É curioso como algumas frases ganham vida
própria. Como “Toque outra vez, Sam”, que todos se lembram de
“Casablanca”, mas ninguém diz no filme
Certa vez o jornalista José Onofre, para dar uma ideia de como
determinada terra era fértil, disse que onde você cuspisse no chão
nascia uma broncopneumonia. Em matéria de hipérbole, acho que a frase do
Zé se iguala ao “calor de rachar catedrais” do Nelson Rodrigues.
Os melhores hiperbolistas — os que dominam a arte do exagero — são
aqueles cujas metáforas não apenas transmitem a ideia desejada mas
funcionam como imagens vivas: você pode ver a imensa catedral de pedra
do Nelson Rodrigues, que resistiu ao sol de séculos, fender como um ovo
chocado sob um sol inédito, e não é difícil visualizar a broncopneumonia
do Zé brotando do chão e crescendo como um esguicho, espalhando seus
galhos espinhentos e dando frutos gotejantes.
O Paulo Francis considerava o José Onofre o melhor crítico brasileiro, sem exagero.
Frases, frases... É curioso como algumas ganham vida própria,
desligadas do seu contexto de nascença — ou apesar de nunca terem
nascido. Como a “Toque outra vez, Sam”, que todos se lembram de
“Casablanca”, mas ninguém diz no filme.
A frase mais citada do Príncipe de Salina, personagem principal do
livro “Il Gattopardo” do Lampedusa, “é preciso mudar para que as coisas
continuem como são”, não é dita pelo príncipe convencido de que a velha
aristocracia a que pertence precisa ceder para não ser engolida pela
História, e sim pelo seu sobrinho Tancredi, tentando convencê-lo.
Não me lembro se na adaptação para o cinema feita pelo Visconti a fala
de Tancredi é transferida para o príncipe, ou do Alain Delon para o Burt
Lancaster. Caberia. Ela combina mais com a resignação filosófica e a
ironia do velho. Seria um caso em que a nossa memória coletiva corrigiu o
autor.
E a Ingrid Bergman deveria ter pedido para o Sam tocar “As time goes by” muitas vezes.
Em quase todas as ilustrações que se vê do “ser ou não ser” do Hamlet o
melancólico príncipe tem um crânio na mão. Parece adequado que ele
discorra sobre as vantagens e desvantagens de estar vivo ou morto
contemplando uma cabeça descarnada, daí a insistência no erro. Mas a
caveira não tem nada a ver com o famoso solilóquio. É da cena do
cemitério. Pertence, ou pertenceu, ao bobo da corte, Yorick. É para ela
que Hamlet diz “Alas, poor Yorick, I knew him well”. Pobre Yorick, eu o
conheci bem.
Uma frase que também é lembrada errada. O que Shakespeare escreveu foi
“Alas, poor Yorick, I knew him Horatio”. Não tem o mesmo ritmo. O erro
está certo.
Luis Fernando Veríssimo
Do Blog do Noblat
Nenhum comentário:
Postar um comentário