Nelson disse sua frase (quanto quer de aposta?) porque era um insatisfeito em seu estado normal e um revoltado em momentos mais intensos. Gostava de ser do contra, de desafinar o coro dos contentes. Se dez pessoas juntas tivessem a mesma opinião ele via nisso um sinal de preguiça mental, de passividade, de obediência cega, de mentalidade admirável-gado-novo.
O problema, hoje, é que quando um livro faz sucesso e começa a ser elogiado logo aparece alguém proclamando: “Esse filme não pode prestar, porque toda unanimidade é burra”. Se todo mundo em volta concorda quanto a um fato recente no País, surge alguém para dizer que essa interpretação é burra, valendo-se de Nelson. 

Nelson era um ressentido cósmico, um existencialmente inadaptado, um Seu Lunga sem paciência para com a estupidez e a mesquinharia humanas. Na ditadura, ele, um conservador, via-se ilhado em redações aguerridamente esquerdistas e oposicionistas. Individualista até o tutano, não queria nenhum grupinho dizendo-lhe o que pensar. 

Discordo muitas vezes de suas idéias, mas hoje, quando ele começa a virar unanimidade nacional, é preciso a todo custo defendê-lo da burrice alheia.

Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo 

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