O politicamente correto destruiu nossa capacidade de reflexão pública no formato audiovisual
Tive o prazer de rever alguns episódios da primeira temporada da série "House", realizada em 2004 — portanto, 14 anos trás.
Também tive a oportunidade de participar de uma reunião numa grande
produtora de audiovisual, em que analisávamos roteiros de um programa
realizado em 2011. Portanto, sete anos atrás.
Em ambos os casos, uma constatação terrível: de lá pra cá, a censura do politicamente correto destruiu em muito nossa capacidade de reflexão pública no formato audiovisual. Tanto a primeira temporada de "House" quanto os
roteiros discutidos na produtora seriam, hoje, pesadamente censurados
ou cairiam na condição de objetos de linchamento público nas mídias
sociais e nos espaços institucionais.
Os movimentos sociais, sempre de natureza totalitária, desde sua raiz, destruiriam esses conteúdos e seus criadores.
Fala-se pouco disso porque os agentes dessa destruição foram, em sua
maioria, os próprios produtores de conteúdo e suas agências.
Não foi necessário nenhum fascista de fora, bastaram os de dentro mesmo. E um fascista é sempre um bem-intencionado.
Não há espaço mais totalitário do que os equipamentos culturais e seus agentes.
E a história falhou feio em trazer à tona um aspecto essencial de todos
os projetos totalitários desde a Revolução Francesa de 1789 até hoje.
Que aspecto é esse?
A característica essencial —e escondida— de se achar uma instância produtora do bem.
Toda mente totalitária parte do pressuposto de que ela é um agente do bem de todos.
É impressionante o fato de que ainda hoje seríamos capazes de
produzir esquemas de tortura e destruição da liberdade de agir e de
pensar da mesma forma que "irmãos" como Lênin, Hitler, Trotsky ou Stálin
fizeram.
Intelectuais e agentes políticos pregam, ainda que com certa reserva (manipulando o vocabulário), projetos de "violência criadora", fingindo que não estão propondo um massacre dos "contrarrevolucionários".
Mas voltemos ao fenômeno descrito na abertura desta coluna.
Num espaço de 7 a 14 anos, toda uma gama de temas e formulações argumentativas foi, simplesmente, expulsa do debate público.
Você gostaria que eu reproduzisse alguns deles aqui?
Estamos em 2018, e a censura do politicamente correto caça todo mundo o tempo todo.
A coisa piorou muito nos últimos sete anos. Mesmo agentes do Poder Judiciário se juntaram ao esquema destrutivo da liberdade de pensamento no país. Nos EUA, ainda é pior —basta ver a histeria coletiva em Hollywood. Mas —vamos chegar lá— basta observar o comportamento dos ditos "progressistas" nos espaços institucionais.
Não vou reproduzir as formulações argumentativas malditas.
Quando se atua hoje no debate público, sabe-se muito bem que a malta
de censores se traveste de ovelhas por toda parte, sonhando em beber seu
sangue.
O mundo sempre foi povoado por canalhas. Mas, hoje, esses canalhas conseguiram fingir que não existem.
O processo de destruição do pensamento e dos gestos pelo
politicamente correto avança em direção à pura e simples criminalização
destes mesmos pensamentos e gestos.
Eu disse que não iria reproduzir essas formulações argumentativas, mas posso adiantar um dos temas em que regredimos à mais pura e total censura e estupidez
— estupidez essa que deixaria os inquisidores medievais impressionados
com a decisão contemporânea de mentir sobre a realidade a fim de
sustentar uma "doutrina" falsa sobre esta mesma realidade.
Um dos temas que mais sofre ataques dos fascistas de dentro é o universo dos vínculos afetivos entre homens e mulheres.
As mentiras politicamente corretas nessa área são tantas, que os mais
jovens crescem num ambiente crescente de desarticulação dos afetos,
desarticulação essa patrocinada pela mídia, pela arte, pela publicidade,
pela universidade e por muitos praticantes da própria psicologia.
O que pensará alguém do século 22 que venha analisar nossos roteiros de 2018? O futuro pertencerá aos idiotas corretos e aos algoritmos? Serão estes a única esperança de inteligência na face da Terra?
Luiz Felipe Pondé
Pernambucano, é escritor, filósofo e ensaísta. Doutor em filosofia pela USP, é professor da PUC e da Faap.
Folha de S. Paulo
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