Nos EUA existem alguns episódios curiosos de confronto entre
o estilo de vida tradicional americano e alguma manifestação randômica do
”Oriente” na vida econômica, política ou cultural dos EUA.
Um deles estou acompanhando pela série Wild Wild Country, na Netflix. É sobre o
choque cultural provocado pela criação, em 1981, de uma comunidade Rajneesh no
Oregon. Os membros da comunidade, de origem indiana, “do nada” compraram ali um
território enorme e montaram um ashram
místico. Atraíram dezenas de milhares de pessoas do mundo inteiro, já fiéis de
carteirinha.
Existe uma mistura de espertezas pessoais e pureza
coletiva nesse movimento que fez Rajneesh em 1981 mudar seu ashram, de uma hora para outra, da Índia
para um vale perdido no Estado do Oregon. Talvez porque, entre belezas
paisagísticas, o Estado permitisse que quaisquer cento e cinquenta pessoas que
compartilhassem tais e tais requisitos pudessem requerer e conseguir
oficialmente a condição de “cidade”. Está (dizem eles) na Constituição.
Os EUA se apresentam ao mundo como a terra onde tudo é
possível, qualquer sonho pode se tornar realidade, onde basta ter dinheiro,
oportunidade e estâmina que o sucesso é garantido.
O ano era 1981, muito menos paranóico no aspecto étnico do
que para os norte-americanos de hoje. De início, a chegada daqueles grupos
coloridos de jovens recebeu certa simpatia e acolhida no Oregon.
Os seguidores de Rajneesh vestem por comum acordo roupas
nos tons de laranja, marrom, lilás, roxo, ocre, variações em torno de uma
tonalidade abstrata (imagino eu) que serve como marco zero, ponto central de
todas as suas variantes coloridas. A imprensa só os chama de “reds”, vermelhos.
Não que a imprensa os achasse comunistas. Eram as teorias
liberais de Rajneesh com relação a sexo que incomodavam os vizinhos, levando-os
a imaginar que aqueles milhares de jovens passavam as noites em orgias
coletivas.
Sheela, a secretária executiva do guru, compara a certa
altura seu ashram com Shangri-La, o
vilarejo perdido no Himalaia onde o tempo parou de passar (Horizonte Perdido, de James Hilton). São inevitáveis os atritos
entre os hillbillies e rednecks locais e aquela rapaziada
loura, florida, hirsuta e colorida, ainda por cima seguindo um profeta oriental.
O documentário (série em 6 episódios, Netflix, dirigida
por Chapman Way e MacLain Way, irmãos) mostra aquela história que conhecemos
tão bem: uma mudança social fortuita coloca de repente, cara a cara, numa
disputa por espaço vital e também por “narrativa”, duas bolhas sociais impermeáveis,
cheias de boas intenções, bons argumentos e boa vontade.
Nenhuma das duas tem condições de entender o pensamento
da outra, porque cada uma está voltada para “a única maneira certa de viver”,
que é a sua. O atrito começa a produzir fagulhas perigosas.
Como tantos grupos de pessoas felizes, pessoas que
conseguem construir um paraíso artificial coletivo, os Rajneesh queixam-se o
tempo todo de que estão sendo vítimas de xenofobia, conservadorismo,
preconceito racial, etc.
Por outro lado, os moradores da cidadezinha ameaçada
dizem que tudo que queriam era continuar a vida que escolheram, num lugar
distante de tudo, habitado por 50 ou 100 pessoas que eles conhecem desde que
nasceram, e não por 10 mil jovens que parecem não tomar banho e vivem numa
festa permanente e ruidosa.
Como diz um dos diretores numa entrevista, “tem horas em
que eu acho que um grupo está totalmente certo, e meia hora depois aparece uma
informação nova e eu começo a achar que quem estava certo era o outro”.
Não é um simples choque entre conservadores e
contestadores, nem entre velhos e jovens, nem entre puritanos e hedonistas.
É o choque (que vemos todo dia, nas redes sociais, na
imprensa, na vida cultural) entre pessoas tão angustiadamente aferradas à sua
maneira de ver que não apenas se recusam a escutar os argumentos do outro lado,
mas farão de tudo para que esse outro lado seja calado para sempre, e que elas
possam continuar a viver no Paraíso Bolha que construíram.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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