Divino, para os gregos, era o mais sublime, poderoso e belo já presente no humano
Os filósofos gregos antigos desafiavam-se a refletir sobre a vida com tudo o que brotava da existência humana, inclusive a crença e a relação do homem com a(s) divindade(s). (Divulgação/ Pixabay)
Nasceu na Idade Média a ideia de que a filosofia e a teologia têm uma
relação de complementaridade hierárquica, de modo que a “ciência sobre
Deus” deveria servir-se da “ciência sobre o homem”, para criar suas
ideias e o logos sobre a vida do homem teria lugar e função estritamente propedêuticos para alcançar o logos divino cristão.
Em vista de uma relação mais madura e mais proveitosa entre as duas
ciências e em defesa da liberdade filosófica, é necessário discordar. E
discordar com o próprio Jesus.
No evangelho de Mateus, quando os discípulos questionaram a Jesus
sobre a grandeza que poderiam alcançar como discípulos, o Senhor lhes
respondeu dizendo que “aquele que quiser ser grande entre vós, seja o
servidor” (Mt 20, 27). Essa fala pode ajudar a iluminar o tema da
relação entre filosofia e teologia. Apesar de não mencionar a ciência ou
setores do saber humano, Jesus indica aí uma possível solução para a
pretenciosa afirmação da grandeza de uma sobre a outra. Na própria
comunidade cristã, Jesus interpela os discípulos a não buscar
sobreporem-se uns aos outros, mas a servirem-se mutuamente. Se cada
seguidor do Cristo praticar essa norma, o resultado será a inexistência
de desigualdades valorativas de qualquer espécie e formar-se-á uma
comunidade de servidores diferentes que, ao ajudarem-se mutuamente,
serão capazes de construir uma sociedade sem “chefes que dominam como
senhores absolutos” ou “grandes que oprimem com seu poder”. Com tantos
conflitos antropológicos e epistemológicos contra a diversidade do
humano, atualmente, essa é uma perspectiva libertadora, realmente.
Libertadora não só da filosofia outrora ancila da teologia, mas libertadora do próprio pensamento humano. Como acontecia antes de nascer essa pretensão à superioridade.
Os filósofos gregos antigos praticavam o pensamento sobre a realidade
numa perspectiva de liberdade bastante peculiar: desafiavam-se a
refletir sobre a vida com tudo o que brotava da existência humana,
inclusive a crença e a relação do homem com a(s) divindade(s). O que era
possível graças ao tipo de fé que aquele povo vivia. Divino, para os
gregos, era mais sublime, poderoso e belo já presente no humano. Cada
deus narrado por Homero tinha sua identidade afirmada através de
características humanas e não havia traço da humanidade que não pudesse
ser encontrado no divino. Ademais, a fé dos gregos era contemplativa e
dialogal ao mesmo tempo em que prática e pouco normatizada. Ponto
crucial para o próprio surgimento da filosofia na Grécia. Com essa
liberdade e harmonia entre as naturezas humana e divina, o homem grego
foi capaz de realizar o milagre do pensar. Pensava em si mesmo a
ética, a linguagem, a política, a lógica, questionava a totalidade da
existência ao mesmo tempo em que relacionava seu pensamento a questões
metafísicas naturais e à fé nos deuses ou na existência do divino. O
resultado foi um crescimento amplo em termos políticos, científicos,
sociais e outros.
Essa brisa grega suave continuou na Idade Média e cruzou as
fronteiras da Europa Ocidental. No caminho de volta encontrou uma
questão fundamental: podemos pensar a existência sem o divino? Houve
respostas que apresentaram um problema até hoje desafiador: a
dificuldade de alguns filósofos em assumir a complexidade da existência,
necessitando então assegurar a ideia de que a afirmação do divino
deveria, para ser válida, negar algo do pensamento humano. Deu-se então a
separação e a rixa: a teologia medieval, com Tomás de Aquino, propôs
abertamente a philosophia ancilla theologiae (filosofia como serva da teologia). Injusto retrocesso!
Filosofia e teologia por muito tempo se deram juntas, inclusive
dentro do cristianismo. O Evangelho de João dialoga profundamente com a
cultura grega, mais até: foi escrito nela imbuído de filosofia. Paulo
pregava nas ágoras, era interlocutor filosófico ávido!
Atualmente, nas faculdades de teologia, é necessário cursar dois ou
três períodos de filosofia antes de adentrar os estudos teológicos. Isso
é muito bom e não indica necessariamente qualquer sinal de
desvalorização da filosofia por parte da teologia, pelo contrário,
afirma a importância dessa. A cinca está em pretender que a filosofia
tenha sempre que contar com algum motor imóvel ou que ela vá,
inelutavelmente, ser marcada por um horizonte transcendental de
possibilidade que seja divino, obrigando todos os filósofos a serem
agostinianos inconscientes. Em última análise, Filosofia e Teologia são
saberes tangentes. Pensar Deus tem sentido na medida em que ele está
para o homem, ao mesmo tempo em que quando o homem se pensa e reflete
sobre a existência, ele pode, nalgum momento, chegar a afirmação dalguma
crença divina. Ele pode lidar com os limites do conhecimento, com o
desconhecido do humano e da vida aceitando-os como mistério ou
encarando-os como umbrais do saber numa humanidade que se dá
aberta à crença, mas não obrigada a ela. Em outras palavras, não há
qualquer obrigação teológica que a filosofia deva cumprir ou pressupor.
Lembro-me uma vez que um seminarista celebrou a quinta-feira santa
numa comunidade do interior e o lava-pés demorou ao menos meia hora.
Acontece que ele lavava cada pé com sabão. Demorou bastante, mas os
apóstolos ficaram limpíssimos. Se, mesmo vislumbrando a riqueza da
complexidade e a possibilidade da harmonia independente entre filosofia e
teologia, esta se propuser senhora da filosofia, tenha em mente essas
duas ideias: seremos todos grandes quando servirmo-nos uns aos outros e,
se vais “obrigar” a filosofia a te lavar os pés, deixe que ela tire
seus excessos e faça aparecer limpo o humano que aí está.
Por Vitor Júnio Félix Fernandes
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