Depois de te amar saio refrescada
transparente nascida água
matéria de cisterna
de fosso fundo eterna
na tua profundidade
depois de me encharcar volto cristalina
do escuro à tona respiro
busco a luz que te defina:
água, talvez
água fugaz corpo piscina
Cláudia Roquette-Pinto
sexta-feira, 31 de março de 2017
Versículos do dia
E
riquezas e glória vêm de diante de ti, e tu dominas sobre tudo, e na
tua mão há força e poder; e na tua mão está o engrandecer e o dar força a
tudo. 1 Crônicas 29:12
Mas fiel é o Senhor, que vos confirmará, e guardará do maligno. 2 Tessalonicenses 3:3
O mapa
Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
(É nem que fosse meu corpo!)
Sinto uma dor esquisita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
Há tanta esquina esquisita
Tanta nuança de paredes
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar
Suave mistério amoroso
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...
Mário Quintana
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
(É nem que fosse meu corpo!)
Sinto uma dor esquisita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
Há tanta esquina esquisita
Tanta nuança de paredes
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar
Suave mistério amoroso
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...
Mário Quintana
A palavra Vôte!
“Vôte!” é uma dessas exclamações tipicamente nordestinas que de vez em
quando os visitantes nos pedem para explicar e não temos a menor ideia
sobre o lugar de onde veio ou sobre o que significa ao pé da letra.
Usamos, e acabou-se.
Tecnicamente, é uma interjeição que exprime assombro, repulsa, susto, perplexidade. "Vôte! Que diabo é isso? Parece um homem vestido de mulher!" Equivale mais ou menos ao "Eu, hein!" muito popular no Rio, e ao "T'esconjuro!" muito usado nas regiões rurais...
Como um dos meus passatempos favoritos é imaginar etimologias possíveis para as palavras, penso às vezes que a origem de “vôte!” deve ser alguma expressão do tipo "Vou te esconjurar..." ou semelhante.
Já cheguei a imaginar que o termo informal “wot” em inglês seria um equivalente ao nosso “vôte”, por ser usado em contextos semelhantes, como exclamação de surpresa. Mas sua pronúncia, no entanto, é “uót” (mais ou menos a mesma da sua forma gramatical, “what”). Não tem como fazer a pronúncia “uót” virar “vôte”; é mera coincidência, certamente.
É palavrório típico do povão, daí os versos de advertência e censura de Laurindo Pereira de Sousa, o poeta popular conhecido como Bernardo Cintura:
É um bom vício amolar
para o sujeito que amola,
é feio pedir esmola
se se pode trabalhar.
É mau vício não pagar,
dizer dito: vôte, oxente,
isso é lá vício de gente,
isso é vício de vadio;
pra quem tem calor ou frio,
de vício só aguardente.
(citado por Cristino Pimentel, em Abrindo o Livro do Passado).
O poeta nivela “vôte” e “oxente”, ditos populares, a ações de mau gosto como não pagar uma dívida; mas se trai no final quando absolve a cachaça, e cá pra nós, perde um pouco de credibilidade pra falar mal do vôte alheio.
Um saboroso livro memorialista é o do pintor popular pernambucano Celestino Gomes, Da Roça a Roma. Chamo-o de pintor popular porque é um autodidata que sempre vendeu seus quadros na rua, mundo afora, e nunca acessou o “Grand Monde” das artes. Em suas memórias ele conta, narrando sua paixão impossível por uma jovem:
“Numa tentativa alucinada de amante, escrevi um bilhete. O texto: ‘Me prepondero com indiferença, amor e cortesia, ser um dos seus eleitos. Se você por acaso aceitar-me, como Julieta aceitou Romeu, escreva-me dizendo sim; jamais diga não a este saudável pretendente’. Ela recebeu o bilhete, dizendo que me daria a resposta em quinze dias. Qual foi a minha surpresa! No mesmo dia ela vem dizer, feito uma jararaca: ‘Não, não e não, de jeito nenhum, vôte condenado’.”
Dizemos “vôte” quando queremos dizer: nem pensar, de jeito nenhum, desaparece daqui, ave Maria que coisa horrorosa.
Tecnicamente, é uma interjeição que exprime assombro, repulsa, susto, perplexidade. "Vôte! Que diabo é isso? Parece um homem vestido de mulher!" Equivale mais ou menos ao "Eu, hein!" muito popular no Rio, e ao "T'esconjuro!" muito usado nas regiões rurais...
Como um dos meus passatempos favoritos é imaginar etimologias possíveis para as palavras, penso às vezes que a origem de “vôte!” deve ser alguma expressão do tipo "Vou te esconjurar..." ou semelhante.
Já cheguei a imaginar que o termo informal “wot” em inglês seria um equivalente ao nosso “vôte”, por ser usado em contextos semelhantes, como exclamação de surpresa. Mas sua pronúncia, no entanto, é “uót” (mais ou menos a mesma da sua forma gramatical, “what”). Não tem como fazer a pronúncia “uót” virar “vôte”; é mera coincidência, certamente.
É palavrório típico do povão, daí os versos de advertência e censura de Laurindo Pereira de Sousa, o poeta popular conhecido como Bernardo Cintura:
É um bom vício amolar
para o sujeito que amola,
é feio pedir esmola
se se pode trabalhar.
É mau vício não pagar,
dizer dito: vôte, oxente,
isso é lá vício de gente,
isso é vício de vadio;
pra quem tem calor ou frio,
de vício só aguardente.
(citado por Cristino Pimentel, em Abrindo o Livro do Passado).
O poeta nivela “vôte” e “oxente”, ditos populares, a ações de mau gosto como não pagar uma dívida; mas se trai no final quando absolve a cachaça, e cá pra nós, perde um pouco de credibilidade pra falar mal do vôte alheio.
Um saboroso livro memorialista é o do pintor popular pernambucano Celestino Gomes, Da Roça a Roma. Chamo-o de pintor popular porque é um autodidata que sempre vendeu seus quadros na rua, mundo afora, e nunca acessou o “Grand Monde” das artes. Em suas memórias ele conta, narrando sua paixão impossível por uma jovem:
“Numa tentativa alucinada de amante, escrevi um bilhete. O texto: ‘Me prepondero com indiferença, amor e cortesia, ser um dos seus eleitos. Se você por acaso aceitar-me, como Julieta aceitou Romeu, escreva-me dizendo sim; jamais diga não a este saudável pretendente’. Ela recebeu o bilhete, dizendo que me daria a resposta em quinze dias. Qual foi a minha surpresa! No mesmo dia ela vem dizer, feito uma jararaca: ‘Não, não e não, de jeito nenhum, vôte condenado’.”
Dizemos “vôte” quando queremos dizer: nem pensar, de jeito nenhum, desaparece daqui, ave Maria que coisa horrorosa.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
quinta-feira, 30 de março de 2017
Máximas sobre o ato de escrever
No começo da carreira, quando tentava de todas as maneiras absorver
o máximo possível de tudo aquilo que julgava que um jornalista
deveria saber --senso de discernimento, curiosidade, teimosia,
espírito crítico, escrúpulo, respeito, humildade e sobretudo
capacidade de respeitar a língua e por intermédio dela transmitir
ideias--, tive o privilégio de conviver com um gênio do vernáculo.
Ele era copidesque --aquele que dá a forma final ao texto jornalístico-- dos então famosos editoriais do jornal "O Estado de S. Paulo", famosos principalmente por conta da linguagem erudita e da forma apuradíssima. Pois bem, Mário Leônidas Casanova era o responsável pela precisão e erudição daquele pedaço nobre do jornal. E, num tempo em que começava a germinar a transição da máquina de escrever para o computador, ele perpetrava seus textos com uma magnífica caneta Parker. Tinteiro, obviamente.
O homem era uma coisa. "Casanova, a palavra àquele leva crase", perguntava eu com a ignorância e impertinência típica dos focas (jornalistas em começo de carreira). "A crase é muito mais que uma manchinha sobre a letra a", dizia ele, antes de me mandar sentar e pespegar uma aula completa sobre esse acento que pouca gente sabe colocar no lugar certo (eu arrisco dizer que aprendi a usá-lo naquela época...).
Mas uma das máximas do Casanova era: "Meu filho, lauda em branco aceita tudo". Dizia isso para condenar a quantidade de sandices que se escreviam, e que certamente se escrevem até hoje, seja lá qual for a intenção.
Mas por que pensar agora no velho e generoso Casanova, que era, além de tudo, um conhecedor profundo do chorinho, esse gênero musical tão maravilhoso quanto relegado a um injusto esquecimento no cenário da música deste país?
Porque recebi de uma amiga uma lista de máximas sobre a escrita que o faria sorrir por trás daqueles vastos bigodões, como que a afirmar: "É o que sempre digo...".
Esta lista vai agora publicada de bate-pronto, por isso pode eventualmente conter imprecisões, mas corro o risco porque ela é sem dúvida muito interessante.
São descrições do ato de escrever:
"Escrever é fácil: você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio você coloca idéias." (Pablo Neruda)
"Escrever é, simplesmente, uma maneira de falar sem que nos interrompam." (Sofocleto)
"É preciso escrever o mais possível como se fala e não falar demais como se escreve." (Sainte-Beuve)
"O ato de escrever é a arte de sentar-se numa cadeira." (Sinclair Lewis)
"Somos todos escritores. Só que uns escrevem, outros não." (José Saramago)
"Escrever é ter coisas para dizer." (Darcy Ribeiro)
"Perdoe-me, senhora, se escrevi carta tão comprida. Não tive tempo de fazê-la curta." (Voltaire)
"Reescrevi 30 vezes o último parágrafo de 'Adeus às Armas' antes de me sentir satisfeito." (Ernest Hemingway)
"Uma história se conta, não se explica." (Jorge Amado)
"Escrevo para que meus amigos me amem ainda mais." (Gabriel García-Márquez)
"Quem não lê não escreve." (Wander Soares)
"Cada um escreve do jeito que respira. Cada um tem seu estilo. Devo minha literatura à asma." (Fabrício Carpinejar)
"Escrever é um ato de liberdade." (Martin Amis)
"Escrever é uma forma de a voz sobreviver à pessoa." (Margaret Atwood)
"De escrever para marmanjos já me enjoei. Bichos sem graça. Mas para crianças um livro é todo um mundo." (Monteiro Lobato)
"Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer é porque um dos dois é burro." (Mário Quintana)
"Existem três regras para escrever ficção. Infelizmente ninguém sabe quais são elas." (W. Somerset Maugham)
"O autor escreve apenas metade de um livro. A outra metade fica por conta do leitor." (Joseph Conrad)
"Corrigir uma página é fácil, mas escrevê-la, ah, amigo! Isso é difícil." (Jorge Luis Borges)
"Escrever não é fácil ou difícil, mas possível ou impossível." (Camilo José Cela)
"Escrever é deixar uma marca. É impor ao papel em branco um sinal permanente, é capturar um instante em forma de palavra." (Margaret Atwood)
"Eu escrevo como se fosse salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida." (Clarice Lispector)
"Para escrever bem é preciso uma facilidade natural e uma dificuldade adquirida." (Joseph Joubert)
"Escrever não é nada mais senão ter o tempo de dizer: estou morrendo." (Gaëtan Picon)
"Uns escrevem para salvar a humanidade ou incitar lutas de classes, outros para se perpetuar nos manuais de literatura ou conquistar posições e honrarias. Os melhores são os que escrevem pelo prazer de escrever." (Lêdo Ivo)
"Escrever é sacudir o sentido do mundo." (Roland Barthes)
Ele era copidesque --aquele que dá a forma final ao texto jornalístico-- dos então famosos editoriais do jornal "O Estado de S. Paulo", famosos principalmente por conta da linguagem erudita e da forma apuradíssima. Pois bem, Mário Leônidas Casanova era o responsável pela precisão e erudição daquele pedaço nobre do jornal. E, num tempo em que começava a germinar a transição da máquina de escrever para o computador, ele perpetrava seus textos com uma magnífica caneta Parker. Tinteiro, obviamente.
O homem era uma coisa. "Casanova, a palavra àquele leva crase", perguntava eu com a ignorância e impertinência típica dos focas (jornalistas em começo de carreira). "A crase é muito mais que uma manchinha sobre a letra a", dizia ele, antes de me mandar sentar e pespegar uma aula completa sobre esse acento que pouca gente sabe colocar no lugar certo (eu arrisco dizer que aprendi a usá-lo naquela época...).
Mas uma das máximas do Casanova era: "Meu filho, lauda em branco aceita tudo". Dizia isso para condenar a quantidade de sandices que se escreviam, e que certamente se escrevem até hoje, seja lá qual for a intenção.
Mas por que pensar agora no velho e generoso Casanova, que era, além de tudo, um conhecedor profundo do chorinho, esse gênero musical tão maravilhoso quanto relegado a um injusto esquecimento no cenário da música deste país?
Porque recebi de uma amiga uma lista de máximas sobre a escrita que o faria sorrir por trás daqueles vastos bigodões, como que a afirmar: "É o que sempre digo...".
Esta lista vai agora publicada de bate-pronto, por isso pode eventualmente conter imprecisões, mas corro o risco porque ela é sem dúvida muito interessante.
São descrições do ato de escrever:
"Escrever é fácil: você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio você coloca idéias." (Pablo Neruda)
"Escrever é, simplesmente, uma maneira de falar sem que nos interrompam." (Sofocleto)
"É preciso escrever o mais possível como se fala e não falar demais como se escreve." (Sainte-Beuve)
"O ato de escrever é a arte de sentar-se numa cadeira." (Sinclair Lewis)
"Somos todos escritores. Só que uns escrevem, outros não." (José Saramago)
"Escrever é ter coisas para dizer." (Darcy Ribeiro)
"Perdoe-me, senhora, se escrevi carta tão comprida. Não tive tempo de fazê-la curta." (Voltaire)
"Reescrevi 30 vezes o último parágrafo de 'Adeus às Armas' antes de me sentir satisfeito." (Ernest Hemingway)
"Uma história se conta, não se explica." (Jorge Amado)
"Escrevo para que meus amigos me amem ainda mais." (Gabriel García-Márquez)
"Quem não lê não escreve." (Wander Soares)
"Cada um escreve do jeito que respira. Cada um tem seu estilo. Devo minha literatura à asma." (Fabrício Carpinejar)
"Escrever é um ato de liberdade." (Martin Amis)
"Escrever é uma forma de a voz sobreviver à pessoa." (Margaret Atwood)
"De escrever para marmanjos já me enjoei. Bichos sem graça. Mas para crianças um livro é todo um mundo." (Monteiro Lobato)
"Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer é porque um dos dois é burro." (Mário Quintana)
"Existem três regras para escrever ficção. Infelizmente ninguém sabe quais são elas." (W. Somerset Maugham)
"O autor escreve apenas metade de um livro. A outra metade fica por conta do leitor." (Joseph Conrad)
"Corrigir uma página é fácil, mas escrevê-la, ah, amigo! Isso é difícil." (Jorge Luis Borges)
"Escrever não é fácil ou difícil, mas possível ou impossível." (Camilo José Cela)
"Escrever é deixar uma marca. É impor ao papel em branco um sinal permanente, é capturar um instante em forma de palavra." (Margaret Atwood)
"Eu escrevo como se fosse salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida." (Clarice Lispector)
"Para escrever bem é preciso uma facilidade natural e uma dificuldade adquirida." (Joseph Joubert)
"Escrever não é nada mais senão ter o tempo de dizer: estou morrendo." (Gaëtan Picon)
"Uns escrevem para salvar a humanidade ou incitar lutas de classes, outros para se perpetuar nos manuais de literatura ou conquistar posições e honrarias. Os melhores são os que escrevem pelo prazer de escrever." (Lêdo Ivo)
"Escrever é sacudir o sentido do mundo." (Roland Barthes)
Luiz Caversan
O último sortilégio
"Já repeti o antigo encantamento,
E a grande Deusa aos olhos se negou.
Já repeti, nas pausas do amplo vento,
As orações cuja alma é um ser fecundo.
Nada me o abismo deu ou o céu mostrou.
Só o vento volta onde estou toda e só,
E tudo dorme no confuso mundo.
"Outrora meu condão fadava, as sarças
E a minha evocação do solo erguia
Presenças concentradas das que esparsas
Dormem nas formas naturais das coisas.
Outrora a minha voz acontecia.
Fadas e elfos, se eu chamasse, via.
E as folhas da floresta eram lustrosas.
"Minha varinha, com que da vontade
Falava às existências essenciais,
Já não conhece a minha realidade.
Já, se o círculo traço, não há nada.
Murmura o vento alheio extintos ais,
E ao luar que sobe além dos matagais
Não sou mais do que os bosques ou a estrada.
"Já me falece o dom com que me amavam.
Já me não torno a forma e o fim da vida
A quantos que, buscando-os, me buscavam.
Já, praia, o mar dos braços não me inunda.
Nem já me vejo ao sol saudado ergUida,
Ou, em êxtase mágico perdida,
Ao luar, à boca da caverna funda.
"Já as sacras potências infernais,
Que, dormentes sem deuses nem destino,
À substância das coisas são iguais,
Não ouvem minha voz ou os nomes seus.
A música partiu-se do meu hino.
Já meu furor astral não é divino
Nem meu corpo pensado é já um deus.
"E as longínquas deidades do atro poço,
Que tantas vezes, pálida, evoquei
Com a raiva de amar em alvoroço,
lnevocadas hoje ante mim estão.
Como, sem que as amasse, eu as chamei,
Agora, que não amo, as tenho, e sei
Que meu vendido ser consumirão.
"Tu, porém, Sol, cujo ouro me foi presa,
Tu, Lua, cuja prata converti,
Se já não podeis dar-me essa beleza
Que tantas vezes tive por querer,
Ao menos meu ser findo dividi
Meu ser essencial se perca em si,
Só meu corpo sem mim fique alma e ser!
"Converta-me a minha última magia
Numa estátua de mim em corpo vivo!
Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,
Anônima presença que se beija,
Carne do meu abstrato amor cativo,
Seja a morte de mim em que revivo;
E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!"
E a grande Deusa aos olhos se negou.
Já repeti, nas pausas do amplo vento,
As orações cuja alma é um ser fecundo.
Nada me o abismo deu ou o céu mostrou.
Só o vento volta onde estou toda e só,
E tudo dorme no confuso mundo.
"Outrora meu condão fadava, as sarças
E a minha evocação do solo erguia
Presenças concentradas das que esparsas
Dormem nas formas naturais das coisas.
Outrora a minha voz acontecia.
Fadas e elfos, se eu chamasse, via.
E as folhas da floresta eram lustrosas.
"Minha varinha, com que da vontade
Falava às existências essenciais,
Já não conhece a minha realidade.
Já, se o círculo traço, não há nada.
Murmura o vento alheio extintos ais,
E ao luar que sobe além dos matagais
Não sou mais do que os bosques ou a estrada.
"Já me falece o dom com que me amavam.
Já me não torno a forma e o fim da vida
A quantos que, buscando-os, me buscavam.
Já, praia, o mar dos braços não me inunda.
Nem já me vejo ao sol saudado ergUida,
Ou, em êxtase mágico perdida,
Ao luar, à boca da caverna funda.
"Já as sacras potências infernais,
Que, dormentes sem deuses nem destino,
À substância das coisas são iguais,
Não ouvem minha voz ou os nomes seus.
A música partiu-se do meu hino.
Já meu furor astral não é divino
Nem meu corpo pensado é já um deus.
"E as longínquas deidades do atro poço,
Que tantas vezes, pálida, evoquei
Com a raiva de amar em alvoroço,
lnevocadas hoje ante mim estão.
Como, sem que as amasse, eu as chamei,
Agora, que não amo, as tenho, e sei
Que meu vendido ser consumirão.
"Tu, porém, Sol, cujo ouro me foi presa,
Tu, Lua, cuja prata converti,
Se já não podeis dar-me essa beleza
Que tantas vezes tive por querer,
Ao menos meu ser findo dividi
Meu ser essencial se perca em si,
Só meu corpo sem mim fique alma e ser!
"Converta-me a minha última magia
Numa estátua de mim em corpo vivo!
Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,
Anônima presença que se beija,
Carne do meu abstrato amor cativo,
Seja a morte de mim em que revivo;
E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!"
Fernando Pessoa
quarta-feira, 29 de março de 2017
Versículo do dia
Aquele que habita no abrigo do Altíssimo
e descansa à sombra do Todo-poderoso pode dizer ao Senhor:
"Tu és o meu refúgio e a minha fortaleza,
o meu Deus, em quem confio".
e descansa à sombra do Todo-poderoso pode dizer ao Senhor:
"Tu és o meu refúgio e a minha fortaleza,
o meu Deus, em quem confio".
Salmos 91:1-2
Iniciação
Nasci em Ardnamurchan, você não vai conseguir nem pronunciar, quanto mais entender. Mas
não faz mal, Maria Clara, porque isso já foi há tanto tempo. Hoje não importa mais.
Basta você saber que fica na Escócia e que é um lugar muito frio e muito úmido a maior
parte do ano, onde as pessoas são tristes e fechadas em si mesmas. Talvez assim você
compreenda por que sou como sou de vez em quando. Ou não, quem sabe. De qualquer forma,
tudo isto está muito além do que precisamos saber um sobre o outro. Um café?
Archibald ergue-se da poltrona devagar, toma cuidado para não derrubar os livros que tem sobre os joelhos. Escolhe um disco na estante.
— Bach, Maria Clara, que tal? Gottes Zeit ist die alerbeste Zeit, tenho certeza de que você vai gostar.
Maria Clara estica-se no tapete, fecha os olhos aos primeiros compassos. Ultimamente, esforça-se para entender Archibald, gostar das cantatas, sonatas e motetos que povoam a casa. Já consegue reconhecer a música de alguns compositores, pequenos testes que ele lhe apresenta. Vamos ver se você adivinha de quem e este cânon?
Sentam-se à mesa, arrumam as xícaras, o café, está bom de açúcar? Archibald remexe uma pilha de cadernos, procura a pagina certa.
— Então, vamos ver o que você fez de bom?
Gosta de dar aulas para Maria Clara: elas são, hoje, fugas da rotina da universidade da qual começa a sentir-se cansado, ensinando, pelo décimo ano consecutivo, as mesmas coisas a pessoas invariavelmente desinteressadas e desinteressantes. Seu relacionamento com os alunos é frio, quase impessoal: um pouco por timidez, um pouco por européias noções de hierarquia que se recusa a abandonar. Isso nunca chegou a incomodá-lo, especialmente há alguns anos atrás, quando a presença de Lillian tornava outras presenças desnecessárias. Depois, as relações entre ambos foram-se deteriorando e, quando mudou-se para o Brasil, ela recusou-se a acompanhá-lo. Embora tivesse sentido algum prazer em mortificar-se com o fracasso de seu casamento, anos depois Archibald se viu forçado a reconhecer que, na época, o que sentira fora principalmente uma sensação de alívio e liberdade. Não havia mais ninguém para controlar-lhe os movimentos ninguém para reclamar dos cachimbos, impedi-lo de dedicar-se a seus poemas ou abaixar o volume da vitrola. Não havia mais ninguém, igualmente, para afagar-lhe os cabelos, nenhum corpo à noite. Esta ausência, entretanto, só veio a notar muito tempo depois na verdade, quando começou a dar aulas para Maria Clara. Agora gostaria de ter, eventualmente, alguém com quem conversar, algum amigo. Mas os anos de solidão e uma timidez que, geralmente, não se encontra nos homens atraentes, o desacostumaram de conversas íntimas, de confidências sussurradas a meia luz por sobre os cinzeiros. Na universidade, não consegue trocar mais do que polidos cumprimentos com os colegas; dos alunos, sente-se cada vez mais distante com o passar dos anos. Aos 40 anos é um homem só — e, se por um lado, a solidão ensinou-lhe muito a respeito de si mesmo, há sentimentos sobre os quais não lhe disse nada, dos quais começa a ter medo porque os julgava esquecidos para sempre.
Maria Clara, marcando o ritmo da cantata com os dedos, conta o número de ripas da veneziana entreaberta, percorre as estantes com os olhos, as lombadas verdes, vermelhas, a imensa pilha de livros de bolso alaranjados. Observa seu professor, a cabeça curvada sobre o caderno, cachimbo numa das mãos enquanto com a outra anota erros, faz correções. Os cabelos muito lisos, desmaiados entre o louro e o cinza, caem-lhe sobre os olhos: quando o cachimbo está preso entre os dentes, a mão, livre, joga-os para trás num gesto inútil.
— Muito bom o trabalho. Você está melhorando, sabe. Ainda tem alguma dificuldade em expor seu raciocínio numa linha uniforme, mas acho que, na sua idade, nem poderia ser de outra maneira. E erros de ortografia, precisa prestar mais atenção ao que escreve, menina.
— Mas é que inglês é muito complicado. Muito mesmo.
— Um pouco de atenção resolve muitas complicações. Há um texto de Saroyan muito bonito que eu quero que você conheça. Vou ditá-lo para você, a metade hoje, a metade amanhã. Onde será que coloquei o livro?
Levanta-se da mesa, vai até uma das estantes onde percorre os livros com a ponta dos dedos, puxa um volume pequeno, encadernado em amarelo. Escolhe também outro disco, que leva para a vitrola.
— Mais Bach Suite em Ré Maior para violoncelo, Rostropovitch. Pegue o caderno, escreva: pronta? Esta prestando atenção? In the time of our life, live — so in that good time there shall be no ugliness or death for youself or any life your life touches. Seek goodness everywhere and when it is found, bring it out of its hiding-place...
— O quê?
— Hiding-place. Esconderijo. Bring it out of its hiding-place and let it be free and unashamed. Place in matter and in flesh the least of values, for these are the things that hold death and must pass away.
Lê muito devagar, separando as frases com cuidado. Maria Clara gosta das palavras, gosta do som que adquirem na pronúncia clara e um pouco cantada de Archibald. Se ao menos não precisasse anotá-las! Sente que poderá passar ali o resto da vida, ouvindo-as uma após a outra, absorvendo-as tão completamente que, depois de algum tempo, perderiam todo o significado para tornarem-se apenas fragmentos de sons encadeados, como a sonata de Bach que a vitrola repete em surdina. Ou seria uma suite?
— Discover in all things that which shines and is beyond corruption. Vamos parar por aqui, hoje. Não e bonito? Deixe o caderno comigo. Não vou poder corrigir nada agora, dentro de meia hora tenho que estar numa reunião na faculdade, você vai ter que ir embora mais cedo. Sabe que os Beatles vão tocar nos Estados Unidos?
— Claro que sei.
— Então este vai ser o seu dever de casa: escrever trinta linhas sobre a tournée.
— Mas como é que eu posso escrever sobre alguma coisa que ainda não aconteceu?
— Usando a sua imaginação, por exemplo.
Poderia passar ali o resto da vida, entre os sons, o cheiro do fumo e os olhos acinzentados.
Depois de quase um ano, ainda não sabe exatamente por que aceitou dar aulas para Maria Clara, filha de um professor de física que acabara de voltar da Inglaterra: para que a menina não perca todo o inglês que aprendeu por lá. Pensou, então, que a experiência talvez valesse a pena. Mas quando a conheceu, jeans surrados, os cabelos escuros e compridos presos num rabo de cavalo, um jeito preguiçoso, disco dos Beatles embaixo do braço, chegou a arrepender-se de não ter afastado a idéia definitivamente. Para sua surpresa, porém, Maria Clara interessava-se muito mais pelo inglês do que julgara a principio. E embora inicialmente a tratasse com o mesmo distanciamento que reservava a todos os alunos — e, de resto, a todo o mundo, sem distinções — começou, com o correr do tempo, a descobri-la e, através dela, toda uma geração que nunca despertara seu interesse antes. Começara a descobrir em si próprio reações que julgava impossíveis, o riso, a conversa fácil e aberta. Divertia-se ouvindo-a contar o dia-a-dia do ginásio, ouvindo-a falar de colegas e professores, dos últimos lançamentos dos Beatles, dos olhos de Paul MacCartney ou das letras de John Lennon. Mais tarde, tornou-se cúmplice de cigarros fumados às escondidas pelos banheiros, corridas em motocicletas clandestinas e aulas mortas no terraço entre brincadeiras e jogos de batalha naval. eu contei para você mas você jura que não vai contar para o meu pai? Maria Clara também começou a descobrir coisas novas como as crises de choro sem motivo algum, as horas passadas ao lado da vitrola, os olhos perdidos no espaço ao som de concertos e motetos.
Há dias em que não sabe se vai conseguir sobreviver a todas as terças, quintas e fins de semana que a esperam sem aulas de inglês. Especialmente quando o tempo começa a escurecer, quando não há sol, não há passeios nem piscinas. As horas passam devagar e, na escola, há o sentimento do tempo e das aulas perdidas, para que matemática, história, geografia se tudo o que precisa aprender é inglês, se sabendo inglês conquistará o mundo e quem sabe Archibald, conseguirá ir até Ardnamurchan onde quer que fique e conhecer os vales verdes, as altas montanhas, o clima que sabe frio e úmido a maior parte do ano. Quinta-feira escorre inútil, a sexta arrasta-se pelas aulas de desenho e francês, pela geografia escamoteada no terraço, o cigarro escondido atrás das costas. De tarde, as horas são ainda mais lentas e há o tamborilar da chuva nas vidraças, há uma goteira na sala e uma professora irritada com a chuva, com a goteira, com os alunos. Há também um ensaio da classe de teatro às quatro e meia e, às quinze para as seis, há a sineta e a liberdade. Sacola as costas, Maria Clara corre feliz, enfrenta a chuva, atravessa a rua, segue a avenida, dobra a esquerda, novamente atravessa uma rua e, quando toca a campainha de Archibald está molhada da cabeça aos pés, a roupa colada ao corpo, a blusa branca transparente de chuva.
— Mas não é possível! Será que você não tinha um guarda-chuva, não podia esperar uma carona?
— É que não pensei que estivesse chovendo tanto assim. Nossa, estou ensopada.
— Entre. Você não vai poder ficar assim. Vá até o banheiro, tome um banho bem quente e vista o meu roupão que está pendurado ao lado do chuveiro. Depois nós poderemos colocar as suas roupas em frente ao fogão, acabarão secando. Ande depressa.
Na cozinha, Archibald liga a cafeteira elétrica ouvindo o barulho do chuveiro. tenta concentrar-se nas colheradas de pó, na água, mas não consegue esquecer a blusa molhada de Maria Clara, os seios de Maria Clara, Maria Clara nua no chuveiro, a água escorrendo pelo corpo jovem e moreno. Tenta pensar nos vinte e seis anos que os separam, na tampa da cafeteira que não quer fechar. Volta para a sala e, acendendo o cachimbo, procura o Saroyan da aula passada, relê o ditado de Maria Clara, os seios de Maria Clara, sua pele molhada e brilhante...
— Ficou meio grande o teu roupão, estou me sentindo ridícula.
—Não há motivo. Está linda, e pelo menos não vai ficar gripada. Estou preparando um café, achei que você precisaria beber algo quente. Vou buscar.
Maria Clara senta-se no tapete, pernas cruzadas, tenta ajeitar o roupão lilás em volta do corpo. As mangas cobrem suas mãos, diverte-se levantando-as e olhando para as pontas caídas como hastes dobradas. Archibald traz a bandeja, coloca-a em cima da mesa, inclina-se sobre Maria Clara para entregar-lhe a xícara. A proximidade súbita, o roupão entreaberto, os seios de Maria Clara criam uma atmosfera carregada que os cadernos e uma missa de Haendel não conseguem disfarçar. Volta para a poltrona, olha-a de frente, os cabelos molhados, o roupão, as pernas cruzadas, o rosto pálido. Maria Clara estremece, sente que alguma coisa está acontecendo mas não sabe o que é. Imagina que Archibald a quer, repele o pensamento que volta, intenso, segundos depois. Luta com as mangas do roupão para segurar a xícara, ri, nervosa.
— Estou parecendo uma débil mental.
— Espere. Vou dobrar as mangas para você, do jeito que estão você nunca vai conseguir beber este café.
Deixa-se escorregar da poltrona, caminha sobre o tapete com os joelhos no chão, aproxima-se de Maria Clara. Toma-lhe uma das mãos, começa a dobrar a manga com cuidado, como se mexesse com alguma coisa frágil e quebradiça.
— Você está tremendo...!
— Estou congelada.
Segura a mão tremula e fria entre as suas, levanta o rosto devagar. Os olhos de Maria Clara em frente aos seus, o cheiro de Maria Clara, os seios de Maria Clara... puxa-a para si, beija-lhe a testa, os olhos, a boca.
— Eu te queria tanto.
Ela treme, tem medo, está feliz. A mão de Archibald atravessa o roupão, acaricia os seios. Tenta afastá-lo.
— Não faz isso.
A mão foge, sobe para os ombros, abaixa o roupão.
— Archie, não.
— Por que não? Eu quero você, eu amo você. Vem, você é minha. Bem quietinha, não se mexe.
Maria Clara senta-se imóvel, a respiração ofegante. Archibald desamarra o cinto, o roupão escorrega, Maria Clara nua, tremula de medo e de expectativa, o coração aos saltos.
As mãos a percorrem, acariciam os seios, a barriga, procuram as pernas, escondem-se entre as coxas.
— Vem. Eu vou ensinar tudo para você, tudo. Isto é uma coisa muito mais bonita do que o inglês, vem, muito mais, vou te ensinar tudo. Deita.
Maria Clara deita-se no tapete, olha para o lado. Tem vontade e vergonha de olhar Archibald despir-se, mas sente seus movimentos, a camisa atirada em direção a poltrona, os pés que empurram as calças e estremece quando o tem ao lado, quando as mãos a envolvem e guiam suas mãos tímidas, quando os dedos percorrem seu corpo, caminhando de leve pelas pernas, subindo sentindo-a úmida e entregue, quando o tem por cima de si, tão suave e aflito, quando os joelhos forçam suas pernas, as palavras perdem o nexo e o mundo explode, eu te queria tanto.
Dez anos depois, Archibald deu um tiro na boca. Teve morte instantânea. Há nove não via Maria Clara que soube do suicídio vários meses depois, através da carta de um amigo que a cumprimentava pelo vigésimo quarto aniversário.
Archibald ergue-se da poltrona devagar, toma cuidado para não derrubar os livros que tem sobre os joelhos. Escolhe um disco na estante.
— Bach, Maria Clara, que tal? Gottes Zeit ist die alerbeste Zeit, tenho certeza de que você vai gostar.
Maria Clara estica-se no tapete, fecha os olhos aos primeiros compassos. Ultimamente, esforça-se para entender Archibald, gostar das cantatas, sonatas e motetos que povoam a casa. Já consegue reconhecer a música de alguns compositores, pequenos testes que ele lhe apresenta. Vamos ver se você adivinha de quem e este cânon?
Sentam-se à mesa, arrumam as xícaras, o café, está bom de açúcar? Archibald remexe uma pilha de cadernos, procura a pagina certa.
— Então, vamos ver o que você fez de bom?
Gosta de dar aulas para Maria Clara: elas são, hoje, fugas da rotina da universidade da qual começa a sentir-se cansado, ensinando, pelo décimo ano consecutivo, as mesmas coisas a pessoas invariavelmente desinteressadas e desinteressantes. Seu relacionamento com os alunos é frio, quase impessoal: um pouco por timidez, um pouco por européias noções de hierarquia que se recusa a abandonar. Isso nunca chegou a incomodá-lo, especialmente há alguns anos atrás, quando a presença de Lillian tornava outras presenças desnecessárias. Depois, as relações entre ambos foram-se deteriorando e, quando mudou-se para o Brasil, ela recusou-se a acompanhá-lo. Embora tivesse sentido algum prazer em mortificar-se com o fracasso de seu casamento, anos depois Archibald se viu forçado a reconhecer que, na época, o que sentira fora principalmente uma sensação de alívio e liberdade. Não havia mais ninguém para controlar-lhe os movimentos ninguém para reclamar dos cachimbos, impedi-lo de dedicar-se a seus poemas ou abaixar o volume da vitrola. Não havia mais ninguém, igualmente, para afagar-lhe os cabelos, nenhum corpo à noite. Esta ausência, entretanto, só veio a notar muito tempo depois na verdade, quando começou a dar aulas para Maria Clara. Agora gostaria de ter, eventualmente, alguém com quem conversar, algum amigo. Mas os anos de solidão e uma timidez que, geralmente, não se encontra nos homens atraentes, o desacostumaram de conversas íntimas, de confidências sussurradas a meia luz por sobre os cinzeiros. Na universidade, não consegue trocar mais do que polidos cumprimentos com os colegas; dos alunos, sente-se cada vez mais distante com o passar dos anos. Aos 40 anos é um homem só — e, se por um lado, a solidão ensinou-lhe muito a respeito de si mesmo, há sentimentos sobre os quais não lhe disse nada, dos quais começa a ter medo porque os julgava esquecidos para sempre.
Maria Clara, marcando o ritmo da cantata com os dedos, conta o número de ripas da veneziana entreaberta, percorre as estantes com os olhos, as lombadas verdes, vermelhas, a imensa pilha de livros de bolso alaranjados. Observa seu professor, a cabeça curvada sobre o caderno, cachimbo numa das mãos enquanto com a outra anota erros, faz correções. Os cabelos muito lisos, desmaiados entre o louro e o cinza, caem-lhe sobre os olhos: quando o cachimbo está preso entre os dentes, a mão, livre, joga-os para trás num gesto inútil.
— Muito bom o trabalho. Você está melhorando, sabe. Ainda tem alguma dificuldade em expor seu raciocínio numa linha uniforme, mas acho que, na sua idade, nem poderia ser de outra maneira. E erros de ortografia, precisa prestar mais atenção ao que escreve, menina.
— Mas é que inglês é muito complicado. Muito mesmo.
— Um pouco de atenção resolve muitas complicações. Há um texto de Saroyan muito bonito que eu quero que você conheça. Vou ditá-lo para você, a metade hoje, a metade amanhã. Onde será que coloquei o livro?
Levanta-se da mesa, vai até uma das estantes onde percorre os livros com a ponta dos dedos, puxa um volume pequeno, encadernado em amarelo. Escolhe também outro disco, que leva para a vitrola.
— Mais Bach Suite em Ré Maior para violoncelo, Rostropovitch. Pegue o caderno, escreva: pronta? Esta prestando atenção? In the time of our life, live — so in that good time there shall be no ugliness or death for youself or any life your life touches. Seek goodness everywhere and when it is found, bring it out of its hiding-place...
— O quê?
— Hiding-place. Esconderijo. Bring it out of its hiding-place and let it be free and unashamed. Place in matter and in flesh the least of values, for these are the things that hold death and must pass away.
Lê muito devagar, separando as frases com cuidado. Maria Clara gosta das palavras, gosta do som que adquirem na pronúncia clara e um pouco cantada de Archibald. Se ao menos não precisasse anotá-las! Sente que poderá passar ali o resto da vida, ouvindo-as uma após a outra, absorvendo-as tão completamente que, depois de algum tempo, perderiam todo o significado para tornarem-se apenas fragmentos de sons encadeados, como a sonata de Bach que a vitrola repete em surdina. Ou seria uma suite?
— Discover in all things that which shines and is beyond corruption. Vamos parar por aqui, hoje. Não e bonito? Deixe o caderno comigo. Não vou poder corrigir nada agora, dentro de meia hora tenho que estar numa reunião na faculdade, você vai ter que ir embora mais cedo. Sabe que os Beatles vão tocar nos Estados Unidos?
— Claro que sei.
— Então este vai ser o seu dever de casa: escrever trinta linhas sobre a tournée.
— Mas como é que eu posso escrever sobre alguma coisa que ainda não aconteceu?
— Usando a sua imaginação, por exemplo.
Poderia passar ali o resto da vida, entre os sons, o cheiro do fumo e os olhos acinzentados.
Depois de quase um ano, ainda não sabe exatamente por que aceitou dar aulas para Maria Clara, filha de um professor de física que acabara de voltar da Inglaterra: para que a menina não perca todo o inglês que aprendeu por lá. Pensou, então, que a experiência talvez valesse a pena. Mas quando a conheceu, jeans surrados, os cabelos escuros e compridos presos num rabo de cavalo, um jeito preguiçoso, disco dos Beatles embaixo do braço, chegou a arrepender-se de não ter afastado a idéia definitivamente. Para sua surpresa, porém, Maria Clara interessava-se muito mais pelo inglês do que julgara a principio. E embora inicialmente a tratasse com o mesmo distanciamento que reservava a todos os alunos — e, de resto, a todo o mundo, sem distinções — começou, com o correr do tempo, a descobri-la e, através dela, toda uma geração que nunca despertara seu interesse antes. Começara a descobrir em si próprio reações que julgava impossíveis, o riso, a conversa fácil e aberta. Divertia-se ouvindo-a contar o dia-a-dia do ginásio, ouvindo-a falar de colegas e professores, dos últimos lançamentos dos Beatles, dos olhos de Paul MacCartney ou das letras de John Lennon. Mais tarde, tornou-se cúmplice de cigarros fumados às escondidas pelos banheiros, corridas em motocicletas clandestinas e aulas mortas no terraço entre brincadeiras e jogos de batalha naval. eu contei para você mas você jura que não vai contar para o meu pai? Maria Clara também começou a descobrir coisas novas como as crises de choro sem motivo algum, as horas passadas ao lado da vitrola, os olhos perdidos no espaço ao som de concertos e motetos.
Há dias em que não sabe se vai conseguir sobreviver a todas as terças, quintas e fins de semana que a esperam sem aulas de inglês. Especialmente quando o tempo começa a escurecer, quando não há sol, não há passeios nem piscinas. As horas passam devagar e, na escola, há o sentimento do tempo e das aulas perdidas, para que matemática, história, geografia se tudo o que precisa aprender é inglês, se sabendo inglês conquistará o mundo e quem sabe Archibald, conseguirá ir até Ardnamurchan onde quer que fique e conhecer os vales verdes, as altas montanhas, o clima que sabe frio e úmido a maior parte do ano. Quinta-feira escorre inútil, a sexta arrasta-se pelas aulas de desenho e francês, pela geografia escamoteada no terraço, o cigarro escondido atrás das costas. De tarde, as horas são ainda mais lentas e há o tamborilar da chuva nas vidraças, há uma goteira na sala e uma professora irritada com a chuva, com a goteira, com os alunos. Há também um ensaio da classe de teatro às quatro e meia e, às quinze para as seis, há a sineta e a liberdade. Sacola as costas, Maria Clara corre feliz, enfrenta a chuva, atravessa a rua, segue a avenida, dobra a esquerda, novamente atravessa uma rua e, quando toca a campainha de Archibald está molhada da cabeça aos pés, a roupa colada ao corpo, a blusa branca transparente de chuva.
— Mas não é possível! Será que você não tinha um guarda-chuva, não podia esperar uma carona?
— É que não pensei que estivesse chovendo tanto assim. Nossa, estou ensopada.
— Entre. Você não vai poder ficar assim. Vá até o banheiro, tome um banho bem quente e vista o meu roupão que está pendurado ao lado do chuveiro. Depois nós poderemos colocar as suas roupas em frente ao fogão, acabarão secando. Ande depressa.
Na cozinha, Archibald liga a cafeteira elétrica ouvindo o barulho do chuveiro. tenta concentrar-se nas colheradas de pó, na água, mas não consegue esquecer a blusa molhada de Maria Clara, os seios de Maria Clara, Maria Clara nua no chuveiro, a água escorrendo pelo corpo jovem e moreno. Tenta pensar nos vinte e seis anos que os separam, na tampa da cafeteira que não quer fechar. Volta para a sala e, acendendo o cachimbo, procura o Saroyan da aula passada, relê o ditado de Maria Clara, os seios de Maria Clara, sua pele molhada e brilhante...
— Ficou meio grande o teu roupão, estou me sentindo ridícula.
—Não há motivo. Está linda, e pelo menos não vai ficar gripada. Estou preparando um café, achei que você precisaria beber algo quente. Vou buscar.
Maria Clara senta-se no tapete, pernas cruzadas, tenta ajeitar o roupão lilás em volta do corpo. As mangas cobrem suas mãos, diverte-se levantando-as e olhando para as pontas caídas como hastes dobradas. Archibald traz a bandeja, coloca-a em cima da mesa, inclina-se sobre Maria Clara para entregar-lhe a xícara. A proximidade súbita, o roupão entreaberto, os seios de Maria Clara criam uma atmosfera carregada que os cadernos e uma missa de Haendel não conseguem disfarçar. Volta para a poltrona, olha-a de frente, os cabelos molhados, o roupão, as pernas cruzadas, o rosto pálido. Maria Clara estremece, sente que alguma coisa está acontecendo mas não sabe o que é. Imagina que Archibald a quer, repele o pensamento que volta, intenso, segundos depois. Luta com as mangas do roupão para segurar a xícara, ri, nervosa.
— Estou parecendo uma débil mental.
— Espere. Vou dobrar as mangas para você, do jeito que estão você nunca vai conseguir beber este café.
Deixa-se escorregar da poltrona, caminha sobre o tapete com os joelhos no chão, aproxima-se de Maria Clara. Toma-lhe uma das mãos, começa a dobrar a manga com cuidado, como se mexesse com alguma coisa frágil e quebradiça.
— Você está tremendo...!
— Estou congelada.
Segura a mão tremula e fria entre as suas, levanta o rosto devagar. Os olhos de Maria Clara em frente aos seus, o cheiro de Maria Clara, os seios de Maria Clara... puxa-a para si, beija-lhe a testa, os olhos, a boca.
— Eu te queria tanto.
Ela treme, tem medo, está feliz. A mão de Archibald atravessa o roupão, acaricia os seios. Tenta afastá-lo.
— Não faz isso.
A mão foge, sobe para os ombros, abaixa o roupão.
— Archie, não.
— Por que não? Eu quero você, eu amo você. Vem, você é minha. Bem quietinha, não se mexe.
Maria Clara senta-se imóvel, a respiração ofegante. Archibald desamarra o cinto, o roupão escorrega, Maria Clara nua, tremula de medo e de expectativa, o coração aos saltos.
As mãos a percorrem, acariciam os seios, a barriga, procuram as pernas, escondem-se entre as coxas.
— Vem. Eu vou ensinar tudo para você, tudo. Isto é uma coisa muito mais bonita do que o inglês, vem, muito mais, vou te ensinar tudo. Deita.
Maria Clara deita-se no tapete, olha para o lado. Tem vontade e vergonha de olhar Archibald despir-se, mas sente seus movimentos, a camisa atirada em direção a poltrona, os pés que empurram as calças e estremece quando o tem ao lado, quando as mãos a envolvem e guiam suas mãos tímidas, quando os dedos percorrem seu corpo, caminhando de leve pelas pernas, subindo sentindo-a úmida e entregue, quando o tem por cima de si, tão suave e aflito, quando os joelhos forçam suas pernas, as palavras perdem o nexo e o mundo explode, eu te queria tanto.
Dez anos depois, Archibald deu um tiro na boca. Teve morte instantânea. Há nove não via Maria Clara que soube do suicídio vários meses depois, através da carta de um amigo que a cumprimentava pelo vigésimo quarto aniversário.
Cora Rónai
terça-feira, 28 de março de 2017
O livro da solidão
Os senhores todos conhecem a pergunta famosa universalmente repetida: "Que livro
escolheria para levar consigo, se tivesse de partir para uma ilha deserta...?"
Vêm os que acreditam em exemplos célebres e dizem naturalmente: "Uma história de Napoleão." Mas uma ilha deserta nem sempre é um exílio... Pode ser um passatempo...
Os que nunca tiveram tempo para fazer leituras grandes, pensam em obras de muitos volumes. É certo que numa ilha deserta é preciso encher o tempo... E lembram-se das Vidas de Plutarco, dos Ensaios de Montaigne, ou, se são mais cientistas que filósofos, da obra completa de Pasteur. Se são uma boa mescla de vida e sonho, pensam em toda a produção de Goethe, de Dostoievski, de Ibsen. Ou na Bíblia. Ou nas Mil e uma noites.
Pois eu creio que todos esses livros, embora esplêndidos, acabariam fatigando; e, se Deus me concedesse a mercê de morar numa ilha deserta (deserta, mas com relativo conforto, está claro — poltronas, chá, luz elétrica, ar condicionado) o que levava comigo era um Dicionário. Dicionário de qualquer língua, até com algumas folhas soltas; mas um Dicionário.
Não sei se muita gente haverá reparado nisso — mas o Dicionário é um dos livros mais poéticos, se não mesmo o mais poético dos livros. O Dicionário tem dentro de si o Universo completo.
Logo que uma noção humana toma forma de palavra — que é o que dá existência ás noções — vai habitar o Dicionário. As noções velhas vão ficando, com seus sestros de gente antiga, suas rugas, seus vestidos fora de moda; as noções novas vão chegando, com suas petulâncias, seus arrebiques, às vezes, sua rusticidade, sua grosseria. E tudo se vai arrumando direitinho, não pela ordem de chegada, como os candidatos a lugares nos ônibus, mas pela ordem alfabética, como nas listas de pessoas importantes, quando não se quer magoar ninguém...
O Dicionário é o mais democrático dos livros. Muito recomendável, portanto, na atualidade. Ali, o que governa é a disciplina das letras. Barão vem antes de conde, conde antes de duque, duque antes de rei. Sem falar que antes do rei também está o presidente.
O Dicionário responde a todas as curiosidades, e tem caminhos para todas as filosofias. Vemos as famílias de palavras, longas, acomodadas na sua semelhança, — e de repente os vizinhos tão diversos! Nem sempre elegantes, nem sempre decentes, — mas obedecendo á lei das letras, cabalística como a dos números...
O Dicionário explica a alma dos vocábulos: a sua hereditariedade e as suas mutações.
E as surpresas de palavras que nunca se tinham visto nem ouvido! Raridades, horrores, maravilhas...
Tudo isto num dicionário barato — porque os outros têm exemplos, frases que se podem decorar, para empregar nos artigos ou nas conversas eruditas, e assombrar os ouvintes e os leitores...
A minha pena é que não ensinem as crianças a amar o Dicionário. Ele contém todos os gêneros literários, pois cada palavra tem seu halo e seu destino — umas vão para aventuras, outras para viagens, outras para novelas, outras para poesia, umas para a história, outras para o teatro.
E como o bom uso das palavras e o bom uso do pensamento são uma coisa só e a mesma coisa, conhecer o sentido de cada uma é conduzir-se entre claridades, é construir mundos tendo como laboratório o Dicionário, onde jazem, catalogados, todos os necessários elementos.
Eu levaria o Dicionário para a ilha deserta. O tempo passaria docemente, enquanto eu passeasse por entre nomes conhecidos e desconhecidos, nomes, sementes e pensamentos e sementes das flores de retórica.
Poderia louvar melhor os amigos, e melhor perdoar os inimigos, porque o mecanismo da minha linguagem estaria mais ajustado nas suas molas complicadíssimas. E sobretudo, sabendo que germes pode conter uma palavra, cultivaria o silêncio, privilégio dos deuses, e ventura suprema dos homens.
Vêm os que acreditam em exemplos célebres e dizem naturalmente: "Uma história de Napoleão." Mas uma ilha deserta nem sempre é um exílio... Pode ser um passatempo...
Os que nunca tiveram tempo para fazer leituras grandes, pensam em obras de muitos volumes. É certo que numa ilha deserta é preciso encher o tempo... E lembram-se das Vidas de Plutarco, dos Ensaios de Montaigne, ou, se são mais cientistas que filósofos, da obra completa de Pasteur. Se são uma boa mescla de vida e sonho, pensam em toda a produção de Goethe, de Dostoievski, de Ibsen. Ou na Bíblia. Ou nas Mil e uma noites.
Pois eu creio que todos esses livros, embora esplêndidos, acabariam fatigando; e, se Deus me concedesse a mercê de morar numa ilha deserta (deserta, mas com relativo conforto, está claro — poltronas, chá, luz elétrica, ar condicionado) o que levava comigo era um Dicionário. Dicionário de qualquer língua, até com algumas folhas soltas; mas um Dicionário.
Não sei se muita gente haverá reparado nisso — mas o Dicionário é um dos livros mais poéticos, se não mesmo o mais poético dos livros. O Dicionário tem dentro de si o Universo completo.
Logo que uma noção humana toma forma de palavra — que é o que dá existência ás noções — vai habitar o Dicionário. As noções velhas vão ficando, com seus sestros de gente antiga, suas rugas, seus vestidos fora de moda; as noções novas vão chegando, com suas petulâncias, seus arrebiques, às vezes, sua rusticidade, sua grosseria. E tudo se vai arrumando direitinho, não pela ordem de chegada, como os candidatos a lugares nos ônibus, mas pela ordem alfabética, como nas listas de pessoas importantes, quando não se quer magoar ninguém...
O Dicionário é o mais democrático dos livros. Muito recomendável, portanto, na atualidade. Ali, o que governa é a disciplina das letras. Barão vem antes de conde, conde antes de duque, duque antes de rei. Sem falar que antes do rei também está o presidente.
O Dicionário responde a todas as curiosidades, e tem caminhos para todas as filosofias. Vemos as famílias de palavras, longas, acomodadas na sua semelhança, — e de repente os vizinhos tão diversos! Nem sempre elegantes, nem sempre decentes, — mas obedecendo á lei das letras, cabalística como a dos números...
O Dicionário explica a alma dos vocábulos: a sua hereditariedade e as suas mutações.
E as surpresas de palavras que nunca se tinham visto nem ouvido! Raridades, horrores, maravilhas...
Tudo isto num dicionário barato — porque os outros têm exemplos, frases que se podem decorar, para empregar nos artigos ou nas conversas eruditas, e assombrar os ouvintes e os leitores...
A minha pena é que não ensinem as crianças a amar o Dicionário. Ele contém todos os gêneros literários, pois cada palavra tem seu halo e seu destino — umas vão para aventuras, outras para viagens, outras para novelas, outras para poesia, umas para a história, outras para o teatro.
E como o bom uso das palavras e o bom uso do pensamento são uma coisa só e a mesma coisa, conhecer o sentido de cada uma é conduzir-se entre claridades, é construir mundos tendo como laboratório o Dicionário, onde jazem, catalogados, todos os necessários elementos.
Eu levaria o Dicionário para a ilha deserta. O tempo passaria docemente, enquanto eu passeasse por entre nomes conhecidos e desconhecidos, nomes, sementes e pensamentos e sementes das flores de retórica.
Poderia louvar melhor os amigos, e melhor perdoar os inimigos, porque o mecanismo da minha linguagem estaria mais ajustado nas suas molas complicadíssimas. E sobretudo, sabendo que germes pode conter uma palavra, cultivaria o silêncio, privilégio dos deuses, e ventura suprema dos homens.
Cecília Meireles
Mar português
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Fernando Pessoa
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Fernando Pessoa
Teatro de bonecos
Porque é o dia do meu aniversário. Só. Enquanto espero, sento-me para descansar um
pouco, afinal já tudo está feito, a mesa posta, a bebida escolhida, os legumes limpos e
cortados, o arroz, o indispensável molho de cerejas (me preocupam as formigas e sua
terrível fome de açúcar) cuja textura e sabor comprovei na língua antes de vertê-lo
sobre cada sulco da alcatra de búfalo que lentamente vai dourando no forno e que me deu
enorme trabalho para conseguir no mercadinho da aldeia, mas enfim, é um dos pratos
preferidos de Alfredo e foi ele quem acabou me convencendo a preparar esta noite, a não
deixar passar em branco a data dos meus quarenta anos.
Agora não quero a companhia de Alfredo e Ana. Fiz com que fossem caminhar na praia e aproveitar os últimos instantes do sol que já vai descendo atrás dos morros e deixando essa luz amarelada, artificiosa, que faz o mar parecer mais fundo. Alfredo chegou a dizer que gostaria que eu fosse junto, mas eu sei que é mentira. Ele às vezes me irrita com essas pequenas falsidades, por pouco não lhe joguei na cara a verdade. Eu devia ter lhe mostrado, de uma vez por todas, que ainda sou eu quem dá as cartas nesse jogo. Acontece que tenho medo de magoar a Ana, ela parece me entender tão bem, foi logo puxando Alfredo pelo braço, sabia que agora eu precisava ficar verdadeiramente só.
Sinto muito cansaço, mas é um cansaço que me acalma, um adormecimento das forças. Hoje perdi o sono lá pelas quatro da manhã e não consegui continuar na cama, era como se ouvisse o vaivém nervoso das formigas na cozinha, dezenas, centenas de pontinhos pretos brotando nas frestas do azulejo, subindo pelo pé da mesa e avançando nos minúsculos farelos de açúcar e farinha sobre a toalha. Levantei e vi que Alfredo havia adormecido no sofá, todo desengonçado como sempre, o braço e a perna pendidos e tocando o tapete. Ana dormia no quarto, cercada por suas almofadas coloridas e com aquele eterno ar de bonequinha adolescente. É impressionante como ela é graciosa. Mesmo quando jogada sobre uma cama, qualquer posição que ela assuma me parece sempre muito natural. Ao contrário do Alfredo e do seu corpo rígido e pouco espontâneo.
A madrugada é sempre muito solitária, tratei de acordá-los dizendo que desejava ver o sol nascer na praia, mas não foi fácil colocá-los de pé, estavam tão inertes, mais dormentes e pesados do que de costume. Somente com o sacolejo do carro na estradinha de terra foi que me pareceram mais despertos. Ainda fazia o friozinho atrasado da noite quando estacionei. Estávamos sentados os três no banco da frente, e sobre o mar havia uma borra de cobre, como se o sol estivesse imerso na água. Eu precisava falar sobre tudo o que me angustiava e resolvi começar pelas formigas. Alfredo concordou que era impossível continuar ignorando-as e que era preciso dar fim a tudo aquilo. Conversamos também sobre a noite passada, eu disse que havia bebido demais, a ponto de nem lembrar a que horas tinha dormido. Alfredo igualmente reconheceu ter exagerado na tequila, estava com uma terrível dor de cabeça. Havia certo tom de desculpa e ansiedade na sua voz, ele sabe que ando muito frágil e que Ana não o perdoaria se ele me magoasse. O problema todo é essa loucura, essa cegueira que foi tomando conta dos dois. Ana está dividida, é evidente, ficou calada o tempo inteiro, olhando fixamente o horizonte até que o sol se levantasse ainda gotejante e iluminasse por completo a seda branca da pele do seu rosto.
Agora me vem de cheio esse peso no corpo, a terrível dor nas têmporas. Sentado de costas para a janela, observo melhor a casa sem a presença deles e começo a perceber o verdadeiro tamanho da nossa solidão. É aí que vejo o que sou, onde há falta, onde aguardo infantilmente um preenchimento. E cada segundo de espera é uma pequena morte dentro de mim, como se a ausência daqueles dois fosse a antecipação da minha própria ausência, como se já fôssemos, os três, meros autômatos de um teatro de ridícula melancolia. A sala da nossa casa: a luz entrando como uma facada de sol por cima do meu ombro estende uma língua espessa e amarela sobre o verniz do assoalho, vai tornando visível o peso do ar, dá ao ambiente um aspecto de sonho ou alucinação, mas sobretudo revela a calma das coisas, essa espécie de quietude dos sentidos que vai descendo sobre a prata dos talheres, sobre as porcelanas, sobre as taças que logo se encherão com o vinho da serenidade, sobre a cristaleira, o sofá, o piano, estendendo sobre todos os móveis da sala uma colcha diáfana e luminosa, e é como se cada objeto refletisse a antiga harmonia da nossa convivência, assim como cada um de nós é (ou foi) o reflexo dos pensamentos, atitudes, e até dos gestos do outro.
Já tudo está feito. Vou esperando pelo tempo e escuto o rumor das ondas, adivinhando a espuma branca que se desmancha em forma de sussurro na areia. Claro que sei que daqui a pouco Alfredo e Ana estarão comigo outra vez e eu os verei entrar por aquela porta, alegres e barulhentos como sempre voltam desses passeios pela praia, e sei que tentarão me divertir tão logo me vejam tristonho; mas farei charme, não rirei assim que Alfredo, com aquele sorriso paralisado de manequim de vitrine, contar a primeira piada; sacudirei a cabeça e moverei sem graça os lábios, direi que sempre fico assim no dia do meu aniversário. Então eu sei: Ana deslizará sua mão de veludo sobre minha cabeça e me abraçará sem falar nada; e Alfredo, ainda que vacile um instante, também se juntará a nós, um pouco rígido e dissimulando a emoção com ironia, ele nos cercará com seus braços longos e um tanto desproporcionais, e assim ficaremos, enternecidos e abraçados os três, perfeitamente integrados um ao outro como nos tempos da felicidade, sentindo o contato quente dos corpos, o toque de suas peles brandas, a presença deles ao meu lado, o que sempre me dá vontade de chorar.
Quarenta anos. Alfredo tem razão, é dia de vestir a melhor roupa, comer o prato mais saboroso, beber nesse cálice o vinho da celebração. Mas é também o tempo de mexer no passado, buscar nas lembranças o ponto de apoio para isto que agora se revela tão frágil: nosso convívio arranjado à força dos desejos, sentimentos e necessidades irreprimíveis, a solidão compartilhada, nossa vida a três como se fosse uma só.
Não existe tempo daqui a uma hora. Quero viver para trás, avançar até o ponto em que minha memória começa a registrar os fatos da nossa vida: o tempo iluminado em que os conheci: primeiro Ana, seu sorriso, Ana cristalizada, Ana boneca envolvida pela luz fria da vitrine de uma butique de shopping, quando nossos olhares se cruzaram através do vidro e percebemos ao mesmo instante que não mais nos separaríamos. Mas não consegui lhe falar naquele dia. Voltei duas, três, seis, tantas vezes voltei à frente da vitrine que a dona da loja já me olhava desconfiada quando finalmente entrei. Passei sem olhar para Ana e fui falar com a dona. Comentei sobre as roupas — Ana, naquele dia, fazia o tipo colegial adolescente, com uma jaqueta folgada, calça jeans e moletom —, mas acrescentei que o que me impressionara mesmo fora a concepção da vitrine sem os tradicionais manequins de gesso, paralisados e sem vida nenhuma, e que aqueles bonecos de pano — tive de piscar o olho para Ana, que já fazia um muxoxo — que os bonecos sim enchiam de vida as roupas com seus corpos flexíveis e a pele tão macia ao toque, os cachos de cabelos de lã, o desenho e a cor do rosto, aqueles olhos vivíssimos de Ana a me olharem com uma insistência que me encabulava. A dona da butique argumentou que as pessoas compravam roupas na sua loja e não os manequins, mas o valor do cheque dispensava explicações. Trouxe Ana comigo, colada ao meu corpo, caminhamos juntos sob um final de tarde repleto de ruídos de trânsito e gente nas ruas, o vaivém incessante de pessoas avançando a cada sinal que se fechava aos carros, as pessoas subindo e descendo as calçadas, cruzando-se em direção às suas casas, ao refúgio dos laços estabelecidos, ao convívio familiar.
Já com Alfredo foi diferente, não houve a longa preparação da abordagem, a coisa foi mais rápida e direta, e muito em função do próprio Alfredo, um sujeito acima de tudo bastante prático. Nós nos conhecemos num domingo de sol excessivo no Brique e sua tez pálida e elástica era o contraponto exato à luminosidade daquela manhã. Estático, metido numas roupas antiquadas, era uma velharia a mais exposta entre livros, discos antigos e uma porção de objetos fora de uso espalhados sobre uma toalha na calçada. Alfredo tem o dom de surpreender. À primeira vista podia ser apenas um desses super-heróis infláveis que depois de fazer a alegria dos meninos murcham esquecidos no canto da garagem, mas havia no seu olhar uma vivacidade superior, notei desde o início que aquele ar de joão-bobo encobria alguém muito espirituoso, inteligente e, às vezes, matemático demais (a ponto até de me deixar assustado). Além de tudo, Alfredo era o lado extrovertido que faltava a mim e a Ana, e por isso nos conquistou com facilidade, trouxe mais alegria à nossa vida, deixou-nos a todos mais completos. Sempre admirei o jeito despreocupado como ele encara as coisas, esta atitude de deixar que a vida entre como um sopro por seu corpo transformando-o em alguém sempre pronto para a ação, a objetividade. Quando lhe falei (ou pensei apenas?), quase por brincadeira, da idéia de mudarmos para perto do mar, de imediato ele tomou a coisa como decidida e tratou da venda do nosso apartamento, da escolha da praia mais adequada e do projeto da nova casa, da burocracia de bancos e cartórios e o cancelamento dos pequenos compromissos em Porto Alegre — nada mais do que vínculos impessoais e estritamente necessários à vida na cidade, porque de resto não precisávamos comunicar amigos, família ou coisas do tipo, tínhamos há muito nossa própria vida e éramos completamente independentes.
O lugar que escolhemos é perfeito (existem as formigas, mas), a paisagem é linda, podemos fazer longos passeios pela praia e depois subir em algum rochedo para admirarmos o verde do mar e o céu muito amplo e quase sempre azul. Claro que vivemos isolados, mas uma aldeia de pescadores a três quilômetros oferece-nos tudo o que precisamos, desde o mini-mercado até a farmácia. O pessoal de lá já se acostumou com a nossa convivência. No início eles estranharam, mas logo passamos a fazer parte da simplicidade e da naturalidade da vida na aldeia. São poucas as pessoas de fora que vêm aqui, no máximo namorados em busca de isolamento para o amor. Até gostamos quando um ou outro destes casais aparecem. Nunca nos aproximamos muito, mas mesmo à distância nos enternecemos com o carinho que demonstram em cada gesto ou sorriso, nas mãos dadas, nos abraços.
Nossa casa é boa (o único inconveniente são as formigas, de resto), é espaçosa, arejada, mas não foi fácil ajustar o projeto de forma a satisfazer o gosto dos três. Há uma varanda ampla que dá para o mar, com folhagens e uma rede de dormir, onde costumamos conversar demoradamente e onde jogamos os jogos que vamos inventando para passar o tempo. No verão é o lugar de sentir a brisa do entardecer bebendo refrescos ou gim-tônica e lendo Virgínia Woolf, Silvia Plath e Sá-Carneiro. No inverno cerramos o janelão de vidro e passamos as horas tomando café e falando sobre nós, ou simplesmente nos metemos em silêncio, a olhar através da névoa salgada o mar espesso e seu céu de chumbo. São dias e noites frias. Confesso que às vezes sinto um frio excessivo por dentro, como uma corrente de sangue gelado inundando as veias. É um frio que cresce na carne e nos ossos, e brota na pele como um grande arrepio, quase um grito do meu corpo. Então enrolo-me no cobertor e vou em silêncio até o quarto de Ana. Caminho até sua cama e, primeiro, sento na borda do estrado, aguardo em vão que ela me diga algo para depois, como que agradecendo aquele silêncio de consentimento, aninhar-me junto ao corpo dela que, impassivelmente, num silêncio até mesmo dos gestos, deixa-se rolar no colchão para me dar um espaço dentro do seu espaço, e o calor da sua companhia.
Mas nossa vida é simples, dividimos as tarefas domésticas de acordo com as preferências de cada um. O dinheiro é meu e está aplicado, mas quem cuida disto é Alfredo, o mais prático dos três (estou me repetindo). Ana se ocupa em dar graça à casa, cuidar das flores, embelezar nossa sala com pequenos objetos que ela mesma fabrica ou descobre não sei onde. Sou eu quem geralmente cozinha e se encarrega das bebidas, gosto de misturar condimentos, experimentar temperos, matar a fome deles e a minha com imaginação e sensibilidade.
O único inconveniente aqui são as formigas (sei que estou me repetindo), sinto a presença de milhares, milhões delas fervilhando nas galerias que se ramificam sob nossos pés em infinitos veios subterrâneos, sou capaz de ouvir o barulho que não fazem (estou me repetindo), o rumor de uma multidão nervosa, insone, viva. Apavora-me a idéia de estar vivendo junto a um formigueiro gigante, e acho que Alfredo percebeu isto, sei que ele esteve na aldeia e pediu auxílio ao dono da farmácia (eu sei de tudo, sei de tudo), mas não me disse nada. Alfredo passou a fazer segredo de algumas coisas desde que ele e Ana começaram a viver essa aventura, tão evidente apesar do esforço deles para encobrir (eu sei). Ana está contrariada, é visível, na certa Alfredo a pressiona para que não comente o assunto. Também não falo nada, quero ver até onde são capazes de chegar — melhor seria dizer até onde Alfredo é capaz (onde eu sou, ou seria capaz) de chegar.
Ontem fomos jantar na aldeia, no restaurantezinho da Dona Carmelinda, como fazemos todas as semanas, e notei que eles estavam bastante alegres, quase felizes eu diria. Mas eu os conheço demais. Havia o nítido traço de desassossego em seus rostos, principalmente no de Alfredo. Estávamos pouco à vontade, mas Dona Carmelinda logo descontraiu a todos nós. Ela nos recebe sempre com festa e naturalidade, os pratos dispostos na mesa como da primeira vez (foi difícil a primeira vez, olhou-me desconfiada e perguntou se eles também iam comer): Alfredo e eu frente a frente, e Ana ao meu lado. Como sempre, servi a bebida primeiro a Ana que, como sempre, não fez nenhum movimento para alcançar o copo. Depois, quando vieram os pãezinhos, eu me apressei em partir um pedaço, passar a manteiga e levar à boca de Ana. Mas ela simplesmente deixou que o pão caísse sobre o prato, imóvel, fria, como se estivesse zangada comigo. Dona Carmelinda aproximou-se desde a porta da cozinha e disse que talvez Ana não estivesse com fome àquela hora. Fazia dois meses que a Dona Carmelinda tinha me presenteado com um recorte de jornal todo amassado, onde havia a receita da carne de búfalo. Desde então Alfredo insistia que devíamos fazê-la no meu aniversário. Voltei a pedir detalhes sobre o tempero e o preparo do molho, ela me deu um pote de vidro com gengibre moído e recomendou que adicionasse duas colherinhas assim que começasse a engrossar. Depois trouxe-nos uma cachacinha do seu alambique e em seguida serviu-nos a moqueca que só ela sabia preparar. Comemos e bebemos cerveja, voltamos para casa já um pouco altos e abrimos uma garrafa de tequila. Estávamos com vontade de beber e esvaziamos a garrafa enquanto cantávamos e dançávamos e ríamos os três abraçados. Fui à cozinha apanhar outra garrafa e me deparei com o incansável tráfego das formigas em suas trilhas sobre a lajota. Insuportável. Não tínhamos mais saída, Alfredo estava certo, era preciso acabar de uma vez com aquele suplício, sou capaz de ouvi-lo pensar (ouço o barulho que não fazem) na idéia de pôr um fim a tudo, sou capaz de vê-lo comprando aspirinas para a sua dor de cabeça e tomando mate com o farmacêutico, o assunto quase casual das pragas domésticas e as particularidades das formigas, a conversa derivando para a solução infalível de um pó fora de mercado e já quase esquecido entre caixas e frascos lá no depósito da farmácia, a facilidade de misturá-lo ao açúcar no armário, no chão, pelos cantos, nas frestas dos azulejos, sou capaz de elaborar a lógica de Alfredo e me descobrir nas suas roupas, nos seus gestos, na sua fala e nos seus desejos, descubro-me na própria existência de Alfredo e também na de Ana, desdobramentos obscuros de uma vida que já se afasta tanto, que aspira cada vez mais a um deserto, à solidão definitiva.
Apanhei outra garrafa de tequila (tenho que acabar logo com isto) no armário da cozinha, busquei copos limpos entre os potes de arroz e farinha e açúcar, o frasco com o gengibre em pó para misturar ao molho, as cerejas, vidrinhos de tempero e condimentos e sabores e efeitos. Quando voltei à sala eles já haviam adormecido no tapete. Não os coloquei na cama como fizera outras vezes, bebi mais dois copos e fui para o quarto. Mas não conseguia dormir. Parece que eu estava esperando aquilo acontecer. Ouvi um barulho sussurrado, retomei à sala e então me deparei com esta cena que ficará encravada na minha memória como uma fotografia do meu fim. O que senti foi humilhação, nada mais nada menos, e quase nada é mais violento do que a humilhação: Alfredo e Ana tinham fingido dormir para que eu me retirasse, e agora se amavam nus sobre o sofá. Fiquei algum tempo só olhando. Fiquei só olhando, era o que eu podia fazer. Então comecei a sentir que minha mão deslizava devagar e viva sobre meu peito, que a minha pele reagia ao toque dos meus dedos como se fosse o toque de outros dedos a circundar-me os mamilos duros e a descer arranhando-me os sulcos entre as costelas, que eu tocava meu corpo como se tocasse um corpo que não era meu, enquanto Ana grunhia umas palavras incompreensíveis e o seu corpo ardia embaixo do corpo de Alfredo se retorcendo vivamente, era ela pronta, ela pedindo, ela cravando as unhas nas nádegas de Alfredo num urro impressionante, enquanto eu banhava as mãos com meus líquidos em três, quatro, cinco jorros doloridos que levaram os últimos traços de vida que havia em mim.
Agora estou morto (estou sozinho, é a mesma coisa), sentado de costas para um sol que se põe definitivamente, sufocado pela demora de Alfredo e Ana. Mas de certa maneira me conforta saber que eles estão felizes, alguma parte de mim também está. Quero abrir a janela mas já não me restam forças. Está muito abafado, a carne vai passar do ponto, os legumes escolhidos, o gengibre em pó. Preciso ver como está o assado, talvez as formigas tenham invadido o prato, talvez até já existam algumas boiando no caldo vermelho das cerejas. Preciso me erguer e não me mostrar tão fraco para Alfredo e Ana. Eu sei que eles vão chegar em seguida (eu sei de tudo), eles já estão a caminho, estão de mãos dadas e atravessam devagar a faixa de areia que separa a casa do mar, aproximam-se radiantes, eu sei, por entre os pequenos canteiros do jardim. Ana está muito alegre e descontraída, sou capaz de vê-la ainda colher uma rosa, cheirar e prendê-la na alça do vestido antes de abrir a porta e agarrar-se ao braço de Alfredo, gritar e esmurrar o peito de Alfredo que está dizendo para ela ter controle e calma, Ana, por favor tenha calma e não complique as coisas, não precisa olhar, Ana, leve estes pratos daqui, junte estes frascos, mas por favor tente se controlar, Ana, veja só quanta formiga no chão, me ajude a deitá-lo no sofá, cuidado Ana, temos que varrer essas malditas formigas, pega a vassoura, Ana, mas pára de chorar, por favor pára de gritar, Ana, pára com isso, pára.
Agora não quero a companhia de Alfredo e Ana. Fiz com que fossem caminhar na praia e aproveitar os últimos instantes do sol que já vai descendo atrás dos morros e deixando essa luz amarelada, artificiosa, que faz o mar parecer mais fundo. Alfredo chegou a dizer que gostaria que eu fosse junto, mas eu sei que é mentira. Ele às vezes me irrita com essas pequenas falsidades, por pouco não lhe joguei na cara a verdade. Eu devia ter lhe mostrado, de uma vez por todas, que ainda sou eu quem dá as cartas nesse jogo. Acontece que tenho medo de magoar a Ana, ela parece me entender tão bem, foi logo puxando Alfredo pelo braço, sabia que agora eu precisava ficar verdadeiramente só.
Sinto muito cansaço, mas é um cansaço que me acalma, um adormecimento das forças. Hoje perdi o sono lá pelas quatro da manhã e não consegui continuar na cama, era como se ouvisse o vaivém nervoso das formigas na cozinha, dezenas, centenas de pontinhos pretos brotando nas frestas do azulejo, subindo pelo pé da mesa e avançando nos minúsculos farelos de açúcar e farinha sobre a toalha. Levantei e vi que Alfredo havia adormecido no sofá, todo desengonçado como sempre, o braço e a perna pendidos e tocando o tapete. Ana dormia no quarto, cercada por suas almofadas coloridas e com aquele eterno ar de bonequinha adolescente. É impressionante como ela é graciosa. Mesmo quando jogada sobre uma cama, qualquer posição que ela assuma me parece sempre muito natural. Ao contrário do Alfredo e do seu corpo rígido e pouco espontâneo.
A madrugada é sempre muito solitária, tratei de acordá-los dizendo que desejava ver o sol nascer na praia, mas não foi fácil colocá-los de pé, estavam tão inertes, mais dormentes e pesados do que de costume. Somente com o sacolejo do carro na estradinha de terra foi que me pareceram mais despertos. Ainda fazia o friozinho atrasado da noite quando estacionei. Estávamos sentados os três no banco da frente, e sobre o mar havia uma borra de cobre, como se o sol estivesse imerso na água. Eu precisava falar sobre tudo o que me angustiava e resolvi começar pelas formigas. Alfredo concordou que era impossível continuar ignorando-as e que era preciso dar fim a tudo aquilo. Conversamos também sobre a noite passada, eu disse que havia bebido demais, a ponto de nem lembrar a que horas tinha dormido. Alfredo igualmente reconheceu ter exagerado na tequila, estava com uma terrível dor de cabeça. Havia certo tom de desculpa e ansiedade na sua voz, ele sabe que ando muito frágil e que Ana não o perdoaria se ele me magoasse. O problema todo é essa loucura, essa cegueira que foi tomando conta dos dois. Ana está dividida, é evidente, ficou calada o tempo inteiro, olhando fixamente o horizonte até que o sol se levantasse ainda gotejante e iluminasse por completo a seda branca da pele do seu rosto.
Agora me vem de cheio esse peso no corpo, a terrível dor nas têmporas. Sentado de costas para a janela, observo melhor a casa sem a presença deles e começo a perceber o verdadeiro tamanho da nossa solidão. É aí que vejo o que sou, onde há falta, onde aguardo infantilmente um preenchimento. E cada segundo de espera é uma pequena morte dentro de mim, como se a ausência daqueles dois fosse a antecipação da minha própria ausência, como se já fôssemos, os três, meros autômatos de um teatro de ridícula melancolia. A sala da nossa casa: a luz entrando como uma facada de sol por cima do meu ombro estende uma língua espessa e amarela sobre o verniz do assoalho, vai tornando visível o peso do ar, dá ao ambiente um aspecto de sonho ou alucinação, mas sobretudo revela a calma das coisas, essa espécie de quietude dos sentidos que vai descendo sobre a prata dos talheres, sobre as porcelanas, sobre as taças que logo se encherão com o vinho da serenidade, sobre a cristaleira, o sofá, o piano, estendendo sobre todos os móveis da sala uma colcha diáfana e luminosa, e é como se cada objeto refletisse a antiga harmonia da nossa convivência, assim como cada um de nós é (ou foi) o reflexo dos pensamentos, atitudes, e até dos gestos do outro.
Já tudo está feito. Vou esperando pelo tempo e escuto o rumor das ondas, adivinhando a espuma branca que se desmancha em forma de sussurro na areia. Claro que sei que daqui a pouco Alfredo e Ana estarão comigo outra vez e eu os verei entrar por aquela porta, alegres e barulhentos como sempre voltam desses passeios pela praia, e sei que tentarão me divertir tão logo me vejam tristonho; mas farei charme, não rirei assim que Alfredo, com aquele sorriso paralisado de manequim de vitrine, contar a primeira piada; sacudirei a cabeça e moverei sem graça os lábios, direi que sempre fico assim no dia do meu aniversário. Então eu sei: Ana deslizará sua mão de veludo sobre minha cabeça e me abraçará sem falar nada; e Alfredo, ainda que vacile um instante, também se juntará a nós, um pouco rígido e dissimulando a emoção com ironia, ele nos cercará com seus braços longos e um tanto desproporcionais, e assim ficaremos, enternecidos e abraçados os três, perfeitamente integrados um ao outro como nos tempos da felicidade, sentindo o contato quente dos corpos, o toque de suas peles brandas, a presença deles ao meu lado, o que sempre me dá vontade de chorar.
Quarenta anos. Alfredo tem razão, é dia de vestir a melhor roupa, comer o prato mais saboroso, beber nesse cálice o vinho da celebração. Mas é também o tempo de mexer no passado, buscar nas lembranças o ponto de apoio para isto que agora se revela tão frágil: nosso convívio arranjado à força dos desejos, sentimentos e necessidades irreprimíveis, a solidão compartilhada, nossa vida a três como se fosse uma só.
Não existe tempo daqui a uma hora. Quero viver para trás, avançar até o ponto em que minha memória começa a registrar os fatos da nossa vida: o tempo iluminado em que os conheci: primeiro Ana, seu sorriso, Ana cristalizada, Ana boneca envolvida pela luz fria da vitrine de uma butique de shopping, quando nossos olhares se cruzaram através do vidro e percebemos ao mesmo instante que não mais nos separaríamos. Mas não consegui lhe falar naquele dia. Voltei duas, três, seis, tantas vezes voltei à frente da vitrine que a dona da loja já me olhava desconfiada quando finalmente entrei. Passei sem olhar para Ana e fui falar com a dona. Comentei sobre as roupas — Ana, naquele dia, fazia o tipo colegial adolescente, com uma jaqueta folgada, calça jeans e moletom —, mas acrescentei que o que me impressionara mesmo fora a concepção da vitrine sem os tradicionais manequins de gesso, paralisados e sem vida nenhuma, e que aqueles bonecos de pano — tive de piscar o olho para Ana, que já fazia um muxoxo — que os bonecos sim enchiam de vida as roupas com seus corpos flexíveis e a pele tão macia ao toque, os cachos de cabelos de lã, o desenho e a cor do rosto, aqueles olhos vivíssimos de Ana a me olharem com uma insistência que me encabulava. A dona da butique argumentou que as pessoas compravam roupas na sua loja e não os manequins, mas o valor do cheque dispensava explicações. Trouxe Ana comigo, colada ao meu corpo, caminhamos juntos sob um final de tarde repleto de ruídos de trânsito e gente nas ruas, o vaivém incessante de pessoas avançando a cada sinal que se fechava aos carros, as pessoas subindo e descendo as calçadas, cruzando-se em direção às suas casas, ao refúgio dos laços estabelecidos, ao convívio familiar.
Já com Alfredo foi diferente, não houve a longa preparação da abordagem, a coisa foi mais rápida e direta, e muito em função do próprio Alfredo, um sujeito acima de tudo bastante prático. Nós nos conhecemos num domingo de sol excessivo no Brique e sua tez pálida e elástica era o contraponto exato à luminosidade daquela manhã. Estático, metido numas roupas antiquadas, era uma velharia a mais exposta entre livros, discos antigos e uma porção de objetos fora de uso espalhados sobre uma toalha na calçada. Alfredo tem o dom de surpreender. À primeira vista podia ser apenas um desses super-heróis infláveis que depois de fazer a alegria dos meninos murcham esquecidos no canto da garagem, mas havia no seu olhar uma vivacidade superior, notei desde o início que aquele ar de joão-bobo encobria alguém muito espirituoso, inteligente e, às vezes, matemático demais (a ponto até de me deixar assustado). Além de tudo, Alfredo era o lado extrovertido que faltava a mim e a Ana, e por isso nos conquistou com facilidade, trouxe mais alegria à nossa vida, deixou-nos a todos mais completos. Sempre admirei o jeito despreocupado como ele encara as coisas, esta atitude de deixar que a vida entre como um sopro por seu corpo transformando-o em alguém sempre pronto para a ação, a objetividade. Quando lhe falei (ou pensei apenas?), quase por brincadeira, da idéia de mudarmos para perto do mar, de imediato ele tomou a coisa como decidida e tratou da venda do nosso apartamento, da escolha da praia mais adequada e do projeto da nova casa, da burocracia de bancos e cartórios e o cancelamento dos pequenos compromissos em Porto Alegre — nada mais do que vínculos impessoais e estritamente necessários à vida na cidade, porque de resto não precisávamos comunicar amigos, família ou coisas do tipo, tínhamos há muito nossa própria vida e éramos completamente independentes.
O lugar que escolhemos é perfeito (existem as formigas, mas), a paisagem é linda, podemos fazer longos passeios pela praia e depois subir em algum rochedo para admirarmos o verde do mar e o céu muito amplo e quase sempre azul. Claro que vivemos isolados, mas uma aldeia de pescadores a três quilômetros oferece-nos tudo o que precisamos, desde o mini-mercado até a farmácia. O pessoal de lá já se acostumou com a nossa convivência. No início eles estranharam, mas logo passamos a fazer parte da simplicidade e da naturalidade da vida na aldeia. São poucas as pessoas de fora que vêm aqui, no máximo namorados em busca de isolamento para o amor. Até gostamos quando um ou outro destes casais aparecem. Nunca nos aproximamos muito, mas mesmo à distância nos enternecemos com o carinho que demonstram em cada gesto ou sorriso, nas mãos dadas, nos abraços.
Nossa casa é boa (o único inconveniente são as formigas, de resto), é espaçosa, arejada, mas não foi fácil ajustar o projeto de forma a satisfazer o gosto dos três. Há uma varanda ampla que dá para o mar, com folhagens e uma rede de dormir, onde costumamos conversar demoradamente e onde jogamos os jogos que vamos inventando para passar o tempo. No verão é o lugar de sentir a brisa do entardecer bebendo refrescos ou gim-tônica e lendo Virgínia Woolf, Silvia Plath e Sá-Carneiro. No inverno cerramos o janelão de vidro e passamos as horas tomando café e falando sobre nós, ou simplesmente nos metemos em silêncio, a olhar através da névoa salgada o mar espesso e seu céu de chumbo. São dias e noites frias. Confesso que às vezes sinto um frio excessivo por dentro, como uma corrente de sangue gelado inundando as veias. É um frio que cresce na carne e nos ossos, e brota na pele como um grande arrepio, quase um grito do meu corpo. Então enrolo-me no cobertor e vou em silêncio até o quarto de Ana. Caminho até sua cama e, primeiro, sento na borda do estrado, aguardo em vão que ela me diga algo para depois, como que agradecendo aquele silêncio de consentimento, aninhar-me junto ao corpo dela que, impassivelmente, num silêncio até mesmo dos gestos, deixa-se rolar no colchão para me dar um espaço dentro do seu espaço, e o calor da sua companhia.
Mas nossa vida é simples, dividimos as tarefas domésticas de acordo com as preferências de cada um. O dinheiro é meu e está aplicado, mas quem cuida disto é Alfredo, o mais prático dos três (estou me repetindo). Ana se ocupa em dar graça à casa, cuidar das flores, embelezar nossa sala com pequenos objetos que ela mesma fabrica ou descobre não sei onde. Sou eu quem geralmente cozinha e se encarrega das bebidas, gosto de misturar condimentos, experimentar temperos, matar a fome deles e a minha com imaginação e sensibilidade.
O único inconveniente aqui são as formigas (sei que estou me repetindo), sinto a presença de milhares, milhões delas fervilhando nas galerias que se ramificam sob nossos pés em infinitos veios subterrâneos, sou capaz de ouvir o barulho que não fazem (estou me repetindo), o rumor de uma multidão nervosa, insone, viva. Apavora-me a idéia de estar vivendo junto a um formigueiro gigante, e acho que Alfredo percebeu isto, sei que ele esteve na aldeia e pediu auxílio ao dono da farmácia (eu sei de tudo, sei de tudo), mas não me disse nada. Alfredo passou a fazer segredo de algumas coisas desde que ele e Ana começaram a viver essa aventura, tão evidente apesar do esforço deles para encobrir (eu sei). Ana está contrariada, é visível, na certa Alfredo a pressiona para que não comente o assunto. Também não falo nada, quero ver até onde são capazes de chegar — melhor seria dizer até onde Alfredo é capaz (onde eu sou, ou seria capaz) de chegar.
Ontem fomos jantar na aldeia, no restaurantezinho da Dona Carmelinda, como fazemos todas as semanas, e notei que eles estavam bastante alegres, quase felizes eu diria. Mas eu os conheço demais. Havia o nítido traço de desassossego em seus rostos, principalmente no de Alfredo. Estávamos pouco à vontade, mas Dona Carmelinda logo descontraiu a todos nós. Ela nos recebe sempre com festa e naturalidade, os pratos dispostos na mesa como da primeira vez (foi difícil a primeira vez, olhou-me desconfiada e perguntou se eles também iam comer): Alfredo e eu frente a frente, e Ana ao meu lado. Como sempre, servi a bebida primeiro a Ana que, como sempre, não fez nenhum movimento para alcançar o copo. Depois, quando vieram os pãezinhos, eu me apressei em partir um pedaço, passar a manteiga e levar à boca de Ana. Mas ela simplesmente deixou que o pão caísse sobre o prato, imóvel, fria, como se estivesse zangada comigo. Dona Carmelinda aproximou-se desde a porta da cozinha e disse que talvez Ana não estivesse com fome àquela hora. Fazia dois meses que a Dona Carmelinda tinha me presenteado com um recorte de jornal todo amassado, onde havia a receita da carne de búfalo. Desde então Alfredo insistia que devíamos fazê-la no meu aniversário. Voltei a pedir detalhes sobre o tempero e o preparo do molho, ela me deu um pote de vidro com gengibre moído e recomendou que adicionasse duas colherinhas assim que começasse a engrossar. Depois trouxe-nos uma cachacinha do seu alambique e em seguida serviu-nos a moqueca que só ela sabia preparar. Comemos e bebemos cerveja, voltamos para casa já um pouco altos e abrimos uma garrafa de tequila. Estávamos com vontade de beber e esvaziamos a garrafa enquanto cantávamos e dançávamos e ríamos os três abraçados. Fui à cozinha apanhar outra garrafa e me deparei com o incansável tráfego das formigas em suas trilhas sobre a lajota. Insuportável. Não tínhamos mais saída, Alfredo estava certo, era preciso acabar de uma vez com aquele suplício, sou capaz de ouvi-lo pensar (ouço o barulho que não fazem) na idéia de pôr um fim a tudo, sou capaz de vê-lo comprando aspirinas para a sua dor de cabeça e tomando mate com o farmacêutico, o assunto quase casual das pragas domésticas e as particularidades das formigas, a conversa derivando para a solução infalível de um pó fora de mercado e já quase esquecido entre caixas e frascos lá no depósito da farmácia, a facilidade de misturá-lo ao açúcar no armário, no chão, pelos cantos, nas frestas dos azulejos, sou capaz de elaborar a lógica de Alfredo e me descobrir nas suas roupas, nos seus gestos, na sua fala e nos seus desejos, descubro-me na própria existência de Alfredo e também na de Ana, desdobramentos obscuros de uma vida que já se afasta tanto, que aspira cada vez mais a um deserto, à solidão definitiva.
Apanhei outra garrafa de tequila (tenho que acabar logo com isto) no armário da cozinha, busquei copos limpos entre os potes de arroz e farinha e açúcar, o frasco com o gengibre em pó para misturar ao molho, as cerejas, vidrinhos de tempero e condimentos e sabores e efeitos. Quando voltei à sala eles já haviam adormecido no tapete. Não os coloquei na cama como fizera outras vezes, bebi mais dois copos e fui para o quarto. Mas não conseguia dormir. Parece que eu estava esperando aquilo acontecer. Ouvi um barulho sussurrado, retomei à sala e então me deparei com esta cena que ficará encravada na minha memória como uma fotografia do meu fim. O que senti foi humilhação, nada mais nada menos, e quase nada é mais violento do que a humilhação: Alfredo e Ana tinham fingido dormir para que eu me retirasse, e agora se amavam nus sobre o sofá. Fiquei algum tempo só olhando. Fiquei só olhando, era o que eu podia fazer. Então comecei a sentir que minha mão deslizava devagar e viva sobre meu peito, que a minha pele reagia ao toque dos meus dedos como se fosse o toque de outros dedos a circundar-me os mamilos duros e a descer arranhando-me os sulcos entre as costelas, que eu tocava meu corpo como se tocasse um corpo que não era meu, enquanto Ana grunhia umas palavras incompreensíveis e o seu corpo ardia embaixo do corpo de Alfredo se retorcendo vivamente, era ela pronta, ela pedindo, ela cravando as unhas nas nádegas de Alfredo num urro impressionante, enquanto eu banhava as mãos com meus líquidos em três, quatro, cinco jorros doloridos que levaram os últimos traços de vida que havia em mim.
Agora estou morto (estou sozinho, é a mesma coisa), sentado de costas para um sol que se põe definitivamente, sufocado pela demora de Alfredo e Ana. Mas de certa maneira me conforta saber que eles estão felizes, alguma parte de mim também está. Quero abrir a janela mas já não me restam forças. Está muito abafado, a carne vai passar do ponto, os legumes escolhidos, o gengibre em pó. Preciso ver como está o assado, talvez as formigas tenham invadido o prato, talvez até já existam algumas boiando no caldo vermelho das cerejas. Preciso me erguer e não me mostrar tão fraco para Alfredo e Ana. Eu sei que eles vão chegar em seguida (eu sei de tudo), eles já estão a caminho, estão de mãos dadas e atravessam devagar a faixa de areia que separa a casa do mar, aproximam-se radiantes, eu sei, por entre os pequenos canteiros do jardim. Ana está muito alegre e descontraída, sou capaz de vê-la ainda colher uma rosa, cheirar e prendê-la na alça do vestido antes de abrir a porta e agarrar-se ao braço de Alfredo, gritar e esmurrar o peito de Alfredo que está dizendo para ela ter controle e calma, Ana, por favor tenha calma e não complique as coisas, não precisa olhar, Ana, leve estes pratos daqui, junte estes frascos, mas por favor tente se controlar, Ana, veja só quanta formiga no chão, me ajude a deitá-lo no sofá, cuidado Ana, temos que varrer essas malditas formigas, pega a vassoura, Ana, mas pára de chorar, por favor pára de gritar, Ana, pára com isso, pára.
Amílcar Bettega Barbosa
Texto extraído do livro “Geração 90: manuscritos de computador”, Boitempo Editorial – São Paulo, 2001, pág. 31.
segunda-feira, 27 de março de 2017
A arte de escrever difícil
(ilustração: Salvador Dalí)
As palavras difíceis e as palavras fáceis são dois grandes
testes para quem escreve. Podemos
chamá-las também de palavras complicadas e palavras simples, ou então de
palavras raras e palavras comuns. Tudo é
a mesma coisa.
Acho
que hoje em dia a grande maioria dos manuais ou das
oficinas literárias aconselha as pessoas a usarem palavras simples.
Houve um tempo em que não era assim. Palavrório rebuscado (ou, mais
simplesmente:
vocabulário difícil) era um sinal de talento, de erudição, de poder
social.
Principalmente no Brasil do século 19, um Brasil agrário com
milhões de analfabetos, pouquíssimas universidades, e uma elite dirigente que
sempre utilizou a cultura livresca e o diploma como filtros obrigatórios para a
ascensão social.
O povo podia ter a cultura que tivesse, mas só era
considerado culto quem fosse capaz de usar provérbios em latim, de citar
Sófocles ou Platão, de recitar em francês ou utilizar com propriedade termos
obscuros.
Muitos pretendentes a literatos dessa época costumavam
folhear o dicionário de caderno em punho, anotando palavras difíceis (Objurgatória!
Catafalco! Quejandos! Fâmulo! Tremebundo! Estentórico!) e depois procurando um
pretexto para enfiá-la nos seus artigos ou contos.
Um dos acusados desse cacoete é o quase esquecido Coelho
Neto (1864-1934), dono de um vocabulário sonoro e cheio de preciosidades, e que
foi por muito tempo considerado o maior escritor brasileiro.
Abro ao acaso uma página de seu melhor romance, A
Conquista, e logo dou de cara com “um pardieiro sombrio e lôbrego”,
“lazarone”, “racimos”, “corbelhas”, “tresandava”, “comezaina”, “vinhaça”... Podemos dar o desconto de que alguns destes
termos fossem comuns em 1899, ano do livro; mas a gente vê que Coelho Neto não
era autor de colocar uma palavra direta se dispusesse de um sinônimo enfeitado
e obscuro.
Uma boa comparação de estilo pomposo e estilo claro pode ser
feita entre seus textos e os de Lima Barreto no recente livro Lima Barreto
versus Coelho Neto: Um Fla-Flu Literário, de Mauro Rosso, que compara os
artigos de ambos a respeito do futebol.
Guimarães Rosa é um dos primeiros exemplos que nos ocorrem
quando pensamos numa linguagem arrevezada, troncha, abstrusa... Palavras complicadas pareciam não faltar no
seu embornal, e qualquer página aberta também ao acaso, como esta de Tutaméia,
nos dá “intruge-se”, “lepidão”, “quizília”, “uca”, “sipipira”...
Entram aí regionalismos, arcaísmos, formações novas a partir
de radicais conhecidos. De tantas em
tantas linhas uma palavra parece saltar da página e ficar de pé, oferecendo-se
ao exame, pedindo para ser interpretada e encaixada na frase. (E muitas vezes percebemos que a própria
frase já nos indica ou insinua o que ela veladamente diz – e nisto reside uma
das artes do escrever difícil.)
E depois que o leitor pega o tom da voz narrativa de Rosa,
torna-se um prazer a mais esse descascar das palavras novas para vê-las por
dentro.
Existem autores que escrevem difícil numa outra clave
musical, quer dizer, com o propósito de despertar um outro tipo de resposta no
leitor.
Há o caso curioso do curitibano Paulo Leminski, cujos poemas
curtos eram de uma admirável limpidez de linguagem, e que por outro lado nos
deu um dos romances de vocabulário mais idiossincrático em nossa literatura, o Catatau
(1975). Nele encontramos trechos
destemperados como:
“Runáticos, versitergeremos,
certo. Nome, porém, não trocaremos por
sinamônico algum nenhúnico! Posso
provar: tenho aprovação própria. Pensar
por pensar. Some um círio suando de
pensar, aceso na cabeça e as formigas me comendo e me levando em partículas
para suas monarquias soterradas”.
A citação mais longa é necessária para dar idéia do sabor do
texto, da metralhadora verbal com que o autor dispara aparentes disparates
sobre nós.
O romance de Leminski cria um delírio verbal num tom
desorientado (mas mantido do princípio ao fim com admirável coerência) para
contar a história da viagem imaginária de René Descartes ao Brasil e a
impressão que nosso mundo tropical e suas ervas alucinógenas despertam em sua
mente lógica e científica.
Neste caso, juntam-se palavras inventadas, palavras
indecifráveis, palavras híbridas, pedaços de raízes gregas e latinas,
fragmentos do tupi ou de gírias e jargões específicos.
A palavra vale um pouco pelo que significa em si, mas talvez
valha até mais em função do quanto sustenta essa voz narrativa: caótica,
estilhaçada, multicultural.
Gabriel Garcia Márquez costumava afirmar que coloca muitas
palavras nos seus textos sem muita atenção para o seu significado, mas apenas
pela sua capacidade de manter e prolongar certa musicalidade necessária ao
encantamento da prosa. “Basta uma
palavra no lugar errado”, dizia ele, “e todo o efeito vai por água abaixo”.
Imagino que Coelho Neto queria exibir, para prazer seu e do
leitor, seu preciosismo e erudição; que Rosa queria trazer para a língua geral,
dentro da jurisdição de seus romances, certos processos internos do linguajar
do homem do sertão mineiro.
E que Leminski produzia um caos ordenado para desequilibrar
a tendência raciocinante e lógica do leitor e fazê-lo viver a experiência do
mundo por dentro do personagem, de suas palavras (e um personagem literário,
qualquer um, é uma criatura feita apenas de palavras e nada mais).
A palavra difícil exige esforço do leitor, e convém que ele
receba em troca alguma coisa.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
(Uma outra versão deste texto foi publicada na revista Língua Portuguesa, da Editora Segmento, São Paulo, # 64, fevereiro de 2011 )
“Mini Vulcão” aparece no Ceará e assusta moradores -
Um fenômeno natural muito parecido com um mini vulcão apareceu em um sitio na cidade de Maranguape-Ceará.
Os moradores ainda não sabem exatamente do que se trata , a pequena fenda esta “cuspindo” água quente e muita fumaça.
Nunca houve algo igual na cidade e por isso os moradores estão assutados.
O dono do Sitio informou que irá chamar
especialistas no caso para verificar a terra e tentar descobrir o que se
trata tal fenômeno.
Segundo informações a atividade de uma
empresa na extração de pedras no local onde fica o suposto vulcão o que
pode ter acordado o mesmo. em uma matéria até diz que os moradores do
lugarejo entraram com um pedido na justiça, para que as atividades da
empresa sejam barradas.
o Ceará. Somente na Região Metropolitana
de Fortaleza, foram mapeados dez resquícios de cones vulcânicos,
estruturas condutoras de magma deixadas há cerca de 30 milhões de anos e
isso também pode haver em outras cidades próximas como é o caso de
Maranguape , cidade vizinha de fortaleza.
Publicado por:
Alana Beltrão
Fonte aqui
Frase
"O caráter do ser humano pode se alterar com o
passar dos anos, mas nunca a sua mediocridade, já disse certo autor
russo. Os russos às vezes são muito perspicazes. Talvez pensem muito
durante os longos invernos."
Haruki Murakami
"Sagarana": "Minha Gente"
Ilustração Poty
“Minha
Gente” é o quinto conto de Sagarana,
de Guimarães Rosa (1946). Foi o terceiro conto a ser escrito para o livro,
segundo comentário do autor, incluído nas duas primeiras edições e retirado nas
seguintes.
Num depoimento-carta, bem longo, para o jornalista João Condé, incluído no
livro Relembramentos: João Guimarães
Rosa, meu pai, de Vilma Guimarães Rosa
(Nova Fronteira, 1983, p. 331-337), Rosa comenta assim a história:
MINHA GENTE – Por causa de uma gripe, talvez, foi escrita molemente,
com uma pachorra e um descansado de espírito, que o autor não poderia ter, ao
escrever as demais.
É um conto considerado menor dentro do livro, mas para
mim é um dos mais bem amarrados, embora não pareça. É inclusive um conto cujo
desfecho, no último parágrafo, nos leva a rever a história inteira com outros
olhos, embora não chegue a ser uma surpresa mirabolante, e sim um mero cair da
moeda, que girava, para um dos dois lados.
O Narrador do conto é um rapaz que vai passar uns tempos
descansando na fazenda do seu tio Emílio. Lá reencontra a prima Maria Irma, com
quem tivera um namorico na adolescência. O tio está enfronhado nas disputas
eleitorais do município. O rapaz passeia, pesca, troca idéias com os moradores,
azara a prima, presencia um crime. Não acontece nada de excepcional.
É uma historinha de amor no meio rural, mas um meio rural
já consciente do moderno, do poder gravitacional da cidade grande (como ocorre
também em “A volta do marido pródigo”, “Duelo”).
O Narrador volta disposto a reencontrar o passado: no
vilarejo “a ladeira para a Rua de Cima ainda é "a mesma”, “a casa do Juca Cintra
ainda tem a mesma pintura”, e por aí vai. Mas quando ele bota o pé na fazenda
do tio tudo muda. O tempo passou. O tio está galvanizado pela campanha
política, e a prima está mais crescida, mais bonita e mais sabida. O Narrador
começa a arrastar uma asa firme na direção dela.
O tema da ida-e-volta, presente em todo o Sagarana, se orquestra nesse rencontro
do Narrador com sua adolescência transformada, e o modo como ele, ainda
ameninado, é manipulado pelos que cresceram mais depressa. E ecoa no nome da
prima Maria Irma, quase um palíndromo, que se lê indo-e-voltando.
Outros elementos dão o tom da história. Um deles é
Santana, o amigo mais velho que o Narrador reencontra logo no começo. Um típico
interiorano de Rosa, que gosta de jogar xadrez e de citar a Odisséia de Homero. Descrevendo com
propriedade os movimentos e a dinâmica do jogo, Rosa nos adverte de que o “modo
enxadrístico de pensar” não é estranho ao autor.
Outro elemento é a política local (para o brasileiro
médio, a única política que é possível compreender e ver com entusiasmo). Ele
descreve o tranxinxim estratégico do tio Emílio num parágrafo saboroso:
Política sutilíssima, pois ele faz oposição à Presidência da Câmara no
seu Município (no. 1), ao mesmo tempo que apoia, devotamente, o Presidente do
Estado. Além disso, está aliado ao Presidente da Câmara do Município vizinho a
leste (no. 2), cuja oposição trabalha coligada com a chefia oficial do
município no. 1. Portanto, se é que bem o entendi, temos aqui duas enredadas
correntes cívicas, que também disputam a amizade do situacionismo do grande
município ao norte (no. 3). Dessa trapizonga, em estabilíssimo equilíbrio,
resultarão vários deputados estaduais e outros federais, e, como as eleições
estão próximas, tudo vai muito intenso e muito alegre, a maravilhas mil.
Não parece; mas é o tema do xadrez quer retorna com outro
figurino. Sempre o tema das mil variantes de ataque e defesa, de pergunta e
resposta, de aproximação e afastamento, de sedução e separação.
O grande momento dramático do conto é o assassinato de
Bento Porfírio, um morador local que acompanha o Narrador em suas pescarias.
Bento Porfírio está metido em um caso intrincado de amor e adultério (como
ocorre em “A volta do marido pródigo”, “Duelo”, “Sarapalha”). Casado, está
tendo um caso com uma mulher casada.
Um dia a pescaria é interrompida pelo surgimento do
marido da outra, Alexandre, que o mata com uma foiçada. Olha o modo rápido e
entrecortado como o assassinato é descrito:
Fui testemunha. Pode lá a gente ser mesmo testemunha? Não sei como foi:
um grito de raiva, uma pancada, o t’bum n’água de uma queda pesada, como
um pulo de anta. Alexandre, o marido, de calças arregaçadas. Só as calças
arregaçadas, os pés enormes, descalços na lama... Um ramo verde-maçã, a se
agitar, em rendilha... Daí, a foice, na mão do Alexandre... O Alexandre,
primeiro de cara fechada, depois com um ar de palerma... A foice, com sangue,
ficou no chão. A água ensanguentada... O Alexandre vai indo embora. Já gastou a
raiva. O morto não se vê. Está no fundo.
Bento Porfírio tinha perdido a chance de casar com a
de-Lourdes, cujo pai o queria para genro. Não se interessou em conhecê-la.
Quando a conheceu, ela já estava casada com o Alexandre. Ele se apaixonou e se
arrependeu. O que fez? Casou com a Bilica, “só
por pirraça e falta do que fazer”. E o quadrângulo amoroso ficou formado,
pois Bento e de-Lourdes se embrenharam num amor que terminou numa foiçada à
beira-rio.
O xadrez, a política e o crime são elementos fortes que
dão o tom do conto. Porque o conto na verdade é sobre outro quadrângulo
amoroso, que nos lembra o famoso poema “Quadrilha” de Drummond: “João amava Teresa que amava Raimundo que
amava Maria...”
O Narrador começa a achar que ama a prima Maria Irma, mas
descobre que ela tem um amigo muito gentil chamado Ramiro, que lhe empresta
livros, o que acaba gerando ceninhas de ciúme; mas Ramiro é noivo de Armanda,
grande amiga de Maria Irma, então tudo bem.
O Narrador elogia a prima sem parar. Inclusive relata,
logo na chegada à fazenda, um episódio típico do que hoje se chama
“mansplaining”, o vício masculino de dar às mulheres longas explicações sobre
qualquer assunto antes mesmo de perguntar o que elas pensam a respeito:
Tolamente, fui empunhando a conversa. E o pior foi que minha prima me
deixou discorrer, muito tempo, e eu procurava abaixar o nível do discurso,
porque punha pouco preço no poder da sua compreensão. No fim, muito maldosa,
com duas ou três respostas, deixou-me atônito. Tive ímpetos de gritar: --
Priminha, o falado até aqui não vale! Vamos riscar a conversa e principiar tudo
de novo!...
Dubitativo, distraído, com a cabeça cheia de vacilações,
o Narrador vai se deixando enredar. Quando acusa Maria Irma de estar
interessada no Ramiro, a prima não faz outra coisa senão lembrar que Ramiro é
noivo da Armanda, e começa a elogiar a amiga:
É muito bonita, foi educada com parentes no Rio, já esteve na Europa, é
filha de fazendeira – porque o pai já morreu -, mora no Cedro... (...) Da minha altura. Mais cheia de corpo... É
bonita... (...) E guia automóvel muito bem. É saída... (...) É muito desembaraçada... Independente...
Moderna...
O Narrador é um inocente simpático e vai se deixando
enredar. Quando se aproxima da prima querendo coisa, pensa consigo que se trata
de “ceder terreno, para depois
recuperá-lo. É boa tática... Um ‘gambito do peão da Dama’, como Santana diria”.
Ele sabe que o jogo amoroso é um xadrez.
A política, também, e ele acaba ajudando sem querer o tio
quando visita um adversário político deste e, tendo feito comentários inocentes,
recebe do tio o elogio: “você costurou
certo”. Costurou sem querer, porque o jogo político é aquele em que o
adversário diz que vai viajar e a gente deduz que aquilo é para a gente pensar
que ele vai ficar em casa, e que portanto o mentiroso vai viajar mesmo. Como na
negociação do bezerro entre o tio Emílio e um fazendeiro amigo, minuciosamente
narrada com suas idas e vindas.
No final, o partido do tio ganha a eleição e o Narrador,
que tinha ido visitar outra fazenda, volta e reencontra quem? Maria Irma ao
lado de Armanda:
Alguém riu. Era Armanda, a de maravilhosa boca e olhos esplêndidos.
(...) Andamos. Calados. Crescia em mim uma coisa definitiva, assim como a impressão
de já conhecê-la, desde muito, muito tempo. Nossas mãos se encontraram, de
repente, e eu senti que ela também estremeceu.
Há histórias que vão o tempo todo numa direção, e no final
dão uma guinada para outra, e só então percebemos para onde a história estava
indo o tempo todo, com seus subterfúgios da política, suas estratégias de
xadrez, sua arte de resolver os desencontros amorosos de maneira mais diplomática e moderna, sem tragédias e sem foices. E o conto se fecha com esse parágrafo exemplar:
E foi assim que fiquei noivo de Armanda, com quem me casei, no mês de
maio, ainda antes do matrimônio da minha prima Maria Irma com o moço Ramiro
Gouvêia, dos Gouvêias da fazenda da Brejaúba, no Todo-Fim-É-Bom.
Ou, como disse Shakespeare ao tratar de situações
semelhantes: “Tudo está bem quando acaba
bem”, principalmente se deixarmos que as mulheres façam o corte e a costura
das alianças amorosas.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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