Naquela
noitinha ninguém falava alto. Não havia motivo para comemoração, mas a
mesa estava cheia, assim como os copos. Era um ambiente triste; a
maioria ali tinha estado no velório de um companheiro que deixou uma das
cadeiras vazias — havia uma constatação evidente, mas que todos se
recusavam a falar: estamos frequentando demais o cemitério.
O
finado era querido por todos, presença assídua nos encontros semanais,
vibrante, bom humor inoxidável — à prova de chuva e de sol. Era quem
organizava os bolões mensais da turma, sempre na última semana, fazia as
cobranças, escolhia e conferia os números. Não dá para dizer que era
sortudo: nunca fizemos nem uma quadra.
Ironicamente,
era quem marcava o tempo para falar de doenças. Quando alguém puxava o
assunto, avisava que começava a contar meia hora; quem não falasse dos
males do corpo naquele espaço de tempo teria de esperar até a outra
semana. E completava a cronometragem sempre da mesma forma: “Chega, que
ninguém morreu!”
Doutor Bosco, que é de outra
roda, de outro boteco, costuma dizer que, se, depois dos 50 anos, alguém
acordar sem alguma dor, é porque está morto. Mas ninguém ali esperava
que aquela dorzinha incômoda nos quadris que fazia com que ele se
levantasse para buscar as garrafas no balcão o tempo todo fosse evoluir
para algo tão grave.
Não vou usar minha meia
hora para falar de doença. Mas há um tipo diferente de pesar quando
falta alguém à mesa; companheiro de bar não necessariamente é amigo, não
são pessoas que se frequentam, que envolvem familiares. São distintos,
mas trocam confidências (algumas até que nem deviam ser trocadas). Há
uma ligação que pode ser confundida com cumplicidade; afinal, bar é
refúgio.
Ele era um desses íntimos estranhos,
que não negava uma conversa sobre qualquer assunto, mesmo os mais
espinhosos, como naquela vez que alguém bebeu demais e confessou que não
se interessava mais por mulheres — não chegou a dizer que passou para o
outro lado do campo, não evoluiu no assunto, que, afinal, não era da
conta de ninguém, mas foi o agora falecido que evitou falatório depois
que o rapaz saiu.
Vai fazer falta, mas
certamente não será sempre lembrado. Não teve a fortuna do “seu”
Coqueiro, bandolinista que ganhou uma foto grande na parede do bar n’O
Grao — o que há algum tempo evoluiu para um grande mural com o desenho
do rosto dos músicos mais assíduos no estabelecimento.
Havia
a curiosidade de saber o que havia vitimado o homem que, se não parecia
uma fortaleza, enfrentou mais de sete décadas de vida com galhardia e
altivez. Era boêmio conhecido, amante da música e das mulheres, jogador
de sinuca e bom de gole. Dizia que não podia reclamar da vida, contava
histórias que pareciam ter saído de um poema de Bocage.
O
único medianamente doutor da mesa é um dentista; o resto só podia
especular. Foi quando o decano decretou para terminar a discussão:
“Vocês não enxergam o óbvio: ele morreu de excesso de vida”.
Paulo Pestana
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