"Não há nada mais perigoso do que um homem honesto”.
A frase, dita por um dos maiores gângsters da fictícia cidade de
Gotham no seriado de mesmo nome, poderia também ter sido proferida por
qualquer um dos corruptos brasileiros.
Pessoas honestas incomodam os criminosos, em especial aqueles que tentam subverter as leis de dentro do Estado. O
compromisso do bandido é sempre com seus interesses. Já quem possui uma
moral sólida, tem compromisso não com seus próprios apetites, mas com
valores, coisa que o facínora nunca vai entender e por isso ri do que
não é como ele.
Talvez para ser mais diplomático compense citar Rui Barbosa, que afirmou há tanto tempo que “de
tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a
desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser
honesto”.
Marcelo Bretas é magistrado aprovado em concurso público, a quem cabe o julgamento de uma parcela da Lava Jato. Honesto, como a avassaladora maioria dos juízes, faz cumprir a lei sem admitir interferência política, econômica ou compadrio.
O perfil do concursado é, via de regra, mais discreto, especialmente do juiz, titular de um dos três Poderes da República.
Marcelo não é adepto de pirotecnia ou comentários midiáticos, tal qual
grande parte dos magistrados, que em seus gabinetes precisam lidar com
os mais de 100 milhões de processos no Brasil, número que não existe em
nenhum outro lugar do mundo.
Aprovado que fui em concurso público, entendo Bretas, assim como as
centenas de colegas da Magistratura que tive o prazer de conhecer nestes
anos. Uma base moral sólida e uma dedicação aos estudos é o que caracteriza os que buscam a estreita porta dos concursos.
Isso nos poupa de um eventual beija-mão e da dependência de conchavos políticos para obter um cargo qualquer na pérfida prática identificada por Machado de Assis naquilo que cunhou como “país dos bacharéis”, denunciando com essa expressão a “produção legal da ilegalidade”,
em que o direito é manipulado conforme a conveniência de interesses
privados e não raro com efeitos contrários aos pretendidos pela lei.
Infelizmente, o que nós todos como brasileiros temos presenciado
diariamente é uma inversão de valores e uma celebração à injustiça,
digna de um roteiro de filme B, no qual os vilões são tão caricatos que
se tornam facilmente identificáveis, não raro sequer conseguimos vê-los
como humanos.
Vilões arrogantes, com suas capas teatrais, suas risadas
características e seus lábios caídos, odeiam o povo, odeiam a
honestidade, odeiam a alegria. Nunca basta o poder que possuem, querem sempre mais, e mais se regozijam quanto mais vêem pessoas boas na miséria.
Desconhecem a justiça que não aquela que os favorece, e usam do
sistema para a manutenção do status quo, garantindo a exploração
contínua do povo e a erradicação de qualquer um que se oponha a eles.
Considerando nossa tradição ocidental como essencialmente cristã,
nesse aspecto de justiça e arrogância é conveniente lembrar aquele que é
o arquétipo do juiz e da sabedoria, o rei Salomão, que, segundo a
história, ao ser questionado por Deus qual era o desejo de seu coração,
pediu “discernimento para ministrar justiça”.
É Salomão que nos recorda que “pouco antes da sua queda, o coração do homem se enche de arrogância; a humildade, contudo, antecede a honra!”
(Provérbios 18:12). Nessa mesma linha cristã do tema da queda e da
petulância, vem sempre à baila a figura de Lúcifer, cujo orgulho foi a
perdição.
Já na mitologia grega não são poucos os casos em que a vanglória foi motivo de ruína. Sempre presente é o mito de Ícaro, aquele que ignorou os conselhos do pai e, voando próximo demais ao sol, perdeu suas asas.
São inúmeras histórias em todas as culturas nas quais o orgulho precede a queda.
Esse procedimento é tão patológico e se repete ao longo do tempo que a
Grécia nos entregou o conceito de “húbris”. De Aristoteles a Jung, não
foram poucos os que abordaram esse tema.
Húbris representa a confiança excessiva, a presunção desvairada e a insolência, notadamente contra os deuses, uma incontinência sobre os próprios impulsos, que invariavelmente termina sendo punida.
É o contrário da virtude da prudência e do bom senso. Aqueles
acometidos desta doença da alma não respeitam aos demais, acreditam na
impunidade e que podem fazer tudo o que passa por suas cabeças.
Certamente a característica daquele que se considera um supremo, acima
dos mortais, mas que, em razão de suas condutas desmedidas e
declaradamente pérfidas, atrai sobre si a ira da divindade.
Se nem aos semi-deuses gregos esses arroubos de pedantismo eram permitidos, que dirá a nós, meros humanos. No
caso dos magistrados, convém lembrar que, embora a Justiça seja um
atributo do espírito (por isso todas pessoas a possuem), a Magistratura é
uma ficção da lei, e sua forma e existência se justificam na medida em
que servem à nação.
Do juiz substituto, sempre concursado, ao ministro, indicado
politicamente pelo chefe do Executivo da União, não deveria haver quem
quer que seja impermeável ao ordenamento jurídico.
É verdade que o juiz, aquele que se submeteu a concurso, começará a sua carreira no interior, conhecendo a população e seus reclamos.
Cumprirá e fará cumprir a lei dentro de sua jurisdição, não fazendo de
sua toga avental de comerciante, porque lida não só com o interesse
público, mas com a confiança do povo na Justiça.
Se não havia antes, agora é nítido que já há um abismo entre esse juiz concursado e o ministro em Brasília,
que habita os palácios de mármore e linhas retas, distante da carestia
de uma nação que não entende o que significa habeas corpus, mas sente no
íntimo quando uma injustiça é feita, na noção da alma da gente simples
bem retratada por autores como Guimarães Rosa.
Por isso fica muito difícil entender qualquer ditado esdrúxulo quando
se trata de comparar um e outro, como dizer do rabo que abana o
cachorro. Cachorro e seu rabo pertencem a um único conjunto. A cabeça manda, o rabo se mexe.
Parece que já não é desse jeito. A maior força de um juiz é sua
independência em julgar nos termos da lei, e somente assim ele pode
servir ao povo, seu patrão e razão de ser.
É certo que há muito ainda que se melhorar no Judiciário, e é preciso
ter fé que hoje estamos melhor do que ontem, e amanhã melhor do que
hoje. Mas se alguém espera que um juiz togado, investido por
concurso público, venha a dobrar-se servilmente a interesses outros que
não a aplicação da lei dentro de sua função social, é melhor não abanar o
rabo, mas sentar-se em cima dele, porque se afigura prudente estar
próximo ao chão quando a queda vier.
Do juiz EDU PEREZ
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