(soneto de Rainer Maria Rilke)
A
poesia tem uma dimensão melódica que a aproxima da fala humana. Não da fala solta e desatenta dos instantes
banais, mas de uma fala transfigurada. Uma
fala que nasce também dos ritmos de nossa voz, mas da voz que usamos nos
momentos mais carregados de urgência, de emotividade, de concentração.
Comentando
a amizade literária entre o poeta norte-americano Robert Frost e o crítico
britânico Edward Thomas, Matthew Hollis observou:
Para esses dois homens [Frost e Thomas], a máquina que
move a poesia não é a rima nem sequer a forma, mas o ritmo, e o órgão pelo qual
ela se comunica é o ouvido que escuta, mais do que o olho que lê. Para Thomas e Frost isso acarretava uma
fidelidade mais à frase do que à contagem métrica, aos ritmos da fala mais do
que às convenções poéticas; uma fidelidade àquilo que Frost chamava de
“cadência”. Se você já ouviu pessoas
conversando por trás de portas fechadas, raciocinava Frost, você já deve ter
reparado que é possível entender o sentido geral de uma conversação mesmo
quando as palavras propriamente ditas são indistintas. Isto é porque as
entonações e as sentenças com que falamos estão carregadas de sentido, formando
um “significado sonoro”. É sobre esse
significado, desencadeado pelo ritmo da voz que fala, que a poesia se comunica
de maneira mais profunda. Thomas
escreveu certa vez: “Um homem não pode escrever melhor do que ele fala quando
alguma coisa o emocionou profundamente”.
Acho
que tudo isto deve ser considerado a sério quando falamos que a poesia tem
influência oral, da fala, etc. Muita
gente pensa que isto indica apenas que a poesia deve ser sempre coloquial,
informal, descontraída, parecida com o modo desconexo e descuidado como
falamos. Não é bem isso, ou melhor, não
é somente isso. A poesia deve se
aproximar da fala em todos os registros
da fala; em todas as maneiras com que somos capazes inclusive de imprimir à
fala (entre outras coisas) gravidade, tensão, emotividade, arrebatamento.
Como
se tivéssemos um telefonema de quinze segundos para comunicar algo muito
importante a alguém, mas em compensação pudéssemos preparar e ensaiar o que
dizer nesses 15 segundos durante o tempo que fosse necessário.
A
fala tem seu encantamento próprio; a mera vibração da voz humana é carregada de
sentido, e nos permite entender o que é dito mesmo quando, por trás de portas
fechadas, não percebemos as palavras, mas entendemos a urgência indicada por
aquela tensão.
Num
país estrangeiro, somos muitas vezes envolvidos em situações em que pessoas
estranhas se exprimem num idioma que desconhecemos. E conseguimos perceber
muito do que está sendo dito, porque existem naquelas vozes as correntes
subterrâneas de emoção que independem de idioma. E não me refiro a recursos
como mímica ou expressão facial; basta um telefonema. Basta ouvir rádio numa
língua desconhecida.
Basta
ouvir um recital de poesia em japonês, como já me aconteceu. Entendemos aquilo?
Não. Mas respondemos emocionalmente àqueles sons. O isomorfismo emocional entre
voz e ouvido faz com que aquela vibração sonora desperte em nós estados de
espírito próximos do que a produziu. A melancolia desperta a melancolia, a
raiva desperta a raiva, o medo o medo.
Ouvindo
pessoas que falam numa língua desconhecida, não é o sentido dicionarizado de
suas palavras que percebemos, é a urgência tonal e rítmica da voz, suas ênfases,
suas pausas, a dinâmica que a faz subir e baixar de volume. Tudo isto produz a
emoção melódica com que a voz humana nunca deixa de nos atingir.
T.
S. Eliot dizia:
A poesia não deve derivar para muito longe da nossa
linguagem ordinária, cotidiana, a que usamos e que ouvimos. Que seja ela acentual ou silábica, rimada ou
sem rimas, formal ou livre, ela não pode se dar o luxo de perder o contato com
as formas mutáveis do discurso coloquial. (...)
Cada revolução na poesia acaba resultando, e muitas vezes assim se proclama,
num retorno à fala comum.
Existe
uma espécie de cordão umbilical ligando a poesia discursiva à fala. Isto talvez
explique a tensão em duas fronteiras conflagradas que a poesia mantém com
outras formas de expressão.
A
primeira é a fronteira entre a poesia discursiva e a poesia visual. É um
cabo-de-guerra entre o ouvido e o olho. Principalmente depois da invenção da
imprensa brotaram movimentos explorando o lado gráfico da poesia, muitas vezes
em detrimento de seu lado discursivo. São
os caligramas da poesia barroca ou dos vanguardistas do século 19 como
Apollinaire; são os poemas concretos e o poema processo do século 20, todas as
experiências em que a forma visível das letras e das palavras e das frases se
sobrepõe a sua carga original de significado.
Quando isto acontece, o leitor de poesia formado pela poesia discursiva
sente-se pouco à vontade, porque enxerga naquilo uma perda da melodia poética,
um afastamento da voz e do ouvido. São
poemas que é praticamente impossível (ou inútil) ler em voz alta para alguém
que não os vê. Quando a poesia começa a ser feita para a página e para o olho,
afasta-se desse murmúrio de vozes humanas que lhe deu origem.
A
outra fronteira belicosa é a que a poesia mantém com a canção, com a letra de
música. No caso da canção, o leitor volta a pressentir uma perda da melodia
original da fala, só que desta vez pela interferência de uma melodia externa,
invasiva, uma melodia autoritária que quer se afirmar como única leitura
melódica possível.
Por
mais que a melodia de uma canção se aproxime das melodias espontâneas de nossa
fala, ela será sempre uma melodia formalizada e especificamente musical, e
dessa forma é como se obrigasse a fala a uma sujeição pouco confortável. Como se a melodia da fala, tão livre e
não-planejada, tivesse que ceder lugar a uma melodia mais deliberada, mais
poderosa, uma melodia de natureza estrangeira à fala.
Percebemos
isso quando lembramos de verbos tão próximos quando cantar e cantarolar.
Cantar pressupõe uma intenção clara, um esforço, uma técnica, mesmo uma técnica
amadorística. A pessoa que canta está fazendo um esforço consciente para se
aproximar daquela melodia formalizada que a canção traz em si. Já a pessoa que
cantarola está mais perto da fala. Cantarolar é repetir a canção de um maneira
mais leve, descontraidamente imperfeita, sem compromisso, meio que fugindo a
essa melodia pronta que a canção traz consigo. Cantarolar é tentar ir de volta
para a melodia da fala, a melodia de quem está dizendo alguma coisa com uma
certa musicalidade, mas sem se preocupar em obedecer demais à música extra-fala
que vem colada à canção.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
(um versão ligeiramente diferente deste artigo foi publicada
na revista Língua Portuguesa (ed. Segmento, São Paulo, # 73, novembro de
2011)
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