Meu carro pára numa esquina da praia de Copacabana às 9h30m e vejo um velho vestido de
branco numa cadeira de rodas olhando o mar à distância. Por ele passam pernas
portentosas, reluzentes cabeleiras adolescentes e os bíceps de jovens surfistas. Mas ele
permanece sentado olhando o mar à distância.
O carro continua parado, o sinal fechado
e o estupendo calor da vida batia de frente sobre mim. Tudo em torno era uma ávida
solicitação dos sentidos. Por isto, paradoxalmente, fixei-me por um instante naquele
corpo que parecia ancorado do outro lado das coisas. E sem fazer qualquer esforço comecei
a imaginá-lo quando jovem. É um exercício estranho esse de começar a remoçar um corpo
na imaginação, injetar movimento e desejo nos seus músculos, acelerando nele, de novo,
a avareza de viver cada instante.
A gente tem a leviandade de achar que os
velhos nasceram velhos, que estão ali apenas para assistir ao nosso crescimento. Me
lembro que menino ao ver um velho parente relatar fotos de sua juventude tinha sempre a
sensação de que ele estava inventando uma estória para me convencer de alguma coisa.
No entanto, aquele velho que vejo na
esquina da praia de Copacabana deve ter sido jovem algum dia, em alguma outra praia, nos
braços de algum amor, bebendo e farreando irresponsavelmente e achando que o estoque da
vida era ilimitado.
Teria ele algum desejo ao olhar as coxas
das banhistas que passam? Olhando alguma delas teria se posto a lembrar de outros
corpos que conheceu? Os que por ele passam poderiam supor que ele fazia maravilhas na cama
ou nas pistas de dança?
Me lembra ter lido em algum lugar que o
inconsciente não tem idade. Ah, sim, foi no livro de Simone de Beauvoir sobre
"A velhice". E ali ela também apresentava uma estatística segundo a
qual por volta dos 60 anos poucos se declaram velhos; depois dos 80 anos, só 53% se
consideram velhos, 36% acham que são de meia-idade e 11% se julgam jovens.
Não sei porque, mas toda vez que vejo um
senhor de cabelos brancos andando pela praia penso que ele é um almirante aposentado. Às
vezes, concedo e admito que ele pode ser também da Aeronáutica. Por causa disto, durante
muito tempo, vendo esses senhores passeando pela areia e calçada, sempre achava que toda
a Marinha e Aeronáutica havia se aposentado entre Leblon e Copacabana.
Mas esses senhores de short e boné
branco que passam às vezes em dupla pelo calçadão, são mais atléticos que aquele que
denominei de velho e, sentado na cadeira, olha o mar.
Ele está ali, eu no meu carro, e me dou
conta que um número crescente de amigos e conhecidos tem me pronunciado a palavra
"aposentadoria" ultimamente. Isto é uma síndrome grave. Em breve estarei
cercado de aposentados e forçosamente me aposentarão. Então, imagino, vou passear de
short branco e boné pelo calçadão da praia, fingindo ser um almirante aposentado,
aproveitando o sol mais ameno das 9h30m até cair sentado numa cadeira e ficar olhando o
mar.
Me lembra ter lido naquele estudo de
Simone de Beauvoir sobre a velhice algo neste sentido: "Morrer, prematuramente, ou
envelhecer: não há outra alternativa." E, entretanto, como escreveu Goethe:
"A idade apodera-se de nós de surpresa." Cada um é, para si mesmo, o
sujeito único, e muitas vezes nos espantamos quando o destino comum se torno o nosso:
doença, ruptura, luto. Lembro-me de meu assombro quando, seriamente doente pela primeira
vez na vida, eu me dizia: "Essa mulher que está sendo transportada numa padiola sou
eu." Entretanto, os acidentes contingentes integram-se facilmente à nossa história,
porque nos atingem em nossa singularidade: velhice é um destino, e quando ela se apodera
de nossa própria vida, deixa-nos estupefatos. "O que se passou, então? A
vida, e eu estou velho", escreve Aragon.
Meu carro, no entanto, continua parado no
sinal da praia de Copacabana. O carro apenas, porque a imaginação, entre o sinal
vermelho e o verde, viajou intensamente. Vou ter de deixar ali o velho e sua acompanhante
olhando o mar por mim. Vou viver a vida por ele, me iludir que no escritório transformo o
mundo com telefonemas, projetos e papéis. Um dia, talvez, esteja naquela cadeira
olhando mar à distância, a vida distante.
Mas que ao olhar para dentro eu tenha
muito que rever e contemplar. Neste caso não me importarei que o moço que estiver
no seu carro parado no sinal imagine coisas sobre mim. Estarei olhando o mar, o mar
interior e terei alegrias de nenhum passante compreenderá.
Affonso Romano de Sant'Anna
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