Lembro-me que a primeira vez que li a Bíblia,
por volta dos 13 anos de idade, achava estranho Abrãao, um dos heróis de Deus,
referir-se a si mesmo dizendo "Eu, que sou pó e cinzas...".
Com o passar dos anos, fui cada vez mais
entendendo como esse autorreconhecimento, na verdade, era o passo necessário e
eficiente (como se diz na mais alta filosofia) para o restante do enredo: a
convivência com o Deus de Israel só é possível se você fizer a experiência
"esmagadora" da verdade de si mesmo.
Esse é o preço para se viver ao lado do Santo.
Sendo Ele pleno, e nada resistindo a esta plenitude, a única forma de plenitude
possível aos seu heróis era o reconhecimento de sua própria insuficiência.
Perceber-se insuficiente é uma libertação.
Daí decorre muito do mau entendimento desse
enredo e de seus personagens. A suposta "humilhação" que muitos
pensam ver na relação com o Deus de Israel é apenas fruto de má leitura, ou de
pouca leitura, ou, simplesmente, como diria um dos meus filósofos preferidos,
Santo Agostinho (354-430), "orgulho, revolta e cegueira".
Parece-me que a correta interpretação dessa
confissão de insuficiência presente na imagem de "pó e cinzas" é o
encontro libertador com a humildade. Georges Bernanos (1888-1948), outro autor
que me forma intelectualmente e espiritualmente continuamente, dizia que a
humildade é, de todas as virtudes, a única imbatível.
Abraão, ao se reconhecer como pó e cinzas,
simplesmente, encontrava sua libertação definitiva. A humildade bíblica é a
mais profunda forma de libertação já descrita na literatura ocidental. O
"rochedo da humildade" é imbatível como experiência existencial e
espiritual.
A libertação não habita a boçalidade da
assertividade treinada em workshops movidos a ressentimento "caché"
(em francês, é mais chique dizer "escondido"). Nem tampouco em
fórmulas neurolinguísticas a serviço desse pequeno ditador chamado
"eu". Menos ainda em formas de espiritualidade quântica para consumo.
Diante desse fato, sinto-me um pouco como o
filósofo judeu russo Lev Chestov (1866-1938), que se dizia um ateu convicto de
que a mensagem bíblica é essencial para o conhecimento do lugar do homem em
constante busca de dar sentido a uma vida em si insustentável.
Os ingênuos creem nas mais distintas formas de
"idealismos", como dizia Chestov, contra a monstruosidade da
realidade. "Sofremos a existência" e narrar esse sofrimento talvez
seja a forma mais sublime de sinceridade que alguém que tem como profissão a
escrita pode ter para com seus semelhantes.
Outro russo, filósofo também, Nicolas Berdiaev
(1874-1948), influenciado diretamente por Dostoiévski (1821-1881), como
Chestov, via a aventura espiritual humana como um combate entre o Nada do qual
fomos tirados, e que nos habita intimamente, e a possibilidade de sermos
criadores, como o Criador.
Para isso, a coragem de fugir da
"cotidianeidade" banal é essencial. Essa banalidade se dá por meio de
uma vida vivida com o espírito de rebanho, longe da "aristocracia
espiritual" de que tanto falou Berdiaev, conceito retirado de Nietzsche
(1844-1900), claro.
A vida espiritual como enfrentamento desse Nada,
manifesta-se, entre outras formas, na superação do orgulho moral, traço
clássico das almas ressentidas, incapazes de reconhecer o "nada do
pecado" em si mesmas. Ao contrário do que prega nossa vã teologia da autoestima
espiritual, o pecado é um dos conceitos mais libertadores na tradição
ocidental.
A beleza de Deus nos impacta de formas
distintas. Nosso vazio enxerga Deus melhor do que nosso orgulho. A passagem do
Novo Testamento, em que Jesus está ao lado de dois ladrões no Gólgota, é
paradigmática. Enquanto um, o mau ladrão, exige que Jesus use seus
"superpoderes" de filho do Deus todo poderoso para tirá-los da cruz,
o outro, o bom ladrão, pede que Jesus simplesmente se lembre dele, um ladrão
que merece a cruz, quando entrar em Seu reino.
Por isso, no judaísmo, na oração "Nosso Pai
e nosso Rei", falada no Dia do Perdão, se diz: "zachur ki afar
anáchnu": Lembra-Te de que nada mais somos do que pó.
Luiz Felipe Pondé (Folha online)
(Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2017/07/1903689-os-ingenuos-creem-em-idealismos-contra-a-monstruosa-realidade.shtml.
Acesso em: 25 julho 2017.)
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