Vivemos sufocados pelas amarras do dia a dia
Um dos recursos
para suportar o mundo insuportável de hoje é transformá-lo em um teatro.
Encenar a vida nos ajuda a tomar distância para observá-la com alguma
serenidade. Vivemos sufocados pelas amarras do dia a dia. Não sobra tempo para
respirar, para refletir, para ser. Não sobra tempo para ver. A cegueira define
nosso mundo super exposto, no qual a saturação de imagens, em vez de iluminar,
cega. São tantas as imagens, tantos os apelos, tanta luminosidade, tantos
escândalos que, desorientados, só nos resta rastejar à procura de uma direção.
Vivemos em um mundo obsceno — no qual tudo se expõe. Para a ele se opor, só
resta o pudor da intimidade. E nada mais íntimo que a arte.
A ideia da representação
como salvação está no centro da narrativa de Grito (Record), novo
romance de Godofredo de Oliveira Neto. Vizinhos em apertados apartamentos de
Copacabana, a octogenária Eugênia e o jovem Fausto cultivam uma relação baseada
no teatro. No passado, Eugênia foi uma grande atriz. Fausto planeja ser um
grande ator do futuro. O tempo se encolhe e se encontra nos dois cubículos,
pequenos conjugados, em que vivem. A vida é pura repetição e, para enfrentá-la,
devemos nos agarrar a nossas obsessões. Imitar Alain, um dos personagens que a
dupla representa, que já leu o Werther, de Goethe,
trinta e sete vezes e continua sempre a ler.
Como nas peças de
teatro, o romance de Godofredo é dividido em vinte e um atos. Neles, as vidas
melancólicas de Eugênia e de Fausto se misturam com representações teatrais,
ora no apartamento de um, ora do outro. Teatralizam seus horrores, seus
pesadelos, suas obsessões, que se mesclam com referências aos grandes
clássicos. Fausto é o ator — que representa textos concebidos por Eugênia. Nas
representações, ela ocupa o lugar da plateia. Encenando a vida — como fazem as
crianças em suas brincadeiras —, as coisas se tornam não apenas mais
suportáveis, mas mais ricas. Leitora apaixonada de Paul Valéry, Eugênia se
agarra a uma citação do poeta francês: “E de repente encontro e crio o real.
Minha mão se sente tocada tanto quanto ela toca. O real é isso”.
Não basta viver o
real, é preciso reinventá-lo. Iludem-se os que acreditam que o mundo está
pronto, que os acontecimentos são naturais e que a vida é regida pelo destino.
A invenção desmente isso, a arte também. Para sobreviver, mostram os
personagens de Godofredo, é preciso não aceitar passivamente o mundo, mas
tratar de reconstruí-lo. Essa reinvenção pode se realizar através de um simples
grito — como os emitidos pelo belo Fausto sempre que começa em um novo emprego.
O grito sublinha a felicidade, mas também prenuncia a chegada a si. Cada vez
que começa um trabalho novo, o rapaz tem o sentimento de que outro mundo se
descortina. Pena que nunca consiga sustentá-lo, e pouco depois já está sem
emprego novamente.
Representação,
invenção, grito: estes são alguns conceitos que Godofredo nos oferece para
pensar o mundo de hoje. Basta observar a realidade brasileira. Temos a forte
sensação de que um script pré-moldado — como num teatro — rege a cena. De que
os diversos atores políticos e sociais se limitam a representar papéis
prescritos anteriormente. Há algo de fantoche no Brasil atual. O problema é
que, ao contrário do que acontece no teatro, os papéis se embaralham, as
identidades se mesclam e se disfarçam, o enredo tem cortes bruscos e
inaceitáveis. As máscaras dançam, ficamos tontos. Seja como for, somos
espectadores de uma grande peça viva. Não só espectadores, mas personagens
também. É preciso suportar o real. E é preciso não aceitar o papel de
marionetes, mas tomar o comando de nossas atuações.
Essa é a
principal dificuldade do jovem Fausto em Grito. Apesar de sua
paixão pelo teatro, o rapaz leva uma vida desgovernada, que a velha Eugênia
tenta conter e direcionar. Tem, ainda, uma vida secreta, um passado trancado a
sete chaves, sobre o qual se recusa a falar. Prisioneiro de um presente
perpétuo, ele não consegue traçar perspectivas, e nem enxergar horizontes. Só o
teatro (a arte) lhe oferece a possibilidade de divisar novas vidas e novos
caminhos. Além de um frenético e doloroso romance urbano, ambientado na
Copacabana contemporânea, o livro de Godofredo é, também, e talvez antes de
tudo, uma espantosa reflexão sobre a arte.
A arte não só
traça caminhos, mas oferece desafogos. Ela pode restaurar nosso equilíbrio.
Como na história citada por Eugênia, que fala de cavalos que rompem com os
dentes as próprias veias para aliviar a pressão. É o que todos sentimos hoje:
um excesso de pressão. As imagens superpostas não só nos atordoam, mas pesam.
Há uma grande zoeira no real, contra a qual só a força de um grito parece ter
algum valor. Mas nem o grito (folga momentânea) resolve também. O que nos falta
— o que falta ao personagem Fausto — é uma direção. Envolve-se com mulheres que
não o compreendem. Tem uma relação obscura com o pai. Traficantes rondam a
vizinhança. Só a fiel Eugênia lhe serve de referência.
Carrega um
trauma, apresentado logo na abertura do livro: sua irmã gêmea Ifigênia nasceu
morta e ele, como sobrevivente, se considera um assassino. Uma ferida original
com que o rapaz precisa conviver e da qual deve, mesmo sem compreendê-la, mesmo
sem aceitá-la, tirar forças para seguir em frente. O grito de Fausto expressa
as feridas do mundo. Expressão paradoxal: ao mesmo tempo em que demonstra susto
e espanto, demonstra coragem e alegria. Nos mostra assim Godofredo que, para
viver, devemos partir do que temos, ou nunca chegaremos a nada que preste.
Romper a cortina do grande teatro em que nos vemos lançado. Revirar cenários e
personagens de pernas para o ar. Tomar o comando da representação, mesmo
sabendo, todo o tempo, que algo maior sempre nos comandará. A isso se resume,
de certo modo, a vida.
O inesperado e
trágico desfecho do romance de Godofredo nos alerta, mais uma vez, a respeito
da imprevisibilidade do real. Dos monstros que carregamos dentro de nós. Se
quisermos viver bem, precisamos domá-los. O mal é inerente ao humano. Na
verdade, o bem só existe porque o mal existe também. São as duas faces de uma
mesma moeda. Nas últimas páginas, a velha Eugênia encontra dentro de si tudo o
que tentou refrear em Fausto. Também Eugênia carrega, em si, um Fausto. É na
luta contínua contra essa face sombria que o humano emerge.
JOSÉ CASTELLO
É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar,
entre outros livros. Vive em Curitiba (PR).
Jornal Rascunho
(Disponível em: http://rascunho.com.br/colunistas/josecastello/o-teatro-do-real/.
Acesso em: 14 março 2017.)
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