Você começa quando aprende a juntar as letras; faz frases engraçadinhas
que seu avô acha gênio e mostra a todo mundo. Então você se convence
de que é escritor. Essa convicção representa um compromisso, desde
aquela idade remota, "já que é um escritor, é obrigado a escrever".
Se os pais são medíocres intelectualmente, o exercício da suposta
vocação torna-se fácil.
Mas quando os pais são ou literatos ou simples letrados muito mais
lhe é exigido. Você tem que apresentar originalidade ao lado da qualidade.
Isso quer dizer que você, desde esses inícios, já padece a maldição
do escritor: ter estilo e ideias animando esse estilo. Em geral, os
pais se embasbacam diante de qualquer manifestação intelectual precoce
dos filhotes. Se eles não têm formação intelectual sofisticada, tudo
bem. Qualquer paráfrase dos livros da escola já lhes parece excelente.
Mas pais sofisticados é fogo. Não precisa nem que eles leiam os modernos,
Drummond, Guimarães Rosa, Cecília Meireles, para só citar os mais
ilustres e defuntos. Pai letrado quer que o filho faça pequenas frases,
emita conceitos, tudo dentro da baixa qualidade que a sua literatice
considera excelente. Portanto, para a qualidade da obra do filho,
é melhor que os pais não tenham fumaças literárias e deixem que o
menino seja o seu próprio juiz.
E, se ele tiver talento, pode ir longe, liberto dos padrões da mediocridade
doméstica. Esse tipo de condenação não se pode fazer aos pais que
realmente ou produzem ou pelo menos sabem apreciar uma boa peça literária.
O filho, em geral, esconde deles as suas primícias, receoso do julgamento.
E ele se faz censor de si mesmo, olhando com os olhos do pai aquilo
que o pai não vê. Existe ainda outra maneira de ver estimulada a vocação
literária dos jovens. É uma casa aberta onde todo mundo lê, o bom
e o ruim, mas onde igualmente todo mundo tem direito à crítica, a
falar o que pensa sobre a produção de pais, irmãos, tios e visitas
íntimas, numa espécie de tribunal literário exercido à mesa de jantar.
Lembro-me da casa de Aníbal Machado, ponto obrigatório dos principiantes
ou recém-chegados que lá iam (levados por algum "freguês" semanal
de Aníbal).
Sendo o dono da casa quem era, além de excelente escritor ele próprio,
um animador generoso e um fino crítico de letras, a sua casa era uma
espécie de fórum literário, referência obrigatória de quem pretendia
se apresentar como escritor: "Ainda no domingo, na casa do Aníbal,
ouvi o Vinícius dizer ao Conde que o modernismo morreu..." e se desmentindo
a si próprio acabava mostrando o seu último poema - fina flor do modernismo,
claro.
Mas voltando ao assunto da vocação literária: para escrever, tem
que haver o dom da escrita, tal como para o cantor é preciso o dom
da voz. Todos conhecemos pessoas inteligentes, até brilhantes na sua
especialidade - medicina, arquitetura, engenharia, economia e, na
verdade, por mais sabedores que sejam no seu ofício, não conseguem
exprimir na palavra escrita essa sabedoria. Deus sempre é parco na
concessão de dotes: os que acumulam são sempre contados. Por que as
boas cantoras líricas geralmente têm tendência a engordar? E por que
as de bela silhueta quase sempre só dispõem de um fio mal afinado
de voz?
Os grandes oradores dificilmente são bons escritores. Parece que
eles necessitam do estímulo de uma audiência cativa para suas frases
de efeito. O que desencadeia o seu talento não é uma página de papel
em branco, mas uma audiência presente. E, pensando bem, isso está
certo: por que um único indivíduo pode receber juntos os dons da escrita
e da eloquência? Eu, por mim, sempre espero descobrir nos outros os
dons ocultos pela modéstia ou timidez. Verdade que nem sempre tenho
êxito; Nosso Senhor parece que só distribui tais dotes com a mão esquerda...
Raquel de Queiroz
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