quinta-feira, 11 de maio de 2017

Raimundinha

Só tenho duas filhas, uma de catorze anos chamada Jacqueline e outra de treze de nome Gisele, porque uma das patroas que tive era uma médica que trabalhava na prefeitura e ela me disse que ia fazer ligadura das minhas trompas mas que ninguém podia saber porque era proibido fazer aquele tipo de operação num hospital público, o governo e os padres não deixavam, se soubessem ela perdia o emprego. Então ela fez escondido fingindo que estava tratando uma infecção urinária.
O pai das meninas me deu um pontapé na bunda quando elas ainda eram pequenas, levou tudo com ele, até a televisão, e eu fiquei cuidando delas sozinha. Tive outros homens, mas eles não puderam fazer filhos em mim graças à santa da minha patroa, o nome dela era doutora Raquel.
Depois de algum tempo fiquei sem homem dentro de casa, eram todos pessoas muito ruins, teve até uns que batiam em mim, um deles quebrou esse meu dente da frente com um soco. Então, eu me desiludi de homem e decidi viver sozinha.
Tenho um patrão viúvo legal, que me paga em dia e aumenta sempre o meu salário, e nem quer saber da casa, me dá o dinheiro das compras e não confere, eu dou a nota do supermercado e ele nem olha. Também não se interessa por comida, o que eu ponho na frente dele ele come, quase sempre lendo um livro.
Então Jacqueline ficou grávida. Ela sempre foi uma menina que dava muito trabalho, não gostava de estudar roubava dinheiro da minha bolsa, mas eu perdoava, mãe existe para perdoar. O pai era um garoto um pouco mais velho do que ela.Jacqueline disse que não queria tirar, que queria ter o filho e depois, se achasse chato, dava o bebê. O menino já fez quatro anos e ela não deu ele pra ninguém porque quem sempre cuidou dele fui eu, deixava na creche na hora do meu trabalho, e comprava tudo, fraldas, o leite da mamadeira, o talco para assadura do bumbum, remédios, tudo. Como o meu salário não dava, eu apanhava dinheiro na carteira do meu patrão, duzentos, trezentos, ele era muito distraído e nem desconfiava. Enquanto isso Jacqueline passava as noites em festas e eu disse a ela que se ela ficasse grávida de novo eu não ia cuidar do bebê, ia expulsá-la de casa.
Então conheci o Jeferson. Ele era branco, usava cabelo comprido, tinha quarenta anos. Estava se separando da mulher e perguntou se podia ir morar na minha casa. Esqueci de dizer que o meu patrão me deu uma casinha com dois quartos. Eu disse ao Jeferson que sim, é bom ter um homem dentro de casa, e o Jeferson já tinha trabalhado de bombeiro eletricista e sabia fazer essas coisas que nós mulheres não sabemos.
Jeferson estava desempregado, procurando trabalho, e assim, enquanto ele não conseguia um novo emprego, eu dava a ele uns trocados para comprar cigarro, mas eu sabia que ele fingia que fumava três maços por dia e fumava apenas um e o resto do dinheiro era para tomar uma cachacinha, só que eu fingia que não sabia. Ele era um homem forte, mas na cama era meio frouxo. No início ele me comia nos sábados, depois nem isso. Depois de seis meses sem me comer eu falei com ele, Jeferson, você não faz nada comigo tem seis meses, você tem outra mulher? Ele jurou por Deus que não tinha mulher nenhuma, aquilo que estava acontecendo com ele era porque ele estava muito preocupado por não conseguir arranjar emprego, o que deixava ele nervoso, e um homem nervoso não dá no couro. Eu disse, você passa o dia dormindo e vendo televisão, assim não vai arranjar emprego nunca. Jeferson respondeu que eu estava sendo injusta com ele, que eu não sabia o quanto ele sofria, que um homem com vergonha na cara odiava aquela situação, ser sustentado pela mulher. E fez uma cara de cachorro triste que cortou o meu coração.
Todo dia, quando saía pela manhã para ir para o trabalho, de segunda a sexta — meu patrão me dava folga no sábado e no domingo —, eu preparava tudo para o Jeferson, ele gostava de sanduíche de queijo e eu deixava os sanduíches prontos e o café na garrafa térmica para ele e para Jacqueline, ela e o Jeferson gostam de acordar tarde. Então eu levava o menino para a creche e a Gisele para o colégio e ia para o meu trabalho.
Acho que o meu patrão não dormia, pois a cama dele nunca estava desfeita e ele ficava lendo o dia inteiro ou então sentado na frente do computador e eu tinha que insistir para ele almoçar, não era fácil. Acho que é por isso que ele era tão magrelo, eu devo pesar o dobro dele, acho que era porque eu devorava biscoito o dia inteiro, e doce de leite, e chocolate, que eu comprava fingindo que era para ele, mas que ele nunca comia. Minha irmã, Severina, disse que eu estava muito gorda e que era por isso que o Jeferson não transava comigo.
No dia em que ela me disse isso pelo telefone eu saí do emprego e quando cheguei em casa o Jeferson estava vendo televisão e eu desliguei a televisão e perguntei, Jeferson, você não transa comigo é porque estou muito gorda? Ele respondeu, meu amorzinho, é aquele nervoso que eu falei, passo o dia procurando emprego e não arranjo nada, você não sabe como isso me faz sofrer. Já estou procurando emprego há mais de um ano, é duro.
Fiquei com peninha dele e liguei de novo a televisão.
O que vai ter hoje para o jantar?, Jeferson perguntou.
Respondi que ia fazer costeleta de porco com batata frita, que ele tanto gostava. Você é uma mulher maravilhosa, disse Jeferson acendendo um cigarro e olhando para a tela da televisão.
Modéstia à parte, eu faço uma costeleta de porco melhor do que qualquer restaurante. Jeferson come umas cinco, no mínimo.

Rubem Fonseca 
 
Conto extraído do livro "Ela e outras mulheres", Ed. Companhia Das Letras - São Paulo, págs.141 a 145

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