“Fiquei amiga do mendigo”, disse eu. “Pode riscar da sua lista das
coisas a se fazer”, respondeu meu irmão. Esse pequeno diálogo, ocorrido
outro dia com meu irmão, ao contar para ele sobre esse meu curto
encontro com o morador de rua, fez-me pensar nessa questão da empatia.
Estávamos eu e meu filho na cidade de São Paulo, dentro do metrô, em
direção à rodoviária para voltarmos para nossa cidade. Estávamos com
malas e bastante cansados, embora felizes.
O
trem estava cheio e, sentado em nossa frente, onde estávamos em pé,
estava um homem meio sujo, cheirando meio mal, descabelado, barbudo e
desdentado, tentando conversar com as duas mulheres que estavam ao lado
dele no banco. Elas simplesmente o ignoravam com cara de quem estava
aturando aquela criatura desprezível ao seu lado no metrô. Ele, então,
resolveu falar comigo. Perguntou-me de onde eu era, já que, segundo seu
julgamento, eu não parecia ser paulistana.
No momento, tive que
tomar a decisão sobre o que fazer. Responder a ele? Sair de lá e ir mais
longe? Ignorar, como faziam as outras mulheres? Eu estava acompanhada
de meu filho, que tem apenas 11 anos. Dessa forma, tenho uma preocupação
muito grande com minhas atitudes, uma vez que certamente, meu filho se
espelhará nelas. Eu sei bem que não adianta nada dizer a ele que “todos
os seres humanos têm o mesmo valor, que as pessoas menos favorecidas
economicamente também merecem nosso respeito, etc” e agir de forma que
negue isso.
Sempre que passo por momentos desse tipo, em que tenho
que servir de exemplo para meu filho em situações que envolvem algum
tipo de conduta ética me lembro do imperativo categórico do Kant. “Ages
somente segundo aquela máxima que possas a todo tempo querer que se
tornasse uma lei universal”. Na minha visão, quando temos filhos, essa
lei moral de Kant tem uma aplicação direta, uma vez que muito
provavelmente nossos filhos tomarão nossas ações como uma lei universal,
pelo menos, enquanto são crianças.
Dessa forma, sempre devemos
nos certificar de que TODAS as nossas ações devem ser feitas de tal
forma que aprovaríamos que fossem feitas por nossos filhos. É o tal do
exemplo. Se você age de uma forma, mas não gostaria que seu filho agisse
da mesma maneira e usa discursos contrários à sua própria ação,
provavelmente suas ações dizem mais do que suas palavras. Assim, tive
que tomar uma decisão por mim e por ele.
Nesse momento, resolvi,
então, OLHAR para o homem que estava sentado na minha frente e parece
que um limpador de para-brisas passou pelos meus olhos. Passei a
enxergar exatamente o que estava à minha frente: um ser humano querendo
ser visto como tal, tentando conversar com outras pessoas.
Respondi a ele que era do interior de São Paulo e o diálogo
continuou. Ele me disse que achava que eu era gaúcha, pela minha
aparência. Ele, por sua vez, era do Rio de Janeiro. Tinha se divorciado
da esposa em 2005. Tem dois filhos adultos, ambos terminando boas
faculdades. Ele, por infortúnios da vida, acabou perdendo o trabalho,
“por culpa da prefeitura” e acabou tendo que viver na rua por um tempo.
“Por isso, estou sujo assim. Mas eu tenho Deus no coração e sei que vou
sair dessa”, disse ele, batendo no peito e sorrindo seu sorriso sem
dentes.
E esse tal de “Seu Moço”, “com ar de gente marcada, mas o
coração sem espinho”, como diz a canção, afinal de contas, queria o que
de mim? Apenas ser visto como ser humano e conversar. Ele não estava me
assaltando, nem me assediando, nem pedindo dinheiro. Nada. Seus olhos
gritavam para mim apenas que o enxergasse como ser humano.
O
psiquiatra Flávio Gikovate dizia que a empatia é se colocar no lugar do
outro, mas não como se colocássemos a nossa alma no corpo do outro,
porque isso invariavelmente leva a um erro. Assim, se eu quisesse tentar
entender como se sente o morador de rua, mas pensando com a minha
cabeça, com a minha vivência e minha alma, certamente erraria. Temos que
tentar entrar na cabeça do outro “sendo” o outro mesmo, como um hacker,
disse o Gikovate.
Agora, veja só, se um homem como esse, cujos
olhos gritam tão alto, já temos dificuldade em enxergar, imagine aqueles
que são mais semelhantes a nós. Tenho a impressão de que temos uma
dificuldade cada vez maior de simplesmente enxergar a pessoa que está à
nossa frente e de tentar entender o que essa pessoa está passando,
sentindo. Assim, temos a tendência dessa falsa empatia, de nos
colocarmos com nossa alma na pele do outro e soltamos pérolas como “eu
no lugar de Fulano”… Isso leva a erros muito grandes de julgamento,
porque não é você no lugar de Fulano, mas sim, Fulano no lugar de
Fulano.
Quantas vezes não nos pegamos bufando dentro de um táxi,
porque aquele ser que dirige o carro ao qual estamos pagando apenas para
nos levar a nosso destino resolve puxar papo conosco. É como se
víssemos esse ser como uma peça a mais do carro, um algo mecânico, algo
que deveria “se colocar em seu lugar” e saber qual o seu papel: dirigir o
carro.
Parece exagero, mas se o mendigo sujo, desdentado e
descabelado passa a fazer parte do cenário do metrô, quantas não são as
pessoas que passam a fazer parte do “cenário” para nós e que nem sequer
nos damos conta de que são pessoas, com tudo o que vem junto nesse
pacote, ou seja, dores, amores, alegrias, tristezas, sonhos, segredos…
Rubem
Alves escreveu uma crônica sobre a bondade, em que usa a palavra
solidariedade. “A solidariedade me faz sentir sentimentos que não são
meus, que são de um outro. Acontece assim: eu vejo uma criança vendendo
balas num semáforo (…). Eu e a criança – dois corpos separados e
distintos. Mas, ao olhar para ela, estremeço: algo em mim me faz
imaginar aquilo que ela está sentindo. E então, por uma magia
inexplicável, esse sentimento imaginado se aloja junto dos meus próprios
sentimentos”. Ele diz que é assim que nasce a bondade.
Pois eu acho que, como tudo na vida, essa é uma via de mão dupla. No
momento em que vi o “semblante já bem castigado à custa de muita
‘pedreira’” desse Seu Moço que encontrei no metrô, algo mudou em mim,
minha visão se ampliou. Eu consegui realmente desbloquear uma conquista,
marcar um “check” na minha lista de coisas a se fazer antes de morrer,
como disse meu irmão, mas não foi ficar amiga de um mendigo, mas sim,
ampliar minha capacidade de enxergar o ser humano que existe na pessoa
que está à minha frente.
Se agora eu consegui enxergar com algum
esforço um ser tão gritante, dei um passo a mais em direção a enxergar
seres humanos com suas dores e suas histórias que passam pela minha
frente todos os dias e que eu, fechada na minha concha, no meu ego, na
melhor das hipóteses consigo dizer “eu no lugar dele”…
Como diz
também essa linda canção que citei ao longo do texto, chamada Seu Moço,
da cantora Anna Ratto, “fiz escola com Seu Moço, escola de dança da
vida”. Obrigada, Seu Moço, que possivelmente nunca mais encontrarei em
toda minha vida, mas que conseguiu me transformar em uma pessoa um
pouquinho menos cega, um pouquinho mais solidária, um pouquinho mais
humana.
Juliana Santin
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