quarta-feira, 4 de abril de 2018

Geraldo Vandré e o reino que não tem rei

O compositor Geraldo Vandré tem voltado a visitar a Paraíba. Desde o Fest Aruanda de cinema até a realização, dias atrás, de um concerto onde fez uma participação especial. O espetáculo teve a pianista Beatriz Malnic, o violonista Alquimides Daera, a Orquestra Sinfônica e o Coro Sinfônico da Paraíba, com arranjos de Jorge Ribbas.

A imprensa tem falado nele o tempo todo. Engraçado que é sempre descrito como “o compositor de ‘Caminhando’”, e somente uma ou outra vez alguém se lembra de algum outro título, como “Disparada”.

Nada contra “Caminhando”, que já devo ter cantado mil vezes em mesas de bar, mas a obra de Vandré, desconhecida pela maioria dos mais jovens, vai muito além deste arrebatador hino de protesto. Vi uma vez numa revista a foto de Vandré na histórica apresentação no Maracanãzinho, com a legenda: “Ele compôs a ‘Marselhesa’ e não sabia”. Foi mais ou menos isso.


Na minha vida de espectador à distância, só vi dois cantores fazerem o Maracanãzinho inteiro cantar junto, em delírio, e saíram do palco consagrados: Geraldo Vandré e Wilson Simonal. É, amigos, a glória é o namoro entre a mariposa e a lamparina.

Vandré era um poeta visceralmente político (me refiro àquela época), sempre foi de esquerda mas, curiosamente, não era este o lado que me seduzia em sua obra. (Falo por mim, apenas.) Era o lado épico, cavalariano, de um Sertão que ele raramente nomeava mas que estava presente nos arroubos de uma coragem-de-arma-na-mão, na batalha do samurai solitário contra um inimigo dez vezes mais numeroso.

Talvez tenha sido o fato de que conheci Vandré acompanhando a vitória de “Disparada” naquele festival da Record, onde seus versos (e a espantosa melodia do esquecido Théo de Barros) arrancavam todo mundo da cadeira, para bater com a cabeça no teto e cair aplaudindo de pé.


Vandré encarnou naquele momento o espírito cavaleiro, embandeirado, ético e épico que Ariano Suassuna clamava como sendo uma das vertentes mais fortes de nossa cultura simbólico-literária, desde José de Alencar até Guimarães Rosa. O reino que não tem rei.

Julgar a obra de Vandré por “Caminhando” é como julgar a de Chico Buarque por “Apesar de Você” e mais nada. (Vou logo avisando que as considero duas ótimas músicas, independente dos defeitos que tenham.)

Cobra-se às vezes de Vandré, aos 82 anos, a repetição dos slogans que bradava aos 30. Ele não quer, e tem todo direito. Se quisesse bradá-los, teria o mesmíssimo direito. Neste caso, estaria sendo criticado pela turma do outro lado.

O que percebo, principalmente nos sessentões da minha geração, que estavam despertando para a discussão política na época em que Vandré tocava em todas as rádios, é que Vandré foi para muitos destes uma espécie de guia. Tinham-no como um porta-voz, um profeta, um líder. Quando ele abdicou dessas funções, deixou órfãos muitos que o seguiam.

Para muito jovens de hoje, a obra de Geraldo Vandré se resume a “Caminhando”, o que é uma grande injustiça para com um compositor rico, variado, que explorou numerosas formas musicais, numerosos territórios poéticos.

Mesmo os que endeusam “Caminhando” por ser uma canção de protesto estariam muito mais bem servidos se parassem para ouvir com atenção suas verdadeiras canções de protesto, que são canções brabas, daquelas de riscar faca no cimento e chamar pra briga.

Muito mais protesto do que em “Caminhando” existe em “Aroeira”:

Vim de longe, vou mais longe,
quem tem fé vai me esperar;
escrevendo numa conta
pra junto a gente cobrar
num dia que já vem vindo
que este mundo vai virar.

Noite e dia vem de longe
branco e preto a trabalhar;
e o dono senhor de tudo
sentado mandando dar,
e a gente fazendo conta
pro dia que vai chegar.

Marinheiro, marinheiro,
quero ver você no mar!
Eu também sou marinheiro
eu também sei governar!
Madeira de dar em doido
vai descer até quebrar:
é a volta do cipó de aroeira
no lombo de quem mandou dar.

Era assim Geraldo Vandré cantando ao vivo:


Curiosamente, não foi essa canção belicosa e desafiadora que fez a fama protestadora de Vandré, e sim o hino singelo em dois acordes com que ele levantou o Maracanãzinho:

Pelas ruas marchando indecisos cordões
ainda fazem da flor seu mais forte refrão
e acreditam nas flores vencendo o canhão.

É uma canção de pacifismo hippie, que hoje me lembra, com certa nostalgia, as matérias da TV sobre as manifestações florais e psicodélicas da Califórnia dos anos 1960.

“Caminhando” consagrou Vandré como o Guru do Protesto.  A canção ficou um pouco como aquele jogador obscuro de um time cheio de craques a quem cabe fazer o gol do título. Craque mesmo, em termos de canção de protesto, era “Cantiga Brava” a parceria entre Vandré e Guimarães Rosa, da trilha sonora de A Hora e a Vez de Augusto Matraga (1966) de Roberto Santos:




Uma letra como essa em plena ditadura militar equivalia a um passaporte para o camburão. Foi com versos vigorosos assim que Vandré incrementou o seu cacife político diante de uma juventude politizada e insatisfeita, ansiosa por um guia, por alguém que colocasse em sua boca as palavras que eles não acertavam a juntar sozinhos. Quando “Caminhando” soou no Maracanãzinho, foi a gota dágua. O salto qualitativo, como dizíamos.

Mas quando aos 18 anos li essa letra pela primeira vez, pensei: “Ôxe, é só isso?”  Contrapor flores a canhões, e rimar um troço em “ão” do começo ao fim me pareciam recursos fraquinhos, e não mudei de opinião até hoje.  “Caminhando” é uma má canção, por causa disso? De jeito nenhum.

Quando uma canção fica, quando se encrava no zero-cartesiano de seu momento histórico, ninguém a arranca mais. A canção entrou no mesmo vagão de “Blowin’ in the Wind” de Bob Dylan, de “Le Déserteur” de Boris Vian, de “Vozes da Seca” de Zé Dantas e Luiz Gonzaga. Resume uma época e um estado de espírito, e contam-se nos dedos os compositores capazes disto.

Ninguém pergunta hoje em dia pelas canções de amor de Vandré, que são lindíssimas, além de serem (como a crítica musical registrou na época) canções de amor graves, profundas, sem o lirismo açucarado de tantas coisas (mesmo boas) da Bossa Nova, sem os diminutivos fáceis, sem a bonequização da mulher amada.

“Quem Quiser Encontrar o Amor”:


As canções de amor de Vandré são introspectivas, sempre pisando na risca entre a paixão e o desespero; um belo contraponto aos versos aconchegantes e juvenis de tantas belas canções daquele tempo.

“Pequeno Concerto Que Virou Canção”:


Acho sempre um erro reduzir a obra ampla e variada de um artista ao seu maior sucesso nas praças, ou à música “que ganhou o festival”, ou a uma eventual marselhesa

A melhor maneira de homenagear um artista de que gostamos é tentar conhecer o máximo possível de suas obras, comparar umas com as outras, permitir que elas se iluminem e se questionem entre si, entender por que motivo o cara que foi capaz de fazer a obra “A” fez também a obra “B” que não tem nada a ver com ela... Um artista não é uma cigarra-de-porta que emite sempre o mesmo som quando é pressionada. Cada manifestação criativa de um artista é diferente das anteriores.

Cada estrela é importante em si. Mas se é o artista que queremos conhecer, temos que olhar os desenhos possíveis de constelação que se pode traçar entre as obras diferentes, variadas, contraditórias, até mesmo antagônicas, que ele criou. E “o artista” nunca é simplesmente aquela pessoa de carne e osso. O artista é uma terceira coisa, é o resultado do confronto entre aquela pessoa e o tempo que lhe foi dado viver sobre a Terra.

E aqui, na TV Câmara de João Pessoa, a entrevista que Vandré concedeu a André Cananéa, e que foi ao ar nesta segunda-feira, dia 26 de março. Tem “canjas” do italiano Sérgio Endrigo e de Joan Baez cantando “Caminhando”; e Vandré recita os versos que fez para a bandeira da Paraíba.



Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo

Nenhum comentário: