Tata Amaral criou e dirigiu um filme essencial para o Brasil de todos os tempos. Trago comigo
dirige-se a todos nós, a quem, no tempo presente, é capaz de
conectar-se ao passado e aos que não tem conseguido se preocupar com uma
atitude mental como essa, aquela que envolve o pensamento e a
sensibilidade que se abrem ao desconhecido, ao outro e sua experiência
dolorosa. Se nosso passado pesa sobre nós, é como tempo da colonização e
da escravização dos habitantes marcados como objetos de um processo
econômico que só persiste pelo aviltamento e a humilhação das pessoas
que devem suportar o sistema, mas também como o passado mais próximo que
agora vem bater à nossa porta na forma de um morto que pede um enterro
impossível. A ditadura militar com toda a maldade e indignidade que
produziu é o pano de fundo onde se esconde esse morto que não podemos
enterrar, ainda que só se possa viver ao fingir que não o vimos. O
trauma em torno do qual se constrói Trago Comigo tem relação
com o gesto humano que nos leva a continuar a viver apesar da morte
injusta e violenta dos outros a quem um dia amamos ou fomos fiéis.
O conflito geracional exposto no filme
resulta de uma tensão. Os jovens atores chamados para representar na
peça de Telmo, personagem central do filme, não conseguem conectar-se ao
sentimento revolucionário de seu diretor. Telmo não é um didata, ele
não é apenas um professor, como os garotos o chamam. Como Hamlet, ele
espera, por meio da peça, lembrar o que se passou em sua própria vida em
relação a uma pessoa a quem amou profundamente e a quem esqueceu. De um
lado, a peça serve como caminho da consciência. De um lado é a sua
própria consciência que está implicada. De outro, ele espera, como
Hamlet, capturar outra consciência, a de um amigo que ele vê como
culpado pelo fato apagado de sua memória. A morte de Ana, capturada no
contexto da prisão e da tortura é esse fato que, de tão insuportável,
desce para os confins infernais do esquecimento. Por fim, é também a
nossa consciência de espectadores que o filme procura capturar.
Telmo é o diretor de teatro que, entre
melancolia e nostalgia, deixou para trás o sentido da própria profissão.
Ele passa a dirigir essa peça criada com os próprios atores em um
procedimento muito sofisticado de sensibilização. Os jovens entregam-se
ao processo, mas vivem em seu tempo, com questões que também não são
comuns para o diretor, o que dificulta as relações entre eles. Não é
possível não mencionar a atuação realmente impressionante de Carlos
Alberto Ricelli. A atuação é uma arte de transmissão, mas é, mais ainda,
a arte da presença na qual o ator se apaga para fazer nascer a vida do
personagem. Somos tocados por esse personagem que nos vem mostrar por
meio de palavras cuidadosas e de muito silêncio, que a vida não tem
explicação, mas que nossos encontros podem resgatar alguma coisa que
ainda importa entre nós.
Separados uns dos outros no tempo, somos
impedidos de compreender e impedidos de avançar. Assim algumas pessoas
não conseguem acreditar na tortura, não podem suportar essa verdade
histórica. A ficção, no entanto, como potência criativa das pessoas,
permitirá o acesso ao tempo e à experiência que se perdeu. É assim que
podemos assistir Trago comigo e trazer de volta a substância do tempo que nos faz pensar.
Assistindo ao filme, pensei muito no
sentimento que aquelas pessoas, durante os anos sessenta sob a
perseguição, na clandestinidade, tinham do futuro. Hoje, quando as
condições da expressão política, crítica e lúcida, parecem tão abaladas,
os tempos se aproximam. Eu penso em nós e no que temos pela frente, nas
sombras, nos silêncios, nas mortes, nas dores e na esperança que pode
nascer de algum lugar oculto nesse momento.
Trago comigo, na expressão
sensível do personagem Telmo e de seus jovens aprendizes da arte de
viver, ensina-nos muitas coisas. Uma delas é a olhar para trás para
poder ver o que somos hoje. Não é um clichê que o passado ilumina o
futuro, nem que o futuro depende do que o passado nos lega. No meio
disso, o mistério do presente.
Trago comigo é um espelho do
tempo capaz de nos mostrar a face oculta do que vivemos hoje. Alienados
de nosso próprio tempo presente esperamos que algo venha traduzir o que
vivemos agora. Trago comigo é esse gesto generoso no amplo processo da história ao qual estamos condenados.
Márcia Tiburi
Publicado originalmente aqui
Nenhum comentário:
Postar um comentário