sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Existe vida antes da morte

Se o medo de morrer é que faz prosseguir a existência, não se opta pela vida, mas pelo medo. E é pelo medo de viver que se abdica da vida antes da morte.

É bastante recorrente a discursiva sobre a existência de vida após a morte e seus meandros. Esboçam-se os ideais dessa vida depois da morte com afinco, empolgação e detalhes minuciosos. Diga-se de passagem, por vezes, um tanto quanto mirabolantes!

Mas, e a vida antes da morte? Existe? E seus detalhes, minúcias que faz emergir a conceituação de vida? Quem tem a prerrogativa da vida? Ou basta estar vivo para concluir-se abastardo em vida?
Diante de um suicídio, a exemplo, diz-se que houve uma desistência da vida a ponto de abreviá-la antecipando a morte. Porém, será que havia vida antes dessa morte consumada na mostra de evidente brevidade do corpo? Não é possível escolher não nascer nem não morrer, mas é possível escolher continuar vivo, não antecipando a própria morte. No entanto, o que precisa ser alardeado é a árdua e ofuscada realidade de que não optar pelo suicídio, não significa optar pela vida. Se o medo de morrer é que faz prosseguir a existência, não se opta pela vida, mas pelo medo. E é pelo medo de viver que se abdica da vida antes da morte. Nesse temor desmedido e controlador resigna-se desistindo de vivências em isolamentos, em solidão, que extrapola o descanso que a alma pede, ou mesmo numa fuga em estereótipos moribundos. Viver é, ao invés, saber que ter ao lado alguém que ama, cuida, perdoa, estimula, crê, valoriza, suporta, ampara, e diz “vamos, pois pode ser melhor”, é um tesouro.

Nisso vemos os outros através dos nossos olhos de solidão que cria o espetaculoso na vida dos que nos cercam e acabamos por também desejar nos oferecer como espetáculo, comprovando a solidão. Enquanto que na realidade a vida alheia é bem menos espetacular do que imaginamos. Criamos uma imagem para que sejamos amados, mas o amor dirigido a uma imagem não satisfaz o coração.

Escamoteia-se a morte em vida nos excessos que na realidade escondem faltas. E nisso a maior benção é a angústia. Somos angustiados com todos os processos antivida, aflitos para o outro. Quando nos sentimos vulneráveis e indefesos dificilmente conseguimos expressar o que sentimos com palavras, nos defendemos no silêncio. O silêncio do vulnerável e indefeso pode ser cheio de palavras, porque palavras que não expõem nada de nós é outra forma de silêncio.

Somos todos carentes! Há uma medida da nossa força que vem do nosso semelhante. Da percepção de que ilusões, disfarces, escamoteio, não curam feridas nem conferem sentido, brota a angústia. É desesperador! A fé, por instantes, oscila como um pêndulo nervoso entre o pessimismo e a esperança. Contudo, a angústia é momento catalisador da mudança para a vida.

Aprende-se, no afã pela vida em vida, a ser humilde com a própria dor e depois das ilusões da euforia do cio existencial que a falta de significado interior provoca, o coração volta para o seu lugar original, o das coisas pequenas, suficientes e verdadeiras, num caos que possibilita a construção de vivências esbanjadas em sentido. Só então, é possível viver em vida, experienciar vida antes da morte.

Nessa construção que brota do desmoronamento a resposta mais sábia sempre será o enfrentamento da realidade. E o ponto de partida é o reconhecimento da ilusão. A seguir o acolhimento das possibilidades com o cuidado de não subestimá-las com a preguiça entreguista, com uma covardia passiva e negativa. A partir da aceitação da própria fragilidade há que se considerar com acolhimento criativo e gracioso as possibilidades para um viver de verdade. A fraqueza pode ser prodigiosa e criativa. Para o cristianismo, “quando estou fraco é que sou forte, e quando sou forte, fraco”.

É possível pensar na fraqueza não como um ponto final, mas uma vírgula. A fraqueza pode ser abertura para a novidade. A fraqueza pode ser flexibilidade. A fraqueza também pode ser um processo de descoberta do vazio, da precariedade, do nada, mas que potencializa. Um vazio para a potência da vontade. Desistir das expectativas, desarmando a infelicidade. Esperando menos, amando mais. E é no silêncio, da fragilidade criativa, que silenciosamente evocamos e encontramos a quem amamos.

A fraqueza inventiva e graciosa é a chance de não existirmos pelo medo, porque o reconhecemos como um princípio de validação da própria vida. A chance de não termos angústia pela angústia, medo do medo, porque desistimos de uma existência sem dor, sem decepção, sem fraqueza, sem perda. Desistimos da invulnerabilidade e descobrimos que as perdas podem ser ganhos que ampliam as possibilidades. E nisso descobrimos que há vida antes da morte, pois todo enfrentamento da crueza da realidade não é morte enquanto assumimos a existência como sempre potencialidade em viver visceralmente com intensidade. Assumir a fraqueza é não sofrer por sofrer. A fraqueza dá ocasião ao improviso corajoso. Talvez aqui, uma chance maior de não sucumbir às frustrações com a vida que podemos vivenciar.

Nesse percurso de encontrar a vida antes da morte, vamos descobrindo que nada alivia mais o peso de um medo que falar sobre e com o deboche desmistifica-lo. Bem como entender que ser amado por quem só conhece nossas luzes tem um peso diferente de ser amado por quem conhece nossas luzes e sombras. Alçando esse voo de viver incorre-se no risco da condenação, porém o condenável será a liberdade alcançada de viver que em quem condena é reprimida. Experimentar a quebra do automatismo num abraço livre e entregue é saber-se vivenciar um milagre. Enfim, viver é descobrir que não se faz poesia por causa de uma habilidade, mas por desespero, afinal qualquer coisa é sempre outra coisa. Chame isso de belo ou morra, em vida!

*Flávia Gomes é especialista em teologia bíblica, mestre em ciências da religião e graduanda em filosofia.

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