Porque é o dia do meu aniversário. Só. Enquanto espero, sento-me para descansar um
pouco, afinal já tudo está feito, a mesa posta, a bebida escolhida, os legumes limpos e
cortados, o arroz, o indispensável molho de cerejas (me preocupam as formigas e sua
terrível fome de açúcar) cuja textura e sabor comprovei na língua antes de vertê-lo
sobre cada sulco da alcatra de búfalo que lentamente vai dourando no forno e que me deu
enorme trabalho para conseguir no mercadinho da aldeia, mas enfim, é um dos pratos
preferidos de Alfredo e foi ele quem acabou me convencendo a preparar esta noite, a não
deixar passar em branco a data dos meus quarenta anos.
Agora não quero a companhia de Alfredo e Ana. Fiz com que fossem caminhar na praia e aproveitar os últimos instantes do sol que já vai descendo atrás dos morros e deixando essa luz amarelada, artificiosa, que faz o mar parecer mais fundo. Alfredo chegou a dizer que gostaria que eu fosse junto, mas eu sei que é mentira. Ele às vezes me irrita com essas pequenas falsidades, por pouco não lhe joguei na cara a verdade. Eu devia ter lhe mostrado, de uma vez por todas, que ainda sou eu quem dá as cartas nesse jogo. Acontece que tenho medo de magoar a Ana, ela parece me entender tão bem, foi logo puxando Alfredo pelo braço, sabia que agora eu precisava ficar verdadeiramente só.
Sinto muito cansaço, mas é um cansaço que me acalma, um adormecimento das forças. Hoje perdi o sono lá pelas quatro da manhã e não consegui continuar na cama, era como se ouvisse o vaivém nervoso das formigas na cozinha, dezenas, centenas de pontinhos pretos brotando nas frestas do azulejo, subindo pelo pé da mesa e avançando nos minúsculos farelos de açúcar e farinha sobre a toalha. Levantei e vi que Alfredo havia adormecido no sofá, todo desengonçado como sempre, o braço e a perna pendidos e tocando o tapete. Ana dormia no quarto, cercada por suas almofadas coloridas e com aquele eterno ar de bonequinha adolescente. É impressionante como ela é graciosa. Mesmo quando jogada sobre uma cama, qualquer posição que ela assuma me parece sempre muito natural. Ao contrário do Alfredo e do seu corpo rígido e pouco espontâneo.
A madrugada é sempre muito solitária, tratei de acordá-los dizendo que desejava ver o sol nascer na praia, mas não foi fácil colocá-los de pé, estavam tão inertes, mais dormentes e pesados do que de costume. Somente com o sacolejo do carro na estradinha de terra foi que me pareceram mais despertos. Ainda fazia o friozinho atrasado da noite quando estacionei. Estávamos sentados os três no banco da frente, e sobre o mar havia uma borra de cobre, como se o sol estivesse imerso na água. Eu precisava falar sobre tudo o que me angustiava e resolvi começar pelas formigas. Alfredo concordou que era impossível continuar ignorando-as e que era preciso dar fim a tudo aquilo. Conversamos também sobre a noite passada, eu disse que havia bebido demais, a ponto de nem lembrar a que horas tinha dormido. Alfredo igualmente reconheceu ter exagerado na tequila, estava com uma terrível dor de cabeça. Havia certo tom de desculpa e ansiedade na sua voz, ele sabe que ando muito frágil e que Ana não o perdoaria se ele me magoasse. O problema todo é essa loucura, essa cegueira que foi tomando conta dos dois. Ana está dividida, é evidente, ficou calada o tempo inteiro, olhando fixamente o horizonte até que o sol se levantasse ainda gotejante e iluminasse por completo a seda branca da pele do seu rosto.
Agora me vem de cheio esse peso no corpo, a terrível dor nas têmporas. Sentado de costas para a janela, observo melhor a casa sem a presença deles e começo a perceber o verdadeiro tamanho da nossa solidão. É aí que vejo o que sou, onde há falta, onde aguardo infantilmente um preenchimento. E cada segundo de espera é uma pequena morte dentro de mim, como se a ausência daqueles dois fosse a antecipação da minha própria ausência, como se já fôssemos, os três, meros autômatos de um teatro de ridícula melancolia. A sala da nossa casa: a luz entrando como uma facada de sol por cima do meu ombro estende uma língua espessa e amarela sobre o verniz do assoalho, vai tornando visível o peso do ar, dá ao ambiente um aspecto de sonho ou alucinação, mas sobretudo revela a calma das coisas, essa espécie de quietude dos sentidos que vai descendo sobre a prata dos talheres, sobre as porcelanas, sobre as taças que logo se encherão com o vinho da serenidade, sobre a cristaleira, o sofá, o piano, estendendo sobre todos os móveis da sala uma colcha diáfana e luminosa, e é como se cada objeto refletisse a antiga harmonia da nossa convivência, assim como cada um de nós é (ou foi) o reflexo dos pensamentos, atitudes, e até dos gestos do outro.
Já tudo está feito. Vou esperando pelo tempo e escuto o rumor das ondas, adivinhando a espuma branca que se desmancha em forma de sussurro na areia. Claro que sei que daqui a pouco Alfredo e Ana estarão comigo outra vez e eu os verei entrar por aquela porta, alegres e barulhentos como sempre voltam desses passeios pela praia, e sei que tentarão me divertir tão logo me vejam tristonho; mas farei charme, não rirei assim que Alfredo, com aquele sorriso paralisado de manequim de vitrine, contar a primeira piada; sacudirei a cabeça e moverei sem graça os lábios, direi que sempre fico assim no dia do meu aniversário. Então eu sei: Ana deslizará sua mão de veludo sobre minha cabeça e me abraçará sem falar nada; e Alfredo, ainda que vacile um instante, também se juntará a nós, um pouco rígido e dissimulando a emoção com ironia, ele nos cercará com seus braços longos e um tanto desproporcionais, e assim ficaremos, enternecidos e abraçados os três, perfeitamente integrados um ao outro como nos tempos da felicidade, sentindo o contato quente dos corpos, o toque de suas peles brandas, a presença deles ao meu lado, o que sempre me dá vontade de chorar.
Quarenta anos. Alfredo tem razão, é dia de vestir a melhor roupa, comer o prato mais saboroso, beber nesse cálice o vinho da celebração. Mas é também o tempo de mexer no passado, buscar nas lembranças o ponto de apoio para isto que agora se revela tão frágil: nosso convívio arranjado à força dos desejos, sentimentos e necessidades irreprimíveis, a solidão compartilhada, nossa vida a três como se fosse uma só.
Não existe tempo daqui a uma hora. Quero viver para trás, avançar até o ponto em que minha memória começa a registrar os fatos da nossa vida: o tempo iluminado em que os conheci: primeiro Ana, seu sorriso, Ana cristalizada, Ana boneca envolvida pela luz fria da vitrine de uma butique de shopping, quando nossos olhares se cruzaram através do vidro e percebemos ao mesmo instante que não mais nos separaríamos. Mas não consegui lhe falar naquele dia. Voltei duas, três, seis, tantas vezes voltei à frente da vitrine que a dona da loja já me olhava desconfiada quando finalmente entrei. Passei sem olhar para Ana e fui falar com a dona. Comentei sobre as roupas — Ana, naquele dia, fazia o tipo colegial adolescente, com uma jaqueta folgada, calça jeans e moletom —, mas acrescentei que o que me impressionara mesmo fora a concepção da vitrine sem os tradicionais manequins de gesso, paralisados e sem vida nenhuma, e que aqueles bonecos de pano — tive de piscar o olho para Ana, que já fazia um muxoxo — que os bonecos sim enchiam de vida as roupas com seus corpos flexíveis e a pele tão macia ao toque, os cachos de cabelos de lã, o desenho e a cor do rosto, aqueles olhos vivíssimos de Ana a me olharem com uma insistência que me encabulava. A dona da butique argumentou que as pessoas compravam roupas na sua loja e não os manequins, mas o valor do cheque dispensava explicações. Trouxe Ana comigo, colada ao meu corpo, caminhamos juntos sob um final de tarde repleto de ruídos de trânsito e gente nas ruas, o vaivém incessante de pessoas avançando a cada sinal que se fechava aos carros, as pessoas subindo e descendo as calçadas, cruzando-se em direção às suas casas, ao refúgio dos laços estabelecidos, ao convívio familiar.
Já com Alfredo foi diferente, não houve a longa preparação da abordagem, a coisa foi mais rápida e direta, e muito em função do próprio Alfredo, um sujeito acima de tudo bastante prático. Nós nos conhecemos num domingo de sol excessivo no Brique e sua tez pálida e elástica era o contraponto exato à luminosidade daquela manhã. Estático, metido numas roupas antiquadas, era uma velharia a mais exposta entre livros, discos antigos e uma porção de objetos fora de uso espalhados sobre uma toalha na calçada. Alfredo tem o dom de surpreender. À primeira vista podia ser apenas um desses super-heróis infláveis que depois de fazer a alegria dos meninos murcham esquecidos no canto da garagem, mas havia no seu olhar uma vivacidade superior, notei desde o início que aquele ar de joão-bobo encobria alguém muito espirituoso, inteligente e, às vezes, matemático demais (a ponto até de me deixar assustado). Além de tudo, Alfredo era o lado extrovertido que faltava a mim e a Ana, e por isso nos conquistou com facilidade, trouxe mais alegria à nossa vida, deixou-nos a todos mais completos. Sempre admirei o jeito despreocupado como ele encara as coisas, esta atitude de deixar que a vida entre como um sopro por seu corpo transformando-o em alguém sempre pronto para a ação, a objetividade. Quando lhe falei (ou pensei apenas?), quase por brincadeira, da idéia de mudarmos para perto do mar, de imediato ele tomou a coisa como decidida e tratou da venda do nosso apartamento, da escolha da praia mais adequada e do projeto da nova casa, da burocracia de bancos e cartórios e o cancelamento dos pequenos compromissos em Porto Alegre — nada mais do que vínculos impessoais e estritamente necessários à vida na cidade, porque de resto não precisávamos comunicar amigos, família ou coisas do tipo, tínhamos há muito nossa própria vida e éramos completamente independentes.
O lugar que escolhemos é perfeito (existem as formigas, mas), a paisagem é linda, podemos fazer longos passeios pela praia e depois subir em algum rochedo para admirarmos o verde do mar e o céu muito amplo e quase sempre azul. Claro que vivemos isolados, mas uma aldeia de pescadores a três quilômetros oferece-nos tudo o que precisamos, desde o mini-mercado até a farmácia. O pessoal de lá já se acostumou com a nossa convivência. No início eles estranharam, mas logo passamos a fazer parte da simplicidade e da naturalidade da vida na aldeia. São poucas as pessoas de fora que vêm aqui, no máximo namorados em busca de isolamento para o amor. Até gostamos quando um ou outro destes casais aparecem. Nunca nos aproximamos muito, mas mesmo à distância nos enternecemos com o carinho que demonstram em cada gesto ou sorriso, nas mãos dadas, nos abraços.
Nossa casa é boa (o único inconveniente são as formigas, de resto), é espaçosa, arejada, mas não foi fácil ajustar o projeto de forma a satisfazer o gosto dos três. Há uma varanda ampla que dá para o mar, com folhagens e uma rede de dormir, onde costumamos conversar demoradamente e onde jogamos os jogos que vamos inventando para passar o tempo. No verão é o lugar de sentir a brisa do entardecer bebendo refrescos ou gim-tônica e lendo Virgínia Woolf, Silvia Plath e Sá-Carneiro. No inverno cerramos o janelão de vidro e passamos as horas tomando café e falando sobre nós, ou simplesmente nos metemos em silêncio, a olhar através da névoa salgada o mar espesso e seu céu de chumbo. São dias e noites frias. Confesso que às vezes sinto um frio excessivo por dentro, como uma corrente de sangue gelado inundando as veias. É um frio que cresce na carne e nos ossos, e brota na pele como um grande arrepio, quase um grito do meu corpo. Então enrolo-me no cobertor e vou em silêncio até o quarto de Ana. Caminho até sua cama e, primeiro, sento na borda do estrado, aguardo em vão que ela me diga algo para depois, como que agradecendo aquele silêncio de consentimento, aninhar-me junto ao corpo dela que, impassivelmente, num silêncio até mesmo dos gestos, deixa-se rolar no colchão para me dar um espaço dentro do seu espaço, e o calor da sua companhia.
Mas nossa vida é simples, dividimos as tarefas domésticas de acordo com as preferências de cada um. O dinheiro é meu e está aplicado, mas quem cuida disto é Alfredo, o mais prático dos três (estou me repetindo). Ana se ocupa em dar graça à casa, cuidar das flores, embelezar nossa sala com pequenos objetos que ela mesma fabrica ou descobre não sei onde. Sou eu quem geralmente cozinha e se encarrega das bebidas, gosto de misturar condimentos, experimentar temperos, matar a fome deles e a minha com imaginação e sensibilidade.
O único inconveniente aqui são as formigas (sei que estou me repetindo), sinto a presença de milhares, milhões delas fervilhando nas galerias que se ramificam sob nossos pés em infinitos veios subterrâneos, sou capaz de ouvir o barulho que não fazem (estou me repetindo), o rumor de uma multidão nervosa, insone, viva. Apavora-me a idéia de estar vivendo junto a um formigueiro gigante, e acho que Alfredo percebeu isto, sei que ele esteve na aldeia e pediu auxílio ao dono da farmácia (eu sei de tudo, sei de tudo), mas não me disse nada. Alfredo passou a fazer segredo de algumas coisas desde que ele e Ana começaram a viver essa aventura, tão evidente apesar do esforço deles para encobrir (eu sei). Ana está contrariada, é visível, na certa Alfredo a pressiona para que não comente o assunto. Também não falo nada, quero ver até onde são capazes de chegar — melhor seria dizer até onde Alfredo é capaz (onde eu sou, ou seria capaz) de chegar.
Ontem fomos jantar na aldeia, no restaurantezinho da Dona Carmelinda, como fazemos todas as semanas, e notei que eles estavam bastante alegres, quase felizes eu diria. Mas eu os conheço demais. Havia o nítido traço de desassossego em seus rostos, principalmente no de Alfredo. Estávamos pouco à vontade, mas Dona Carmelinda logo descontraiu a todos nós. Ela nos recebe sempre com festa e naturalidade, os pratos dispostos na mesa como da primeira vez (foi difícil a primeira vez, olhou-me desconfiada e perguntou se eles também iam comer): Alfredo e eu frente a frente, e Ana ao meu lado. Como sempre, servi a bebida primeiro a Ana que, como sempre, não fez nenhum movimento para alcançar o copo. Depois, quando vieram os pãezinhos, eu me apressei em partir um pedaço, passar a manteiga e levar à boca de Ana. Mas ela simplesmente deixou que o pão caísse sobre o prato, imóvel, fria, como se estivesse zangada comigo. Dona Carmelinda aproximou-se desde a porta da cozinha e disse que talvez Ana não estivesse com fome àquela hora. Fazia dois meses que a Dona Carmelinda tinha me presenteado com um recorte de jornal todo amassado, onde havia a receita da carne de búfalo. Desde então Alfredo insistia que devíamos fazê-la no meu aniversário. Voltei a pedir detalhes sobre o tempero e o preparo do molho, ela me deu um pote de vidro com gengibre moído e recomendou que adicionasse duas colherinhas assim que começasse a engrossar. Depois trouxe-nos uma cachacinha do seu alambique e em seguida serviu-nos a moqueca que só ela sabia preparar. Comemos e bebemos cerveja, voltamos para casa já um pouco altos e abrimos uma garrafa de tequila. Estávamos com vontade de beber e esvaziamos a garrafa enquanto cantávamos e dançávamos e ríamos os três abraçados. Fui à cozinha apanhar outra garrafa e me deparei com o incansável tráfego das formigas em suas trilhas sobre a lajota. Insuportável. Não tínhamos mais saída, Alfredo estava certo, era preciso acabar de uma vez com aquele suplício, sou capaz de ouvi-lo pensar (ouço o barulho que não fazem) na idéia de pôr um fim a tudo, sou capaz de vê-lo comprando aspirinas para a sua dor de cabeça e tomando mate com o farmacêutico, o assunto quase casual das pragas domésticas e as particularidades das formigas, a conversa derivando para a solução infalível de um pó fora de mercado e já quase esquecido entre caixas e frascos lá no depósito da farmácia, a facilidade de misturá-lo ao açúcar no armário, no chão, pelos cantos, nas frestas dos azulejos, sou capaz de elaborar a lógica de Alfredo e me descobrir nas suas roupas, nos seus gestos, na sua fala e nos seus desejos, descubro-me na própria existência de Alfredo e também na de Ana, desdobramentos obscuros de uma vida que já se afasta tanto, que aspira cada vez mais a um deserto, à solidão definitiva.
Apanhei outra garrafa de tequila (tenho que acabar logo com isto) no armário da cozinha, busquei copos limpos entre os potes de arroz e farinha e açúcar, o frasco com o gengibre em pó para misturar ao molho, as cerejas, vidrinhos de tempero e condimentos e sabores e efeitos. Quando voltei à sala eles já haviam adormecido no tapete. Não os coloquei na cama como fizera outras vezes, bebi mais dois copos e fui para o quarto. Mas não conseguia dormir. Parece que eu estava esperando aquilo acontecer. Ouvi um barulho sussurrado, retomei à sala e então me deparei com esta cena que ficará encravada na minha memória como uma fotografia do meu fim. O que senti foi humilhação, nada mais nada menos, e quase nada é mais violento do que a humilhação: Alfredo e Ana tinham fingido dormir para que eu me retirasse, e agora se amavam nus sobre o sofá. Fiquei algum tempo só olhando. Fiquei só olhando, era o que eu podia fazer. Então comecei a sentir que minha mão deslizava devagar e viva sobre meu peito, que a minha pele reagia ao toque dos meus dedos como se fosse o toque de outros dedos a circundar-me os mamilos duros e a descer arranhando-me os sulcos entre as costelas, que eu tocava meu corpo como se tocasse um corpo que não era meu, enquanto Ana grunhia umas palavras incompreensíveis e o seu corpo ardia embaixo do corpo de Alfredo se retorcendo vivamente, era ela pronta, ela pedindo, ela cravando as unhas nas nádegas de Alfredo num urro impressionante, enquanto eu banhava as mãos com meus líquidos em três, quatro, cinco jorros doloridos que levaram os últimos traços de vida que havia em mim.
Agora estou morto (estou sozinho, é a mesma coisa), sentado de costas para um sol que se põe definitivamente, sufocado pela demora de Alfredo e Ana. Mas de certa maneira me conforta saber que eles estão felizes, alguma parte de mim também está. Quero abrir a janela mas já não me restam forças. Está muito abafado, a carne vai passar do ponto, os legumes escolhidos, o gengibre em pó. Preciso ver como está o assado, talvez as formigas tenham invadido o prato, talvez até já existam algumas boiando no caldo vermelho das cerejas. Preciso me erguer e não me mostrar tão fraco para Alfredo e Ana. Eu sei que eles vão chegar em seguida (eu sei de tudo), eles já estão a caminho, estão de mãos dadas e atravessam devagar a faixa de areia que separa a casa do mar, aproximam-se radiantes, eu sei, por entre os pequenos canteiros do jardim. Ana está muito alegre e descontraída, sou capaz de vê-la ainda colher uma rosa, cheirar e prendê-la na alça do vestido antes de abrir a porta e agarrar-se ao braço de Alfredo, gritar e esmurrar o peito de Alfredo que está dizendo para ela ter controle e calma, Ana, por favor tenha calma e não complique as coisas, não precisa olhar, Ana, leve estes pratos daqui, junte estes frascos, mas por favor tente se controlar, Ana, veja só quanta formiga no chão, me ajude a deitá-lo no sofá, cuidado Ana, temos que varrer essas malditas formigas, pega a vassoura, Ana, mas pára de chorar, por favor pára de gritar, Ana, pára com isso, pára.
Agora não quero a companhia de Alfredo e Ana. Fiz com que fossem caminhar na praia e aproveitar os últimos instantes do sol que já vai descendo atrás dos morros e deixando essa luz amarelada, artificiosa, que faz o mar parecer mais fundo. Alfredo chegou a dizer que gostaria que eu fosse junto, mas eu sei que é mentira. Ele às vezes me irrita com essas pequenas falsidades, por pouco não lhe joguei na cara a verdade. Eu devia ter lhe mostrado, de uma vez por todas, que ainda sou eu quem dá as cartas nesse jogo. Acontece que tenho medo de magoar a Ana, ela parece me entender tão bem, foi logo puxando Alfredo pelo braço, sabia que agora eu precisava ficar verdadeiramente só.
Sinto muito cansaço, mas é um cansaço que me acalma, um adormecimento das forças. Hoje perdi o sono lá pelas quatro da manhã e não consegui continuar na cama, era como se ouvisse o vaivém nervoso das formigas na cozinha, dezenas, centenas de pontinhos pretos brotando nas frestas do azulejo, subindo pelo pé da mesa e avançando nos minúsculos farelos de açúcar e farinha sobre a toalha. Levantei e vi que Alfredo havia adormecido no sofá, todo desengonçado como sempre, o braço e a perna pendidos e tocando o tapete. Ana dormia no quarto, cercada por suas almofadas coloridas e com aquele eterno ar de bonequinha adolescente. É impressionante como ela é graciosa. Mesmo quando jogada sobre uma cama, qualquer posição que ela assuma me parece sempre muito natural. Ao contrário do Alfredo e do seu corpo rígido e pouco espontâneo.
A madrugada é sempre muito solitária, tratei de acordá-los dizendo que desejava ver o sol nascer na praia, mas não foi fácil colocá-los de pé, estavam tão inertes, mais dormentes e pesados do que de costume. Somente com o sacolejo do carro na estradinha de terra foi que me pareceram mais despertos. Ainda fazia o friozinho atrasado da noite quando estacionei. Estávamos sentados os três no banco da frente, e sobre o mar havia uma borra de cobre, como se o sol estivesse imerso na água. Eu precisava falar sobre tudo o que me angustiava e resolvi começar pelas formigas. Alfredo concordou que era impossível continuar ignorando-as e que era preciso dar fim a tudo aquilo. Conversamos também sobre a noite passada, eu disse que havia bebido demais, a ponto de nem lembrar a que horas tinha dormido. Alfredo igualmente reconheceu ter exagerado na tequila, estava com uma terrível dor de cabeça. Havia certo tom de desculpa e ansiedade na sua voz, ele sabe que ando muito frágil e que Ana não o perdoaria se ele me magoasse. O problema todo é essa loucura, essa cegueira que foi tomando conta dos dois. Ana está dividida, é evidente, ficou calada o tempo inteiro, olhando fixamente o horizonte até que o sol se levantasse ainda gotejante e iluminasse por completo a seda branca da pele do seu rosto.
Agora me vem de cheio esse peso no corpo, a terrível dor nas têmporas. Sentado de costas para a janela, observo melhor a casa sem a presença deles e começo a perceber o verdadeiro tamanho da nossa solidão. É aí que vejo o que sou, onde há falta, onde aguardo infantilmente um preenchimento. E cada segundo de espera é uma pequena morte dentro de mim, como se a ausência daqueles dois fosse a antecipação da minha própria ausência, como se já fôssemos, os três, meros autômatos de um teatro de ridícula melancolia. A sala da nossa casa: a luz entrando como uma facada de sol por cima do meu ombro estende uma língua espessa e amarela sobre o verniz do assoalho, vai tornando visível o peso do ar, dá ao ambiente um aspecto de sonho ou alucinação, mas sobretudo revela a calma das coisas, essa espécie de quietude dos sentidos que vai descendo sobre a prata dos talheres, sobre as porcelanas, sobre as taças que logo se encherão com o vinho da serenidade, sobre a cristaleira, o sofá, o piano, estendendo sobre todos os móveis da sala uma colcha diáfana e luminosa, e é como se cada objeto refletisse a antiga harmonia da nossa convivência, assim como cada um de nós é (ou foi) o reflexo dos pensamentos, atitudes, e até dos gestos do outro.
Já tudo está feito. Vou esperando pelo tempo e escuto o rumor das ondas, adivinhando a espuma branca que se desmancha em forma de sussurro na areia. Claro que sei que daqui a pouco Alfredo e Ana estarão comigo outra vez e eu os verei entrar por aquela porta, alegres e barulhentos como sempre voltam desses passeios pela praia, e sei que tentarão me divertir tão logo me vejam tristonho; mas farei charme, não rirei assim que Alfredo, com aquele sorriso paralisado de manequim de vitrine, contar a primeira piada; sacudirei a cabeça e moverei sem graça os lábios, direi que sempre fico assim no dia do meu aniversário. Então eu sei: Ana deslizará sua mão de veludo sobre minha cabeça e me abraçará sem falar nada; e Alfredo, ainda que vacile um instante, também se juntará a nós, um pouco rígido e dissimulando a emoção com ironia, ele nos cercará com seus braços longos e um tanto desproporcionais, e assim ficaremos, enternecidos e abraçados os três, perfeitamente integrados um ao outro como nos tempos da felicidade, sentindo o contato quente dos corpos, o toque de suas peles brandas, a presença deles ao meu lado, o que sempre me dá vontade de chorar.
Quarenta anos. Alfredo tem razão, é dia de vestir a melhor roupa, comer o prato mais saboroso, beber nesse cálice o vinho da celebração. Mas é também o tempo de mexer no passado, buscar nas lembranças o ponto de apoio para isto que agora se revela tão frágil: nosso convívio arranjado à força dos desejos, sentimentos e necessidades irreprimíveis, a solidão compartilhada, nossa vida a três como se fosse uma só.
Não existe tempo daqui a uma hora. Quero viver para trás, avançar até o ponto em que minha memória começa a registrar os fatos da nossa vida: o tempo iluminado em que os conheci: primeiro Ana, seu sorriso, Ana cristalizada, Ana boneca envolvida pela luz fria da vitrine de uma butique de shopping, quando nossos olhares se cruzaram através do vidro e percebemos ao mesmo instante que não mais nos separaríamos. Mas não consegui lhe falar naquele dia. Voltei duas, três, seis, tantas vezes voltei à frente da vitrine que a dona da loja já me olhava desconfiada quando finalmente entrei. Passei sem olhar para Ana e fui falar com a dona. Comentei sobre as roupas — Ana, naquele dia, fazia o tipo colegial adolescente, com uma jaqueta folgada, calça jeans e moletom —, mas acrescentei que o que me impressionara mesmo fora a concepção da vitrine sem os tradicionais manequins de gesso, paralisados e sem vida nenhuma, e que aqueles bonecos de pano — tive de piscar o olho para Ana, que já fazia um muxoxo — que os bonecos sim enchiam de vida as roupas com seus corpos flexíveis e a pele tão macia ao toque, os cachos de cabelos de lã, o desenho e a cor do rosto, aqueles olhos vivíssimos de Ana a me olharem com uma insistência que me encabulava. A dona da butique argumentou que as pessoas compravam roupas na sua loja e não os manequins, mas o valor do cheque dispensava explicações. Trouxe Ana comigo, colada ao meu corpo, caminhamos juntos sob um final de tarde repleto de ruídos de trânsito e gente nas ruas, o vaivém incessante de pessoas avançando a cada sinal que se fechava aos carros, as pessoas subindo e descendo as calçadas, cruzando-se em direção às suas casas, ao refúgio dos laços estabelecidos, ao convívio familiar.
Já com Alfredo foi diferente, não houve a longa preparação da abordagem, a coisa foi mais rápida e direta, e muito em função do próprio Alfredo, um sujeito acima de tudo bastante prático. Nós nos conhecemos num domingo de sol excessivo no Brique e sua tez pálida e elástica era o contraponto exato à luminosidade daquela manhã. Estático, metido numas roupas antiquadas, era uma velharia a mais exposta entre livros, discos antigos e uma porção de objetos fora de uso espalhados sobre uma toalha na calçada. Alfredo tem o dom de surpreender. À primeira vista podia ser apenas um desses super-heróis infláveis que depois de fazer a alegria dos meninos murcham esquecidos no canto da garagem, mas havia no seu olhar uma vivacidade superior, notei desde o início que aquele ar de joão-bobo encobria alguém muito espirituoso, inteligente e, às vezes, matemático demais (a ponto até de me deixar assustado). Além de tudo, Alfredo era o lado extrovertido que faltava a mim e a Ana, e por isso nos conquistou com facilidade, trouxe mais alegria à nossa vida, deixou-nos a todos mais completos. Sempre admirei o jeito despreocupado como ele encara as coisas, esta atitude de deixar que a vida entre como um sopro por seu corpo transformando-o em alguém sempre pronto para a ação, a objetividade. Quando lhe falei (ou pensei apenas?), quase por brincadeira, da idéia de mudarmos para perto do mar, de imediato ele tomou a coisa como decidida e tratou da venda do nosso apartamento, da escolha da praia mais adequada e do projeto da nova casa, da burocracia de bancos e cartórios e o cancelamento dos pequenos compromissos em Porto Alegre — nada mais do que vínculos impessoais e estritamente necessários à vida na cidade, porque de resto não precisávamos comunicar amigos, família ou coisas do tipo, tínhamos há muito nossa própria vida e éramos completamente independentes.
O lugar que escolhemos é perfeito (existem as formigas, mas), a paisagem é linda, podemos fazer longos passeios pela praia e depois subir em algum rochedo para admirarmos o verde do mar e o céu muito amplo e quase sempre azul. Claro que vivemos isolados, mas uma aldeia de pescadores a três quilômetros oferece-nos tudo o que precisamos, desde o mini-mercado até a farmácia. O pessoal de lá já se acostumou com a nossa convivência. No início eles estranharam, mas logo passamos a fazer parte da simplicidade e da naturalidade da vida na aldeia. São poucas as pessoas de fora que vêm aqui, no máximo namorados em busca de isolamento para o amor. Até gostamos quando um ou outro destes casais aparecem. Nunca nos aproximamos muito, mas mesmo à distância nos enternecemos com o carinho que demonstram em cada gesto ou sorriso, nas mãos dadas, nos abraços.
Nossa casa é boa (o único inconveniente são as formigas, de resto), é espaçosa, arejada, mas não foi fácil ajustar o projeto de forma a satisfazer o gosto dos três. Há uma varanda ampla que dá para o mar, com folhagens e uma rede de dormir, onde costumamos conversar demoradamente e onde jogamos os jogos que vamos inventando para passar o tempo. No verão é o lugar de sentir a brisa do entardecer bebendo refrescos ou gim-tônica e lendo Virgínia Woolf, Silvia Plath e Sá-Carneiro. No inverno cerramos o janelão de vidro e passamos as horas tomando café e falando sobre nós, ou simplesmente nos metemos em silêncio, a olhar através da névoa salgada o mar espesso e seu céu de chumbo. São dias e noites frias. Confesso que às vezes sinto um frio excessivo por dentro, como uma corrente de sangue gelado inundando as veias. É um frio que cresce na carne e nos ossos, e brota na pele como um grande arrepio, quase um grito do meu corpo. Então enrolo-me no cobertor e vou em silêncio até o quarto de Ana. Caminho até sua cama e, primeiro, sento na borda do estrado, aguardo em vão que ela me diga algo para depois, como que agradecendo aquele silêncio de consentimento, aninhar-me junto ao corpo dela que, impassivelmente, num silêncio até mesmo dos gestos, deixa-se rolar no colchão para me dar um espaço dentro do seu espaço, e o calor da sua companhia.
Mas nossa vida é simples, dividimos as tarefas domésticas de acordo com as preferências de cada um. O dinheiro é meu e está aplicado, mas quem cuida disto é Alfredo, o mais prático dos três (estou me repetindo). Ana se ocupa em dar graça à casa, cuidar das flores, embelezar nossa sala com pequenos objetos que ela mesma fabrica ou descobre não sei onde. Sou eu quem geralmente cozinha e se encarrega das bebidas, gosto de misturar condimentos, experimentar temperos, matar a fome deles e a minha com imaginação e sensibilidade.
O único inconveniente aqui são as formigas (sei que estou me repetindo), sinto a presença de milhares, milhões delas fervilhando nas galerias que se ramificam sob nossos pés em infinitos veios subterrâneos, sou capaz de ouvir o barulho que não fazem (estou me repetindo), o rumor de uma multidão nervosa, insone, viva. Apavora-me a idéia de estar vivendo junto a um formigueiro gigante, e acho que Alfredo percebeu isto, sei que ele esteve na aldeia e pediu auxílio ao dono da farmácia (eu sei de tudo, sei de tudo), mas não me disse nada. Alfredo passou a fazer segredo de algumas coisas desde que ele e Ana começaram a viver essa aventura, tão evidente apesar do esforço deles para encobrir (eu sei). Ana está contrariada, é visível, na certa Alfredo a pressiona para que não comente o assunto. Também não falo nada, quero ver até onde são capazes de chegar — melhor seria dizer até onde Alfredo é capaz (onde eu sou, ou seria capaz) de chegar.
Ontem fomos jantar na aldeia, no restaurantezinho da Dona Carmelinda, como fazemos todas as semanas, e notei que eles estavam bastante alegres, quase felizes eu diria. Mas eu os conheço demais. Havia o nítido traço de desassossego em seus rostos, principalmente no de Alfredo. Estávamos pouco à vontade, mas Dona Carmelinda logo descontraiu a todos nós. Ela nos recebe sempre com festa e naturalidade, os pratos dispostos na mesa como da primeira vez (foi difícil a primeira vez, olhou-me desconfiada e perguntou se eles também iam comer): Alfredo e eu frente a frente, e Ana ao meu lado. Como sempre, servi a bebida primeiro a Ana que, como sempre, não fez nenhum movimento para alcançar o copo. Depois, quando vieram os pãezinhos, eu me apressei em partir um pedaço, passar a manteiga e levar à boca de Ana. Mas ela simplesmente deixou que o pão caísse sobre o prato, imóvel, fria, como se estivesse zangada comigo. Dona Carmelinda aproximou-se desde a porta da cozinha e disse que talvez Ana não estivesse com fome àquela hora. Fazia dois meses que a Dona Carmelinda tinha me presenteado com um recorte de jornal todo amassado, onde havia a receita da carne de búfalo. Desde então Alfredo insistia que devíamos fazê-la no meu aniversário. Voltei a pedir detalhes sobre o tempero e o preparo do molho, ela me deu um pote de vidro com gengibre moído e recomendou que adicionasse duas colherinhas assim que começasse a engrossar. Depois trouxe-nos uma cachacinha do seu alambique e em seguida serviu-nos a moqueca que só ela sabia preparar. Comemos e bebemos cerveja, voltamos para casa já um pouco altos e abrimos uma garrafa de tequila. Estávamos com vontade de beber e esvaziamos a garrafa enquanto cantávamos e dançávamos e ríamos os três abraçados. Fui à cozinha apanhar outra garrafa e me deparei com o incansável tráfego das formigas em suas trilhas sobre a lajota. Insuportável. Não tínhamos mais saída, Alfredo estava certo, era preciso acabar de uma vez com aquele suplício, sou capaz de ouvi-lo pensar (ouço o barulho que não fazem) na idéia de pôr um fim a tudo, sou capaz de vê-lo comprando aspirinas para a sua dor de cabeça e tomando mate com o farmacêutico, o assunto quase casual das pragas domésticas e as particularidades das formigas, a conversa derivando para a solução infalível de um pó fora de mercado e já quase esquecido entre caixas e frascos lá no depósito da farmácia, a facilidade de misturá-lo ao açúcar no armário, no chão, pelos cantos, nas frestas dos azulejos, sou capaz de elaborar a lógica de Alfredo e me descobrir nas suas roupas, nos seus gestos, na sua fala e nos seus desejos, descubro-me na própria existência de Alfredo e também na de Ana, desdobramentos obscuros de uma vida que já se afasta tanto, que aspira cada vez mais a um deserto, à solidão definitiva.
Apanhei outra garrafa de tequila (tenho que acabar logo com isto) no armário da cozinha, busquei copos limpos entre os potes de arroz e farinha e açúcar, o frasco com o gengibre em pó para misturar ao molho, as cerejas, vidrinhos de tempero e condimentos e sabores e efeitos. Quando voltei à sala eles já haviam adormecido no tapete. Não os coloquei na cama como fizera outras vezes, bebi mais dois copos e fui para o quarto. Mas não conseguia dormir. Parece que eu estava esperando aquilo acontecer. Ouvi um barulho sussurrado, retomei à sala e então me deparei com esta cena que ficará encravada na minha memória como uma fotografia do meu fim. O que senti foi humilhação, nada mais nada menos, e quase nada é mais violento do que a humilhação: Alfredo e Ana tinham fingido dormir para que eu me retirasse, e agora se amavam nus sobre o sofá. Fiquei algum tempo só olhando. Fiquei só olhando, era o que eu podia fazer. Então comecei a sentir que minha mão deslizava devagar e viva sobre meu peito, que a minha pele reagia ao toque dos meus dedos como se fosse o toque de outros dedos a circundar-me os mamilos duros e a descer arranhando-me os sulcos entre as costelas, que eu tocava meu corpo como se tocasse um corpo que não era meu, enquanto Ana grunhia umas palavras incompreensíveis e o seu corpo ardia embaixo do corpo de Alfredo se retorcendo vivamente, era ela pronta, ela pedindo, ela cravando as unhas nas nádegas de Alfredo num urro impressionante, enquanto eu banhava as mãos com meus líquidos em três, quatro, cinco jorros doloridos que levaram os últimos traços de vida que havia em mim.
Agora estou morto (estou sozinho, é a mesma coisa), sentado de costas para um sol que se põe definitivamente, sufocado pela demora de Alfredo e Ana. Mas de certa maneira me conforta saber que eles estão felizes, alguma parte de mim também está. Quero abrir a janela mas já não me restam forças. Está muito abafado, a carne vai passar do ponto, os legumes escolhidos, o gengibre em pó. Preciso ver como está o assado, talvez as formigas tenham invadido o prato, talvez até já existam algumas boiando no caldo vermelho das cerejas. Preciso me erguer e não me mostrar tão fraco para Alfredo e Ana. Eu sei que eles vão chegar em seguida (eu sei de tudo), eles já estão a caminho, estão de mãos dadas e atravessam devagar a faixa de areia que separa a casa do mar, aproximam-se radiantes, eu sei, por entre os pequenos canteiros do jardim. Ana está muito alegre e descontraída, sou capaz de vê-la ainda colher uma rosa, cheirar e prendê-la na alça do vestido antes de abrir a porta e agarrar-se ao braço de Alfredo, gritar e esmurrar o peito de Alfredo que está dizendo para ela ter controle e calma, Ana, por favor tenha calma e não complique as coisas, não precisa olhar, Ana, leve estes pratos daqui, junte estes frascos, mas por favor tente se controlar, Ana, veja só quanta formiga no chão, me ajude a deitá-lo no sofá, cuidado Ana, temos que varrer essas malditas formigas, pega a vassoura, Ana, mas pára de chorar, por favor pára de gritar, Ana, pára com isso, pára.
Amílcar Bettega Barbosa
Texto extraído do livro “Geração 90: manuscritos de computador”, Boitempo Editorial – São Paulo, 2001, pág. 31.
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