O compositor Geraldo Vandré tem voltado a visitar a
Paraíba. Desde o Fest Aruanda de cinema até a realização, dias atrás, de um concerto
onde fez uma participação especial. O espetáculo teve a pianista Beatriz
Malnic, o violonista Alquimides Daera, a Orquestra Sinfônica e o Coro Sinfônico
da Paraíba, com arranjos de Jorge Ribbas.
A imprensa tem falado nele o tempo todo. Engraçado que é
sempre descrito como “o compositor de ‘Caminhando’”, e somente uma ou outra vez
alguém se lembra de algum outro título, como “Disparada”.
Nada contra “Caminhando”, que já devo ter cantado mil
vezes em mesas de bar, mas a obra de Vandré, desconhecida pela maioria dos mais
jovens, vai muito além deste arrebatador hino de protesto. Vi uma vez numa
revista a foto de Vandré na histórica apresentação no Maracanãzinho, com a
legenda: “Ele compôs a ‘Marselhesa’ e não
sabia”. Foi mais ou menos isso.
Na minha vida de espectador à distância, só vi dois
cantores fazerem o Maracanãzinho inteiro cantar junto, em delírio, e saíram do
palco consagrados: Geraldo Vandré e Wilson Simonal. É, amigos, a glória é o
namoro entre a mariposa e a lamparina.
Vandré era um poeta visceralmente político (me refiro
àquela época), sempre foi de esquerda mas, curiosamente, não era este o lado
que me seduzia em sua obra. (Falo por mim, apenas.) Era o lado épico,
cavalariano, de um Sertão que ele raramente nomeava mas que estava presente nos
arroubos de uma coragem-de-arma-na-mão, na batalha do samurai solitário contra
um inimigo dez vezes mais numeroso.
Talvez tenha sido o fato de que conheci Vandré
acompanhando a vitória de “Disparada” naquele festival da Record, onde seus
versos (e a espantosa melodia do esquecido Théo de Barros) arrancavam todo
mundo da cadeira, para bater com a cabeça no teto e cair aplaudindo de pé.
Vandré encarnou naquele momento o espírito cavaleiro,
embandeirado, ético e épico que Ariano Suassuna clamava como sendo uma das
vertentes mais fortes de nossa cultura simbólico-literária, desde José de
Alencar até Guimarães Rosa. O reino que não tem rei.
Julgar a obra de Vandré por “Caminhando” é como julgar a
de Chico Buarque por “Apesar de Você” e mais nada. (Vou logo avisando que as
considero duas ótimas músicas, independente dos defeitos que tenham.)
Cobra-se às vezes de Vandré, aos 82 anos, a repetição dos
slogans que bradava aos 30. Ele não quer, e tem todo direito. Se quisesse
bradá-los, teria o mesmíssimo direito. Neste caso, estaria sendo criticado pela
turma do outro lado.
O que percebo, principalmente nos sessentões da minha
geração, que estavam despertando para a discussão política na época em que
Vandré tocava em todas as rádios, é que Vandré foi para muitos destes uma
espécie de guia. Tinham-no como um porta-voz, um profeta, um líder. Quando ele
abdicou dessas funções, deixou órfãos muitos que o seguiam.
Para muito jovens de hoje, a obra de Geraldo Vandré se
resume a “Caminhando”, o que é uma grande injustiça para com um compositor
rico, variado, que explorou numerosas formas musicais, numerosos territórios
poéticos.
Mesmo os que endeusam “Caminhando” por ser uma canção de
protesto estariam muito mais bem servidos se parassem para ouvir com atenção
suas verdadeiras canções de protesto, que são canções brabas, daquelas de
riscar faca no cimento e chamar pra briga.
Muito mais protesto do que em “Caminhando” existe em
“Aroeira”:
Vim de longe, vou mais longe,
quem tem fé vai me esperar;
escrevendo numa conta
pra junto a gente cobrar
num dia que já vem vindo
que este mundo vai virar.
Noite e dia vem de longe
branco e preto a trabalhar;
e o dono senhor de tudo
sentado mandando dar,
e a gente fazendo conta
pro dia que vai chegar.
Marinheiro, marinheiro,
quero ver você no mar!
Eu também sou marinheiro
eu também sei governar!
Madeira de dar em doido
vai descer até quebrar:
é a volta do cipó de aroeira
no lombo de quem mandou dar.
Era assim Geraldo Vandré cantando ao vivo:
Curiosamente, não foi essa canção belicosa e desafiadora
que fez a fama protestadora de Vandré, e sim o hino singelo em dois acordes com
que ele levantou o Maracanãzinho:
Pelas ruas marchando indecisos cordões
ainda fazem da flor seu mais forte refrão
e acreditam nas flores vencendo o canhão.
É uma canção de pacifismo hippie, que hoje me lembra, com
certa nostalgia, as matérias da TV sobre as manifestações florais e psicodélicas da Califórnia dos anos
1960.
“Caminhando” consagrou Vandré como o Guru do Protesto. A canção ficou um pouco como aquele jogador
obscuro de um time cheio de craques a quem cabe fazer o gol do título. Craque
mesmo, em termos de canção de protesto, era “Cantiga Brava” a parceria entre
Vandré e Guimarães Rosa, da trilha sonora de A Hora e a Vez de Augusto Matraga (1966) de Roberto Santos:
Uma letra como essa em plena ditadura militar equivalia a
um passaporte para o camburão. Foi com versos vigorosos assim que Vandré
incrementou o seu cacife político diante de uma juventude politizada e
insatisfeita, ansiosa por um guia, por alguém que colocasse em sua boca as
palavras que eles não acertavam a juntar sozinhos. Quando “Caminhando” soou no
Maracanãzinho, foi a gota dágua. O salto qualitativo, como dizíamos.
Mas quando aos 18 anos li essa letra pela primeira vez,
pensei: “Ôxe, é só isso?” Contrapor
flores a canhões, e rimar um troço em “ão” do começo ao fim me pareciam
recursos fraquinhos, e não mudei de opinião até hoje. “Caminhando” é uma má canção, por causa
disso? De jeito nenhum.
Quando uma canção fica, quando se encrava no
zero-cartesiano de seu momento histórico, ninguém a arranca mais. A canção
entrou no mesmo vagão de “Blowin’ in the Wind” de Bob Dylan, de “Le Déserteur”
de Boris Vian, de “Vozes da Seca” de Zé Dantas e Luiz Gonzaga. Resume uma época
e um estado de espírito, e contam-se nos dedos os compositores capazes disto.
Ninguém pergunta hoje em dia pelas canções de amor de
Vandré, que são lindíssimas, além de serem (como a crítica musical registrou na
época) canções de amor graves, profundas, sem o lirismo açucarado de tantas
coisas (mesmo boas) da Bossa Nova, sem os diminutivos fáceis, sem a
bonequização da mulher amada.
“Quem Quiser Encontrar o Amor”:
As canções de amor de Vandré são introspectivas, sempre
pisando na risca entre a paixão e o desespero; um belo contraponto aos versos
aconchegantes e juvenis de tantas belas canções daquele tempo.
“Pequeno Concerto Que Virou Canção”:
Acho sempre um erro reduzir a obra ampla e variada de um
artista ao seu maior sucesso nas praças, ou à música “que ganhou o festival”,
ou a uma eventual marselhesa
A melhor maneira de homenagear um artista de que gostamos
é tentar conhecer o máximo possível de suas obras, comparar umas com as outras,
permitir que elas se iluminem e se questionem entre si, entender por que motivo
o cara que foi capaz de fazer a obra “A” fez também a obra “B” que não tem nada
a ver com ela... Um artista não é uma cigarra-de-porta que emite sempre o mesmo
som quando é pressionada. Cada manifestação criativa de um artista é diferente
das anteriores.
Cada estrela é importante em si. Mas se é o artista que
queremos conhecer, temos que olhar os desenhos possíveis de constelação que se
pode traçar entre as obras diferentes, variadas, contraditórias, até mesmo
antagônicas, que ele criou. E “o artista” nunca é simplesmente aquela pessoa de
carne e osso. O artista é uma terceira coisa, é o resultado do confronto entre
aquela pessoa e o tempo que lhe foi dado viver sobre a Terra.
E aqui, na TV Câmara de João Pessoa, a entrevista que Vandré
concedeu a André Cananéa, e que foi ao ar nesta segunda-feira, dia 26 de março. Tem “canjas”
do italiano Sérgio Endrigo e de Joan
Baez cantando “Caminhando”; e Vandré recita os versos que fez para a bandeira da Paraíba.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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