Antes de morrer num hospital, em 1977, Vladimir Nabokov
vinha trabalhando num romance, que acabou ficando incompleto. Ele afirmara já
ter a história pronta na cabeça, mas seu método era meticuloso, punctilioso.
Costumava escrever à mão, em pequenas fichas ou cartões, pautados, com lápis de
grafite. Aqui e ali, ele borra linhas inteiras com o lápis, ou apaga com
borracha palavras específicas, e sobre a mancha ele desenha outra, com letra
miúda, clara, decifrabilíssima. Escreve lá no seu impecável inglês, mas como
manuscreve com frequência as letras soltas, mesmo quando cursivas, isso dá a um
texto-de-próprio-punho seu uma aparência meio cirílica.
Digo isso porque o que ficou do romance O original de
Laura foram mais de 100 desses cartões, com fragmentos de várias
cenas,
diálogos, monólogo interior de um personagem, etc. Uma coisa ainda
rarefeita
demais para poder ser chamada de romance, mas como é de um conhecido
enigmista,
os demais enigmistas arregaçaram as mangas. Nabokov tinha pedido que
queimassem
os cartões, se o livro ficasse inacabado. A viúva não os queimou
enquanto foi
viva. O filho único e herdeiro, Dmitri Nabokov, publicou.
Perguntaram-lhe com que autorização, e ele disse: “Sonhei com meu pai.
Ele me disse que tudo
bem.”
A edição brasileira (Objetiva/Alfaguara, 2009, trad. José
Rubens Siqueira) traz na página par, à esquerda, a reprodução de cada um dos
cartões, e na página ímpar à direita a tradução do que está escrito nele. Com fidelidade às peculiaridades de grafia,
espaços em branco, disposição espacial das frases, etc.
Raymond Chandler cortava folhas tipo A4 horizontalmente, o
que lhe dava dois retângulos de papel que, na máquina de escrever, viravam sua
unidade básica. Cada segmento desses tinha sua própria unidade, mesmo que parte
de uma cena maior (de ação, de diálogo, de narração, etc.). Mas Chandler era uma metralhadora na
máquina, ao passo que Nabokov parece ser aquele cara que anda com umas fichas e
um toco de lápis com borracha no bolso do paletó. Os tempos mortos da vida já
são muitos. Bora trabalhar.
Ah, sim, o livro é bom? Bem, tem muitos detalhes bem
trabalhados, as frases surpreendentes, os adjetivos mordazes. Isso tudo pode
estar presente numa obra mesmo que não haja história nenhuma, ou somente uma
nesga dela, como é o caso. Mas não deviam ter queimado? Não. Queimar é uma pena excessiva. Se o
livro for ruim, publicar já é punição suficiente. O livro tem uma interessante
subtrama, meio Colin Wilson, dos exercícios de um sujeito para criar uma imagem
mental de si mesmo, imagem tão real que ele possa, obliterando-a na mente,
obliterar-se no mundo.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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