domingo, 30 de setembro de 2018

O "Grande Sertão" e a canção de Siruiz

Um dos elementos simbólicos recorrentes do Grande Sertão: Veredas é a “canção do Siruiz”, uma cantiga entoada pelos jagunços, que não sai da memória de Riobaldo, e é evocada várias vezes por ele ao longo da narrativa.
A cantiga é composta das estrofes abaixo, que na minha opinião são uma mistura de versos anônimos e versos de Rosa:
Urubu é vila alta,
mais idosa do sertão:
padroeira, minha vida –
vim de lá, volto mais não...
Vim de lá, volto mais não?...
Corro os dias nesses verdes,
meu boi mocho baetão:
buriti – água azulada,
carnaúba – sal do chão...
Remanso de rio largo,
viola da solidão:
quando eu vou p’ra dar batalha,
convido meu coração...
Esta é a versão que é citada pela primeira vez no livro (págs. 114-115; todas as citações são da 2ª. edição, 1958).
Quando acontece isso? Riobaldo está recordando a primeira vez que avistou Joca Ramiro (seu futuro chefe guerreiro; e pai de Diadorim), bem como os lugares-tenentes deste, o Ricardão e o Hermógenes. Os futuros vilões do romance.
É um episódio de quando Riobaldo, menino, já está morando na fazenda de seu padrinho Selorico Mendes (que depois entendemos ser seu pai biológico). Batem à porta, de madrugada. Riobaldo pula da cama, mas o padrinho já está botando para dentro de casa meia dúzia de homens encapotados, de chapelões desabados no rosto, armas, esporas tilintando. Jagunços em pé de guerra.
O padrinho manda fazer café, e começam as conversas. Joca Ramiro e os jagunços querem abrigo e esconderijo para a tropa, por um dia. Começam a ser tomadas providências, e o menino Riobaldo, olhos muito abertos, não perde nada daquilo. Vai servir de guia; e caminha na escuridão com os homens, até onde está a tropa.
De repente, de certa distância, enchia espaço aquela massa forte, antes de poder ver eu já pressentia. Um estado de cavalos. Os cavaleiros. Nenhum não tinha desapeado. E deviam de ser perto duns cem. Respirei: a gente sorvia o bafejo – o cheiro de crinas e rabos sacudidos, o pêlo deles, de suor velho, semeado das poeiras do sertão. (p. 113)
A tropa é maciça, escura e surdamente ruidosa, faz um barulho “que nem o dum grande rio”. O menino se impressiona, vê mais os cavalos que os homens, aos poucos distingue no escuro os chapéus, os rifles. E começa a guiar os cavaleiros rumo ao arrancho; e é aí que o jagunço Siruiz canta aqueles versos.
Um dado interessante da canção do Siruiz é que no romance ela geralmente está associada às enumerações dos jagunços. Em termos de roteiro de cinema, ela seria a “Canção Tema da Horda Guerreira”. Basta comparar:
Anos depois, nas págs. 165-166, vem a enumeração dos guerreiros no parágrafo começando por “Permeio com quantos, removido no estatuto deles...”  E logo depois, pág. 168, surge o refrão da cantiga, quando Riobaldo descobre, no susto, que Siruiz foi morto em combate. Ensinam-lhe então
...outra, que era cantiga de se viajar e cantar, guerrear e cantar, nosso bando, toda a vida:
Olerereeêe, bai-
ana...
Eu ia e
não vou mais:
Eu fa-
ço que vou lá dentro, oh baiana,
e volto
do meio
p’ra trás...
E é com esse refrão que Guimarães Rosa retoma o tema recorrente de seu primeiro livro, Sagarana, a ida e a volta, “for a walk and back again” como diz uma das epígrafes da obra.
Note-se que existe uma melodia subentendida, a meu ver, indicada pelo escritor com essas quebras de palavra entre uma linha e outra. Um recurso frequente de letristas querendo deixar claro um salto melódico, um hiato, uma quebra qualquer na dicção oral. (Em outras edições que consultei, essa disposição gráfica é modificada; com alguma perda, acho.)
E observe-se também que o “oh baiana” é responsório tradicional de um milhão de cantigas da tradição oral. (Quem não lembra Alceu Valença – “Pois eu tenho um espelho cristalino, oh baiana... / Que uma baiana me mandou de Maceió, oh baiana...”)
(desenho de Guimarães Rosa, com sugestões para o ilustrador Poty)
Outra enumeração de peso, a mais longa do livro, é a que surge nas páginas 301-303, a partir do parágrafo “Aí o senhor via os companheiros...”. São dezenas de nomes, numa verdadeira enumeração homérica, que a crítica já comparou com o famoso “Catálogo das Naves” do Livro 2 da Ilíada.
E antes de recordar cada nome (seguido de uma frase breve retratando o antigo companheiro), Riobaldo (pág. 300) conta que num momento de solidão lembrou da cantiga de Siruiz e compôs para a melodia dela esses versos “sem razoável valor”:
Trouxe tanto este dinheiro
o quanto, no meu surrão,
p’ra comprar o fim do mundo
no meio do Chapadão.
Urucuia – rio bravo
cantando à minha feição:
é o dizer das claras águas
que turvam na perdição.
Vida é sorte perigosa
passada na obrigação:
toda noite é rio-abaixo,
todo dia é escuridão...
Não é casual a menção ao “fim do mundo”.  A esta altura, os crimes imperdoáveis já aconteceram; e o bando está em perseguição aos “hermógenes”, com sede de vingança.
E há mais uma enumeração, à pág. 511, quando os bandos convergem um sobre o outro, preparando a batalha final do Paredão. Riobaldo volta a lembrar, nome por nome, os jagunços, a quem chama comovido de “irmãos meus”, “meus filhos”, no parágrafo que se inicia com “Todos. E, todos, tinha vez eu achava que queria-bem o meu pessoal...
Mas a batalha final se aproxima, e Riobaldo sabe disso: “E, veja, se vinha, eu comandei: – “É guerra, mudar guerra, até quando onça e couro... É guerra!...” E ele recorda de novo a canção do Siruiz:
Olererê
Baiana...
Eu ia
e não vou mais...
Eu faço
que vou
lá dentro, ó Baiana:
e volto
do meio
p’ra trás!  (pág. 513)
Como se a cada vez que Riobaldo “passasse as tropas em revista” na memória ouvisse de novo a canção daquela madrugada em que ele viu pela primeira vez o seu destino futuro, a vida de jagunço, e o corte mortal entre Joca Ramiro e o Hermógenes.
A canção surge num momento mágico, de infância. O menino é tocado pela dimensão épica e cavalariana da vida jagunça. E sempre que a tropa desfila na sua lembrança, retorna a cantiga; e quando ele evoca a cantiga, esta traz à tela da memória a tropa.
A letra da canção traz camadas superpostas de significado. O “faço que vou, mas não vou” é o drible, é o negaceio, a quebrada inesperada com que o jagunço ilude perseguidores.
Ao mesmo tempo, é um aviso inconsciente de Riobaldo de que ele tantas vezes larga uma missão pela metade, desiste ou hesita na hora de definir.
Também é uma espécie de Paradoxo de Zenão: antes de chegar ao ponto X eu tenho que regredir a um ponto anterior, e assim sucessivamente. Uma armadilha lógica que evoca também a armadilha social em que o jagunço Riobaldo está preso: eu quero casar com uma mulher e ser fazendeiro em paz, mas antes eu tenho que matar algumas dezenas de criminosos que mataram meu chefe.
Naquele trecho da pág. 168, quando ele descobre que Siruiz morreu, ocorre-lhe que agora aquela canção inicial está sendo preservada nele, Riobaldo. Mais do que as próprias canções dele próprio:
Pois foi – que eu escrevi os outros versos, que eu achava, dos verdadeiros assuntos, meus e meus, todos sentidos por mim, de minha saudade e tristezas. Então? Mas esses, que na ocasião prezei, estão goros, remidos, em mim bem morreram, não deram cinza. Não me lembro de nenhum deles, nenhum. O que eu guardo no giro da memória é aquela madrugada dobrada inteira: os cavaleiros no sombrio amontoados, feito bichos e árvores, o refinfim do orvalho, a estrela-d’alva, os grilinhos do campo, o pisar dos cavalos e a canção de Siruiz. Algum significado isso tem?
Porque o terceiro sentido, mais psicológico, mais metafísico, é o da ida e volta da memória em si. Tema evocado por Ariano Suassuna quando chama o seu próprio “Grande Sertão” de Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue de Vai e Volta. A memória indo e vindo, como lançadeira de tear, para não deixar que as vidas (as canções) se percam. 
 
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo 

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