A criação tem rastro difícil,
imperceptível, mal se enxergando as suas marcas e as suas origens. Qualquer ato
criativo se confunde primordialmente com a vida, com a língua, com a pátria,
com a própria biografia, com a memória coletiva, e com o tempo presente e
pretérito.
Sempre que se fale desse ato
enigmático e voraz, dele não se podem expulsar a mesa, a cama, as batalhas, os
gestos cotidianos.
A minha vida, como a de todo
escritor, está possivelmente embutida no texto, ali cravada como uma lança. E
sobre esta vida e este texto, só posso me referir com absoluta relatividade.
Aprendi, no entanto, com meu avô Daniel, desembarcado na Praça Mauá há setenta
anos, vindo de Espanha, que, antes mesmo do meu nascimento, antes de ofertar-me
esta terra singular, iniciara ele, em meu nome, uma espécie de viagem que me
caberia prosseguir desde que me habilitasse ao imaginário, às dúvidas, às
incertezas.
E, menina ainda, aprendi que
Simbad, este admirável mito volátil, não viajara com o intuito de narrar em
cada porto as histórias que havia vivido no capítulo anterior. Ao contrário,
desde o seu nascimento, antes mesmo de deixar terra firme, Simbad fora abonado
ao mesmo tempo com a invenção e a mentira, ambas legítimos avessos e reflexos
da verdade. E esta invenção e esta mentira facultando-lhe um poder narrativo
que se negava veementemente a resumir em poucas frases a aventura humana. Em
suas mãos, a história deveria começar com a perspectiva de jamais terminar.
De posse, então, da certeza de
que se viaja até mesmo pelos arquipélagos da língua, compreendi que a simples
apropriação do enredo coletivo nos autoriza a fazer parte dele. E que a rua
onde se vive é, muitas vezes, o universo. A terra onde se está é suficiente, se
soubermos bordar, com auxílio das agulhas e das linhas humanas, personagens,
intrigas ardilosas, metáforas que não se esgotam, ingredientes, enfim, que
neutralizam e ao mesmo tempo projetam luz sobre a onipotência de quem pensa
saber narrar.
Mas, como prova de que teci
diferente de Penélope, que à noite desmanchava a própria história, contrário a
Ulisses que, egoísta, soube armar a sua inteira para ele, fui devagar me
fazendo escritora. Devagar invadindo o ofício sem logo reconhecer a categoria
do material com que lidava, sem lhe dimensionar os limites. E isso porque a
consciência e os encargos éticos desse ofício se conquistam com os anos,
especialmente com o socorro da paixão, essa matéria ígnea capaz de traduzir o
que a lucidez, muitas vezes, não pode explicar.”
[....]
“[...] Pois o escritor
unicamente se faz segundo o ritmo dessa língua dispersa, segundo as lendas, os
sonhos, as fantasias, as dores que o povo cria em conjunto com o propósito de
resistirmos todos a qualquer sistema que nos queira desfalcar desse patrimônio
comum. A construção de um mundo através do qual pode o escritor aproximar-se da
artéria primordial do homem e auscultar-lhe o mito subtraído e reconquistado
diariamente. Ali então apalpar o sacro e o profano, interpor-se entre eles.
Descrevê-los como se os pudesse reter, dar-lhes credibilidade, ir às suas
origens. Entrelaçar-se o escritor afinal com o mais penoso dos mitos, que
sempre lhe ronda a casa, que é o mito da criação.”
[...]
“O escritor quer, no entanto,
definir-se, esclarecer as sementes míticas que nele repercutem e, portanto,
sensíveis de se repetirem nos outros e, pelos outros, de serem igualmente
descritas. Simula presidir integralmente os próprios recursos, enquanto retoca,
e de maneira exaustiva, a sua matriz criadora, para que não se esgote o que lhe
chega às vezes em golfadas. Nessas análises, esquecido da procedência do texto,
instaurado antes da sua ars poetica.
Um texto vocacionalmente voltado a contrariar as versões e as descrições que
dele se façam, e sempre pronto a despojar o escritor das suas máscaras e de
seus disfarces.
“Um fazer poético através do
qual, no entanto, o escritor reavalia diariamente a sua consciência verbal, e
adquire a certeza de que criar é, ao mesmo tempo, o desvendamento de uma
obsessão proclamada na própria escritura e uma precondição da linguagem de que
ele fará uso. Quando a criação, no eterno confronto entre texto e escritor,
cada qual retratando respectivamente o que se deixa descrever e o que escreve,
aspira a alcançar todos os estados e aparências que se propõe a representar,
mas que resistem à sua apreensão.”
[..]
“A batalha do escritor é
inventar para dizer a verdade. E, para tal, apoia-se sobre tecido verbal que há
de negar-lhe seus recônditos recursos sempre que ele, como autor, perder a
coragem de desestruturar-se permanentemente com o intuito de enfiar a faca no
coração da linguagem, da vida, que é o coração do homem.”
[...]
“E porque suas criaturas, que
são encaminhadas para o texto, padecem de volatização do tempo, da linguagem
implacavelmente lógica e racional e das restrições que inauguram ou podem
clausurar seu texto, o escritor projeta panos de fundo falsos, e portas cujas
entradas nem sempre são indicadas pela seta pintada a nanquim. E devota-se,
como autor, à intuição, que é o mais atualizado dos conhecimentos. E sem o
qual, a bem do seu ofício, não se integraria a uma narrativa que se quer
insubmissa, cujos melhores fluxos lhe chegam sempre por via dos nexos afetivos,
ritualísticos, memorialísticos, jamais interrompidos.
Nélida Piñon (fragmentos)
(PIÑON,
Nélida. O mito da criação. In: ______. Filhos da América. Rio de Janeiro:
Record, 1. ed., 2016, pp. 356-358, 362-364, 366-367.)
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