1
Eu me lembro das “Espirais Sentinela”, aquelas verdinhas,
de espantar muriçocas. Elas vinham em envelopes de papel com as instruções do
lado de fora, e vinham em forma de duas espirais encaixadas dentro uma da outra.
Eram quebradiças como biscoitos; um grande teste de coordenação motora e
sintonia fina digital era tirar uma espiral de dentro da outra sem quebrá-las,
apertando-as em direções opostas. Depois eram encaixadas num suportezinho de
metal cuja ponta entrava no “olho” da serpente, pois o formato da espiral era o
de uma serpente cuja ponta do rabo era lá-fora e no centro terminava na
“cabeça”, com um pequeno orifício onde entrava a pontinha metálica do suporte.
A sentinela queimava lentamente ao longo da noite, soltando um cheiro acre com
o qual a gente se acostumava sem muito esforço, como ocorre com cheiro de um
móvel velho ou de uma parede úmida; e de manhã a gente acordava e corria para
ver os pedacinhos de cinza cor de flicts caídos no chão, reproduzindo
toscamente a espiral sólida original.
2
Eu me lembro de uma mendiga que pedia esmolas
quando eu tinha dez ou doze anos. Ela ficava parada, ali perto da catedral, ou
na calçada da Maciel Pinheiro, olhando para a frente, apenas com a mão
estendida, sem se mexer, sem falar nada. Tinha uma deformação que não sei se
era doença ou um acidente, que tinha destruído a parte inferior do rosto dela, uma
espécie (não sei direito, eu afastava a vista) de cicatrizes de onde brotavam
dentes em diferentes direções. Ela usava sempre um chapéu de palha, era uma
criatura inofensiva, sofrida, silenciosa, mas vê-la era uma coisa que fazia uma
punção na minha manhã de sol.
3
Eu me lembro
que quando eu tinha vinte e poucos
anos estava numa festa lá no Centenário, o antigo bairro de Casa de
Pedra, a
cerveja rolou solta, eu enchi a cara, e depois da meia-noite empreendi o
retorno a pé de volta para o Alto Branco, o lar paterno, “o meu primeiro
e virginal
abrigo”, diria o poeta. Lembro que vim por ali, uma noite escura e
silenciosa, e
ao chegar na esquina da Rua da Independência com a Nilo Peçanha subi por
esta,
cruzei a Praça Félix Araújo trocando as pernas, a cabeça zunindo de
álcool, mas
mantendo a moral. O importante é manter a moral. Quando cheguei na Rua
João
Pessoa a subida da ladeira cobrou seus dividendos e eu sentei no batente
de uma
loja, na rua escura e silenciosa. Séculos depois alguém bateu no meu
ombro e eu
abri os olhos para ver um carro da polícia todo piscando, um cara parado
junto
dele, e outro debruçado sobre mim, dizendo, “Ei véi, tás bom? Tás
vivo?”. Eu
fiquei de pé, me apoiando na parede, e disse: “Sim, sim, tou, parei só
pra
descansar.” Ele me olhou a cara, os olhos: “Tu mora aonde?” Apontei a
direção: “No Alto Branco.” Ele disse: “É bom tu ir pra casa, não fica
aqui não.” Eu dei alguns passos na
direção do carro e ele me deu um empurrão, meio de farra: “Oxente, tá
pensando
que a gente vai lhe levar, é? Vai a pé, rapaz, vai curtir tua cana”. Eu
fiz um
sinal de tudo-x e cheguei em casa a pé.
4
Eu me lembro de um amigo meu que morava perto da
subida para o Alto Branco e que dava umas festas à fantasia. Os pais viajavam
algumas vezes por ano, em passeios de casal; e ele e os irmãos ficavam por
donos da casa. Todos na faixa dos vinte e cinco anos, o que nunca é bom sinal.
Uma vez a avó materna estava passando um tempo lá e o jeito foi levá-la para o
quarto de empregada, deixar tudo confortável e trancá-la ali, para que o barulho
da festa não a incomodasse, e de fato ela só foi extraída do claustrofóbico
aposento dois dias depois, quando os pais voltaram da viagem e perguntaram pela
pobre.
5
Eu me lembro de uma madrugada em que saí num fusca
com dois amigos, e algum de nós três estava levando no carro uma imensa cabaça
decorada de enfeites de decapê, uma volumosa e leve peça de artesanato que estava
sendo conduzida para uma exposição, ou sendo devolvida dela, mas nesta noite
cismamos de fazer serenatas para as respectivas namoradas, e de repente
estávamos debaixo de uma chuvinha irritante, num bairro remoto, todos três
caindo de bêbados, eu tocando violão e cantando abrigado embaixo de um telheiro
na parede de uma bodega, e eles dois no meio da rua, abraçados ao enorme cabaço,
um de cada lado, dançando valsa sob a chuva enquanto eu cantava: “E não há nada
pra comparar / para poder lhe explicar / como é grande / o meu amor / por
você...” É uma canção aconselhável para
momentos assim: permite elevar a voz e trazê-la pra bem baixinho, conforme
necessário; tem acordes simples, só erra quem quiser; e a letra sempre rende
dividendos psicológicos. Voltamos ensopados de chuva dos pés à cabeça.
6
Eu me lembro que quando eu era menino meu pai
torcia pela candidatura de Newton Rique a prefeito, e minha mãe pela de
Severino Cabral. A gente morava na rua Miguel Couto, e oceanos de gente
passavam diante das nossas janelas, rumo ao Açude Velho, rumo aos terrenos
vazios em volta, onde se armavam comícios que ninguém esquece. Lembro que os
partidários de Newton chamavam a turma de Cabral de “pé-de-chumbo”, e os outros
retrucavam chamando-os de “mão de seda”. Uma imagética que ainda não se
invalidou. E quando a gente ia para os comícios de Newton, no momento
culminante da noite, quando ele chegava finalmente ao microfone para falar, ele
começava assim: “Campinenses amigos...”
E esse bordão produzia uma explosão de
gol, era uns cinco minutos de orquestra em brasa e com Vassourinhas falando no centro.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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