domingo, 30 de julho de 2017

A melodia poética

(soneto de Rainer Maria Rilke)
 
A poesia tem uma dimensão melódica que a aproxima da fala humana.  Não da fala solta e desatenta dos instantes banais, mas de uma fala transfigurada.  Uma fala que nasce também dos ritmos de nossa voz, mas da voz que usamos nos momentos mais carregados de urgência, de emotividade, de concentração.

Comentando a amizade literária entre o poeta norte-americano Robert Frost e o crítico britânico Edward Thomas, Matthew Hollis observou:

Para esses dois homens [Frost e Thomas], a máquina que move a poesia não é a rima nem sequer a forma, mas o ritmo, e o órgão pelo qual ela se comunica é o ouvido que escuta, mais do que o olho que lê.  Para Thomas e Frost isso acarretava uma fidelidade mais à frase do que à contagem métrica, aos ritmos da fala mais do que às convenções poéticas; uma fidelidade àquilo que Frost chamava de “cadência”.  Se você já ouviu pessoas conversando por trás de portas fechadas, raciocinava Frost, você já deve ter reparado que é possível entender o sentido geral de uma conversação mesmo quando as palavras propriamente ditas são indistintas. Isto é porque as entonações e as sentenças com que falamos estão carregadas de sentido, formando um “significado sonoro”.  É sobre esse significado, desencadeado pelo ritmo da voz que fala, que a poesia se comunica de maneira mais profunda.  Thomas escreveu certa vez: “Um homem não pode escrever melhor do que ele fala quando alguma coisa o emocionou profundamente”.

Acho que tudo isto deve ser considerado a sério quando falamos que a poesia tem influência oral, da fala, etc.  Muita gente pensa que isto indica apenas que a poesia deve ser sempre coloquial, informal, descontraída, parecida com o modo desconexo e descuidado como falamos.  Não é bem isso, ou melhor, não é somente isso.  A poesia deve se aproximar da fala em todos os registros da fala; em todas as maneiras com que somos capazes inclusive de imprimir à fala (entre outras coisas) gravidade, tensão, emotividade, arrebatamento. 

Como se tivéssemos um telefonema de quinze segundos para comunicar algo muito importante a alguém, mas em compensação pudéssemos preparar e ensaiar o que dizer nesses 15 segundos durante o tempo que fosse necessário.

A fala tem seu encantamento próprio; a mera vibração da voz humana é carregada de sentido, e nos permite entender o que é dito mesmo quando, por trás de portas fechadas, não percebemos as palavras, mas entendemos a urgência indicada por aquela tensão. 

Num país estrangeiro, somos muitas vezes envolvidos em situações em que pessoas estranhas se exprimem num idioma que desconhecemos. E conseguimos perceber muito do que está sendo dito, porque existem naquelas vozes as correntes subterrâneas de emoção que independem de idioma. E não me refiro a recursos como mímica ou expressão facial; basta um telefonema. Basta ouvir rádio numa língua desconhecida.

Basta ouvir um recital de poesia em japonês, como já me aconteceu. Entendemos aquilo? Não. Mas respondemos emocionalmente àqueles sons. O isomorfismo emocional entre voz e ouvido faz com que aquela vibração sonora desperte em nós estados de espírito próximos do que a produziu. A melancolia desperta a melancolia, a raiva desperta a raiva, o medo o medo.

Ouvindo pessoas que falam numa língua desconhecida, não é o sentido dicionarizado de suas palavras que percebemos, é a urgência tonal e rítmica da voz, suas ênfases, suas pausas, a dinâmica que a faz subir e baixar de volume. Tudo isto produz a emoção melódica com que a voz humana nunca deixa de nos atingir.

T. S. Eliot dizia:

A poesia não deve derivar para muito longe da nossa linguagem ordinária, cotidiana, a que usamos e que ouvimos.  Que seja ela acentual ou silábica, rimada ou sem rimas, formal ou livre, ela não pode se dar o luxo de perder o contato com as formas mutáveis do discurso coloquial. (...)  Cada revolução na poesia acaba resultando, e muitas vezes assim se proclama, num retorno à fala comum.

Existe uma espécie de cordão umbilical ligando a poesia discursiva à fala. Isto talvez explique a tensão em duas fronteiras conflagradas que a poesia mantém com outras formas de expressão.

A primeira é a fronteira entre a poesia discursiva e a poesia visual. É um cabo-de-guerra entre o ouvido e o olho. Principalmente depois da invenção da imprensa brotaram movimentos explorando o lado gráfico da poesia, muitas vezes em detrimento de seu lado discursivo.  São os caligramas da poesia barroca ou dos vanguardistas do século 19 como Apollinaire; são os poemas concretos e o poema processo do século 20, todas as experiências em que a forma visível das letras e das palavras e das frases se sobrepõe a sua carga original de significado.  Quando isto acontece, o leitor de poesia formado pela poesia discursiva sente-se pouco à vontade, porque enxerga naquilo uma perda da melodia poética, um afastamento da voz e do ouvido.  São poemas que é praticamente impossível (ou inútil) ler em voz alta para alguém que não os vê. Quando a poesia começa a ser feita para a página e para o olho, afasta-se desse murmúrio de vozes humanas que lhe deu origem.

A outra fronteira belicosa é a que a poesia mantém com a canção, com a letra de música. No caso da canção, o leitor volta a pressentir uma perda da melodia original da fala, só que desta vez pela interferência de uma melodia externa, invasiva, uma melodia autoritária que quer se afirmar como única leitura melódica possível. 

Por mais que a melodia de uma canção se aproxime das melodias espontâneas de nossa fala, ela será sempre uma melodia formalizada e especificamente musical, e dessa forma é como se obrigasse a fala a uma sujeição pouco confortável.  Como se a melodia da fala, tão livre e não-planejada, tivesse que ceder lugar a uma melodia mais deliberada, mais poderosa, uma melodia de natureza estrangeira à fala.

Percebemos isso quando lembramos de verbos tão próximos quando cantar e cantarolar. Cantar pressupõe uma intenção clara, um esforço, uma técnica, mesmo uma técnica amadorística. A pessoa que canta está fazendo um esforço consciente para se aproximar daquela melodia formalizada que a canção traz em si. Já a pessoa que cantarola está mais perto da fala. Cantarolar é repetir a canção de um maneira mais leve, descontraidamente imperfeita, sem compromisso, meio que fugindo a essa melodia pronta que a canção traz consigo. Cantarolar é tentar ir de volta para a melodia da fala, a melodia de quem está dizendo alguma coisa com uma certa musicalidade, mas sem se preocupar em obedecer demais à música extra-fala que vem colada à canção.

Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo

(um versão ligeiramente diferente deste artigo foi publicada na revista Língua Portuguesa (ed. Segmento, São Paulo, # 73, novembro de 2011)

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