Era dia de Ano novo. Eu me levantei cedo, bem cedo, mas não pude sair
logo para passear com o cachorro, pois, lá fora, a festa ainda corria
solta. Somente às 10 da manhã pararam de soltar fogos e pude sair, se
bem que até depois do meio-dia alguns renitentes continuavam soltando um
ou outro foguete, como se as toneladas de pólvora já queimadas na
madrugada não tivessem bastado. As ruas estavam cheias de lixo, muito
lixo, resíduos de uma alegria curta, que se acendeu, subiu, explodiu e
se apagou rapidamente. O que mais me incomodava eram as garrafas
quebradas em todo e qualquer canto, testemunhas da insanidade da festa.
Prestava atenção para não pisar em cacos de vidros, mas minha
preocupação maior era com meu amigo de quatro patas sem sapatos.
Continuamos
o passeio no meio de tanto lixo e insanidade, cruzamos o caminho de
pessoas com ressaca e mau humor e fiquei questionando que sentido faria
tudo aquilo. Comemoramos a virada do ano todos os anos, ficamos alegres
pelo novo ano que chega, mas alegres exatamente por quê? Basta ser
honesto, olhar para trás, ver todas as viradas de ano anteriores e
constatar que nada muda, só continua, não há renovação, não há recomeço,
o saldo no banco fica o mesmo, as dívidas também (ou mais altas, depois
de tantos gastos com as festas de fim de ano), a saúde fica do mesmo
jeito (ou mais abalada pelo alto consumo de álcool, comida e de tudo),
os falsos amigos não se tornam verdadeiros, a obesidade só aumenta e
tudo prossegue como sempre.
O mundo está aí, passando por uma
enorme crise, com o maior número de migrantes desde a segunda guerra
mundial, um verdadeiro êxodo, pessoas que fogem de guerras, de
violência, de tortura, de fanáticos religiosos, de seca, de fome, de
perseguição política, e muitos desses migrantes estão morrendo afogados
ao tentar atravessar o Mar Mediterrâneo para entrar no Eldorado Europa,
outros são vítimas de bandidos, traficantes de órgãos ou de gente, sendo
mortos ou escravizados por aí. Quando chegam na Europa, se veem diante
de arame farpado, racismo e xenofobia. A extrema-direita ganha terreno
em todo o mundo. Ebola ainda mata na África, malária e AIDS também, sem
falar do Zika e muitas outras epidemias que afetam a humanidade. O mundo
se aquece, os oceanos são cada vez mais poluídos com nosso lixo, o
consumismo nunca foi tão selvagem, com trabalho escravo, também
infantil, para nos garantir roupas baratas, ou smartphones, ou seja lá o
que for… No fundo, não há nada para comemorar, mas comemoramos assim
mesmo.
Não vejo sentido, mas respeito, respeito porque somos todos livres para
seguir o caminho que escolhermos, porque é direito de cada um de já ir
com a massa para o Réveillon na praia de Copacabana já pela tarde, para
garantir o melhor lugar, para fazer parte bem na frente, e ficar ali
plantado por horas, esperando, como se isso tivesse realmente alguma
importância. Respeito o direito de quem queima literalmente dinheiro
para soltar fogos em abundância ou com fantasias de carnaval ou com ovos
de chocolate na Páscoa ou com qualquer outra superficialidade, mesmo
que eu não concorde, mesmo achando que isso não é justo diante do número
de pessoas famintas no mundo. Respeito que cada um siga o caminho que
desejar, por mais incompreensível que seja, mesmo percebendo que há
pouca reflexão, que muitos vão por ir, Marias vão com as outras, que
comemoram algo porque todo mundo comemora, sem cogitarem alternativas,
sem terem a coragem de ser diferente, e talvez sem nem mesmo terem
entendido que isso é possível.
E aqui chego ao ponto que queria
chegar, ao tema que quero abordar: o direito que cada um tem de ser
diferente, de não caminhar com o rebanho, de viver da forma que escolheu
conscientemente, sem seguir convenções, sem fazer o que esperam os
outros, de ser realmente livre. Toco nesse assunto por achar emergente,
já que percebo um desvio, já que constato uma injustiça, vendo gente que
tem a coragem de ser diferente sendo acuada, agredida por aqueles que
acham que devemos todos nos comportar como gado, seguindo a massa sem
qualquer senso crítico, sem qualquer reflexão.
Estava em um grupo no Facebook, quando li um post de um de homem que estava preocupado com sua comemoração de Ano Novo: <>.
Algo normal, compreensível, já que essa pessoa tem o direito de correr
atrás de festa. Mas aí alguém respondeu, uma mulher, dando alguma dica,
mas dizendo que ela não iria, pois preferia passar a virada de ano em
casa, com seus filhos. Estranhei então a reação do “festeiro”: <>.
E
a coitada da mulher se sentiu desconsertada, começando a explicar sua
postura e sua decisão, como se fosse uma ré, a acusada em um processo
penal, como se estivesse agindo errado, como se ela simplesmente não
tivesse o direito de dizer que não quer comemorar essa maluquice e
pronto. E li em outros lugares comentários semelhantes: quem quer ficar
em casa, quem se afasta da “loucura” coletiva é taxado de solitário,
esquisito, triste, deprimido, frustrado, arrogante, metido a besta e um
monte de outros adjetivos, rapidamente atribuídos por gente que não
reconhece o direito de alguém ser diferente, de nadar contra a maré, de
não seguir os outros cegamente.
E é exatamente isso que acho injusto: como se não bastasse ter que
suportar uma insanidade coletiva, um exagero festivo sem pé e sem
cabeça, não gostando, temos ainda que nos sentir mal por pensarmos
diferente? Ser diferente, viver diferente é então sinônimo de tristeza,
de frustração, de arrogância? Parece-me que aqui a maioria atropela uma
minoria, fazendo com que gente diferente se sinta mal, fazendo com que
originalidade e independência virem motivos de chacotas, onde pessoas
corajosas, que têm o peito de pensar e agir diferente e que merecem
admiração, terminem se sentindo agredidas, empurradas em um canto, onde
têm então que assumir uma postura defensiva desgastante.Vejo um
desvio, uma inversão de papéis e valores. Não acho isso justo e penso
que deveríamos refletir profundamente sobre o assunto.
Termino
fechando esse texto com dois apelos, sendo a primeiro para aqueles que
não toleram os que são diferentes, que acham que todos temos que seguir
cegamente o rebanho, as tradições, as convenções, tudo aquilo que nos
foi ensinado como certo, ou que simplesmente acreditamos ser certo por
nunca termos feito de outra maneira: viva sua vida da forma que achar
que deve, você é livre para isso. E se você acha que encontrará sua
felicidade no coletivo, no modismo, no mainstream, no consumo exagerado,
no correr atrás sem nunca (ou quase nunca) questionar, faça isso. Esse é
um direito seu! Pessoalmente não acredito que você será feliz, mas não
sei bem, já que não há receita para a felicidade. Pode ser que você
esteja certo em seu caminho e eu errado em minha opinião. Mas, por
favor, não tente fazer com que aqueles que têm a coragem de ser
diferentes e seguir o próprio caminho se sintam como se eles fossem os
“loucos”, pois isso não é assim. Não é loucura caminhar com as próprias
pernas. Loucura é se deixar levar pelo “rebanho”, sem nunca questionar o
percurso.
Já o segundo apelo é para os corajosos, para você, que
tem o peito de ser diferente, de pensar com própria cabeça e seguir o
próprio coração: continue assim! Isso é bom, muito bom! Sei que nem
sempre é fácil, sem que isso muitas vezes faz com nos sintamos sós, mas
não mude esse jeito jamais, pois é ele que faz de você aquilo que você
realmente é: uma pessoas singular e realmente especial. Não é triste ter
a coragem de optar por passar o ano novo ou outras festividades em
casa, tranquilo, sem grandes pândegas e balangandãs. Triste é ter
perdido essa capacidade. Assuma seu direito de ser diferente, de não
caminhar com o rebanho, de viver da forma que escolheu conscientemente,
sem seguir convenções, sem fazer o que esperam os outros, de ser
realmente livre e feliz.
Blogueiro brasileiro residente em Berlim.
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