Se o medo de morrer é que faz prosseguir a existência, não se opta
pela vida, mas pelo medo. E é pelo medo de viver que se abdica da vida
antes da morte.
É bastante recorrente a discursiva sobre a
existência de vida após a morte e seus meandros. Esboçam-se os ideais
dessa vida depois da morte com afinco, empolgação e detalhes minuciosos.
Diga-se de passagem, por vezes, um tanto quanto mirabolantes!
Mas,
e a vida antes da morte? Existe? E seus detalhes, minúcias que faz
emergir a conceituação de vida? Quem tem a prerrogativa da vida? Ou
basta estar vivo para concluir-se abastardo em vida?
Diante de um
suicídio, a exemplo, diz-se que houve uma desistência da vida a ponto de
abreviá-la antecipando a morte. Porém, será que havia vida antes dessa
morte consumada na mostra de evidente brevidade do corpo? Não é possível
escolher não nascer nem não morrer, mas é possível escolher continuar
vivo, não antecipando a própria morte. No entanto, o que precisa ser
alardeado é a árdua e ofuscada realidade de que não optar pelo suicídio,
não significa optar pela vida. Se o medo de morrer é que faz prosseguir
a existência, não se opta pela vida, mas pelo medo. E é pelo medo de
viver que se abdica da vida antes da morte. Nesse temor desmedido e
controlador resigna-se desistindo de vivências em isolamentos, em
solidão, que extrapola o descanso que a alma pede, ou mesmo numa fuga em
estereótipos moribundos. Viver é, ao invés, saber que ter ao lado
alguém que ama, cuida, perdoa, estimula, crê, valoriza, suporta, ampara,
e diz “vamos, pois pode ser melhor”, é um tesouro.
Nisso vemos os
outros através dos nossos olhos de solidão que cria o espetaculoso na
vida dos que nos cercam e acabamos por também desejar nos oferecer como
espetáculo, comprovando a solidão. Enquanto que na realidade a vida
alheia é bem menos espetacular do que imaginamos. Criamos uma imagem
para que sejamos amados, mas o amor dirigido a uma imagem não satisfaz o
coração.
Escamoteia-se a morte em vida nos excessos que na
realidade escondem faltas. E nisso a maior benção é a angústia. Somos
angustiados com todos os processos antivida, aflitos para o outro.
Quando nos sentimos vulneráveis e indefesos dificilmente conseguimos
expressar o que sentimos com palavras, nos defendemos no silêncio. O
silêncio do vulnerável e indefeso pode ser cheio de palavras, porque
palavras que não expõem nada de nós é outra forma de silêncio.
Somos
todos carentes! Há uma medida da nossa força que vem do nosso
semelhante. Da percepção de que ilusões, disfarces, escamoteio, não
curam feridas nem conferem sentido, brota a angústia. É desesperador! A
fé, por instantes, oscila como um pêndulo nervoso entre o pessimismo e a
esperança. Contudo, a angústia é momento catalisador da mudança para a
vida.
Aprende-se, no afã pela vida em vida, a ser humilde com a
própria dor e depois das ilusões da euforia do cio existencial que a
falta de significado interior provoca, o coração volta para o seu lugar
original, o das coisas pequenas, suficientes e verdadeiras, num caos que
possibilita a construção de vivências esbanjadas em sentido. Só então, é
possível viver em vida, experienciar vida antes da morte.
Nessa
construção que brota do desmoronamento a resposta mais sábia sempre será
o enfrentamento da realidade. E o ponto de partida é o reconhecimento
da ilusão. A seguir o acolhimento das possibilidades com o cuidado de
não subestimá-las com a preguiça entreguista, com uma covardia passiva e
negativa. A partir da aceitação da própria fragilidade há que se
considerar com acolhimento criativo e gracioso as possibilidades para um
viver de verdade. A fraqueza pode ser prodigiosa e criativa. Para o
cristianismo, “quando estou fraco é que sou forte, e quando sou forte,
fraco”.
É possível pensar na fraqueza não como um ponto final, mas
uma vírgula. A fraqueza pode ser abertura para a novidade. A fraqueza
pode ser flexibilidade. A fraqueza também pode ser um processo de
descoberta do vazio, da precariedade, do nada, mas que potencializa. Um
vazio para a potência da vontade. Desistir das expectativas, desarmando a
infelicidade. Esperando menos, amando mais. E é no silêncio, da
fragilidade criativa, que silenciosamente evocamos e encontramos a quem
amamos.
A fraqueza inventiva e graciosa é a chance de não
existirmos pelo medo, porque o reconhecemos como um princípio de
validação da própria vida. A chance de não termos angústia pela
angústia, medo do medo, porque desistimos de uma existência sem dor, sem
decepção, sem fraqueza, sem perda. Desistimos da invulnerabilidade e
descobrimos que as perdas podem ser ganhos que ampliam as
possibilidades. E nisso descobrimos que há vida antes da morte, pois
todo enfrentamento da crueza da realidade não é morte enquanto assumimos
a existência como sempre potencialidade em viver visceralmente com
intensidade. Assumir a fraqueza é não sofrer por sofrer. A fraqueza dá
ocasião ao improviso corajoso. Talvez aqui, uma chance maior de não
sucumbir às frustrações com a vida que podemos vivenciar.
Nesse
percurso de encontrar a vida antes da morte, vamos descobrindo que nada
alivia mais o peso de um medo que falar sobre e com o deboche
desmistifica-lo. Bem como entender que ser amado por quem só conhece
nossas luzes tem um peso diferente de ser amado por quem conhece nossas
luzes e sombras. Alçando esse voo de viver incorre-se no risco da
condenação, porém o condenável será a liberdade alcançada de viver que
em quem condena é reprimida. Experimentar a quebra do automatismo num
abraço livre e entregue é saber-se vivenciar um milagre. Enfim, viver é
descobrir que não se faz poesia por causa de uma habilidade, mas por
desespero, afinal qualquer coisa é sempre outra coisa. Chame isso de
belo ou morra, em vida!
*Flávia Gomes é especialista em teologia bíblica, mestre em
ciências da religião e graduanda em filosofia.
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