Nem todo mundo é assim, mas para algumas pessoas escrever
é cavar.
Existe uma coisa que está sendo procurada, e é preciso um
esforço de remoção de entulho até chegar a essa coisa. Digamos que estamos
cavando um poço. O que procuramos é a água. O que temos de remover é a terra.
Cada dia é diferente. Tem dias em que a gente mete a pá
na terra, e a água já brota. Tem dias em que a gente cava dois metros de
fundura e só acha terra seca.
Não depende da gente. A mente imaginativa da gente (estou
falando de escritor, de quem trabalha com a mente imaginativa) produz muita
terra seca, palavras que parecem dizer alguma coisa mas não dizem nada.
Palavras opacas, sem brilho; palavras surdas, sem som; palavras inertes, sem
vibração.
A gente vai cavando e esperando a água brotar. A água são
aqueles filetes de palavras que trazem movimento, vibração de fluido, reflexos
da luz em volta, murmurejamento de coisa viva. Uma frase que se a gente
arrancar da página e jogar no chão ela sai andando sozinha.
Você está procurando por isso, aí escolhe um lugar onde
cavar. “Vou dizer tal e tal coisa.”
Começa a cavar. Cava um metro, dois metros de fundura. Nada acontece. O
que se deve fazer, então? O que se “deve
fazer” eu ainda não sei: sei o que se faz. Eu geralmente paro de cavar ali e
vou cavar noutro canto.
A letra do samba empancou por falta de uma rima? Vou
trabalhar meia hora naquele artigo sobre Stanley Kubrick. O artigo não está
caminhando? Vou preparar as aulas daquela oficina de poesia. A oficina não rende? Meia hora de tradução de Chandler talvez
salve esta manhã. A tradução parou num
“pig’s valise”? Talvez seja hora de voltar à letra da música. Milagre! Heureca!
Achei a rima que faltava.
Eu tenho a superstição (cientificamente infundada) de que
cavar um buraco ajuda a aumentar proporcionalmente os outros buracos em que
estava cavando. Acho, contra toda
lógica, que trabalhar na escavação A me ajuda também a chegar mais perto da
possível água contida em B, C e D.
Saber onde cavar é um dos maiores “talentos ocultos” da
humanidade. Uso a palavra talento não no sentido de talento artístico, como é
mais frequente no português, mas no sentido parapsicológico, sobrenatural,
metapsíquico, com que a palavra “talent” é tão usada em inglês.
Talento é o que têm os rabdomantes para andar pelo sertão
empunhando uma forquilhazinha de pau e em dado local parar e dizer: “Aqui tem
água”. Ou, como diz o adivinhão-de-água de Ariano Suassuna em As Infâncias de Quaderna, tem “uma
cordilheira de água nativa”.
O talento que tinha o Ragle Gumm de Philip K. Dick (Time Out of Joint, 1959) para adivinhar
o lugar onde o homenzinho verde ia aparecer no quebra-cabeças do jornal. Ou o
talento que tinha a Cayce Pollard de William Gibson (Pattern Recognition, 2003) para olhar de supetão um logotipo e
saber se ia ou não funcionar com o público. Ou o talento que possibilita ao Martin
Carvajal de Robert Silverberg (The Stochastic Man, 1975) adivinhar o futuro para turbinar candidaturas
presidenciais, e mergulhar na crise existencial dos que já sabem tudo, tudo,
tudo o que vai acontecer.
O que chamam de talento literário não é propriamente isso
mas é irmão disso, a capacidade de escolher, entre as centenas de milhares de
palavras do idioma, aquelas palavras que, enfileiradas, vão resultar numa
história capaz de fazer o leitor dizer: “uau”.
Conta-se que o produtor hollywoodiano Irving Thalberg,
numa reunião com roteiristas, minimizou o ofício: “Grande bobagem, ser
escritor. É só botar uma palavra atrás da outra”. E uma roteirista, Lenore
Coffee, respondeu: “Perdão, Mr. Thalberg: é botar uma palavra certa atrás da outra”.
Como diz Glauco Mattoso: todas as palavras da Ilíada e da Odisséia estão no dicionário, só que estão fora de ordem. “Talento”
é imaginar uma possível ordem para elas.
Vejam só, metalinguisticamente, o que é a escrita. Eu
comecei com uma estética eliminacionista, comparando a literatura à escavação
de um poço. Por essa metáfora, a literatura seria algo que já existe (a água,
no lençol freático) e o trabalho do escritor seria remover alguma espécie de
entulho (a terra) até descobrir uma obra preexistente.
A estética eliminacionista é a que levava Michelangelo a
descrever assim suas esculturas: “Eu olho para o bloco de mármore, vejo o Moisés
lá dentro, e aí basta remover tudo que não é o Moisés”. Todos sabemos que o Moisés não está lá
dentro, e que a remoção é feita por aproximações, agravadas pelo fato de não se
poder errar. (Em escultura, o que é tirado não pode ser botado de novo.) Seria
ótimo que o Moisés interior fosse de mármore e o resto do bloco fosse de açúcar
cristalizado. Era só descascar! Mas não é assim.
Ora, está na cara que a literatura não é feita assim. O
texto não “já existe” e está oculto. Muito mais útil é ver a escrita como essa
busca das palavras, mas eu refinaria a definição de Mrs. Coffee dizendo que não
se trata apenas de palavras.
A unidade básica da literatura não é a palavra, é a
frase. Isto aqui, que aparece entre um ponto e outro. Cada vez que a gente
digita “ponto, espaço” a gente volta à estaca zero: é preciso compor a próxima
frase. Ela tem que se conectar à que veio antes, e à que virá depois. As frases
se encadeiam como dominós. Esse conectar muitas vezes é uma questão de ruptura
com o que foi dito antes, mas sempre uma ruptura que produza novo significado.
Bigornas chovendo. É assim que as idéias nos tomam de assalto. Cada frase é uma
bigorna que cai em nossa cabeça e precisa ser traduzida em palavras.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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