Foi eu abrir a minha caixinha de pílulas, no café da manhã, e ele esticar o
pescoço para xeretar, tomado de súbita excitação:
— O que temos aí?
Tínhamos ali uns poucos e modestos fármacos, como ele gosta de dizer, não mais que
três bolotinhas brancas - e, diante do espetáculo pífìo, meu amigo pôs no rosto uma
expressão de superioridade próxima do desprezo. Sacou sua própria caixinha - palavra
reles demais para descrever 0 estojo de metal esmaltado que, por simples ação de
presença, reduziu a nada 0 recipiente de plástico plebeu onde os meus ridículos
comprimidos se comprimiram ainda mais, cobertos de vergonha farmacológica. Um
botãozinho, plec, descortinou teatralmente a profusão de pílulas, de diferentes cores,
formatos e tamanhos, para os mais variados males, presentes, futuros e passados, sem
excluir os imaginários. Como um lapidário com seus brilhantes e rubis, ele espalhou as
gemas sobre a mesa e foi fazendo as apresentações: esta é para isto, esta para
aquilo...
Cada qual tem nesta vida um assunto em que se sente mais à vontade, e 0 desse meu amigo
é remédio. Mas não qualquer um. Não ousem falar com ele de chás, florais, homeopatia.
Muito menos de medicamentos baratos, a seu ver incapazes, já por motivos econômicos, de
surtir efeito: é preciso que haja sofrimento monetário. Remédio sem bula? Meu amigo
não passa sem essa literatura de terror em que o nome mais simples de personagem tem sete
sílabas.
Faz mais fé nas pílulas coloridas do que nas brancas, nas cápsulas do que nos
comprimidos e, sobretudo, nas pastilhas efervescentes, que nem entraram ainda no organismo
e já estão, com suas borbulhas, mostrando serviço. É ver uma injeção e dar 0 braço
a picar. Gosta de remédio que arde - sinal de que está fazendo efeito. "Zé
Febrinhà', como costumamos chamá-lo, carrega seu termômetro aonde quer que vá. Adora
consulta médica, ocasião em que 0 assunto é ele, só ele e suas entranhas, e se anima
todo durante 0 interrogatório a respeito da caxumba na infância. É com entusiasmo
futebolístico que fala de suas passagens por salas de cirurgia, nas quais vem deixando
seus miúdos, das amígdalas ao prepúcio, do apêndice à vesícula biliar.
— Estou indo aos poucos — anuncia ele orgulhosamente.
Dia desses, ao telefone, enveredou pelo relato de seu despertar após a cirurgia de
vesícula. Ao abrir os olhos, a primeira coisa que percebeu, sobre 0 criado-mudo, foi um
potinho de plástico em cujo interior transparecia uma pedra escura e informe.
— Maior pedregulho, meu! — disse ele, feliz como garimpeiro que acaba de
recolher na bateia um graúdo diamante. Poucos homens já vi gabarem-se com tão segura
vaidade no quesito tamanho. Ou — que ele não me leve a mal — galinha cacarejar
com tanto júbilo ao botar um ovo.
O seu entusiasmo não diminuiu nem mesmo quando, incorporando o meu ocasional espírito de
porco, observei que uma ostra é capaz de feito bem maior, já que produz pérolas, não
calhaus fuliginosos.
— Você não sabe de nada — desdenhou ele, em seu pétreo orgulho mineral, e
entrou a falar da fita de vídeo que encontrou ao lado do potinho, ao voltar da anestesia:
0 filme, sem cortes, da sua cirurgia. A primeira peça, espera meu amigo, de uma videoteca
ambientada exclusivamente em suas entranhas.
Cerveja na mão e cumbuca de amendoim ao lado, ele já pôs para rodar incontáveis vezes
essa produção intimista, e, cinéfilo visceral, se compraz em descrever as passagens
mais emocionantes da extração de sua vesícula.
— Finalmente há uma prova de que você tem vida interior — disse eu.
— Você vai ver na primeira vez que vier aqui em casa — retrucou ele, não sei
se como promessa ou ameaça.
Como alguém que gostou mais do livro que do filme, meu amigo preferiu a pedra ao vídeo.
— Já me abriram várias vezes — deu-se à pachorra de explicar — e nunca
encontraram nada bom, só coisas inaproveitáveis. Agora acharam essa pedra. Pode não ser
uma pérola, como você diz, mas dá para guardar de lembrança.
Humberto Werneck
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