domingo, 21 de fevereiro de 2016

Paulo com febre



Ilustração: Dê Almeida
 

Para Paulo Mendes Campos, os livros servem como um espelho: ao falar de um livro, é de si mesmo, sempre, que ele acaba por falar


Criticar para se confessar? Desviar a atenção da literatura alheia para falar de si e de seu próprio estupor diante do que lê? O que talvez pareça uma traição à crítica pode ser, na verdade, um caminho para descongelá-la dos rituais solenes que, há muito, a asfixiam. “Sou um aliado da minha própria confusão, tomei o partido dos seus erros, não me responsabilizo pelos descaminhos a que me levar o meu inconformismo”, escreve Paulo Mendes Campos, no ano de 1947, na coluna Semana literária, que mantém no Diário Carioca.

Em vez de enfraquecer seus argumentos, a confissão de Paulo só o fortalece. Tem 25 anos de idade — é um jovem crítico. Fala de um grande escritor 40 anos mais velho que ele, naquele momento ainda vivo: André Gide (1869-1951). Trata de uma biografia de Gide que Klaus Mann, o filho de Thomas Mann, acaba de publicar, livro que o desagradou justamente por sua frieza e equilíbrio. Paulo gostaria de ler um relato mais apaixonado, que correspondesse melhor à atração que o escritor francês exerceu sobre ele e sobre sua geração. Não o encontra. Reclama, irrita-se.

“Hoje estamos confusos. Não sabemos mais o que fazer de um antigo ídolo como André Gide. Ele era o nosso guia. A malícia do tempo ensinou-nos que nós o guiamos”, desabafa Paulo. Suas palavras nos desviam, por momentos, do livro em si, para tratar de algo que fica entre o próprio livro e o leitor: a figura enigmática do escritor. Ao se lamentar da própria confusão, Paulo não está falando de um sentimento que é apenas seu, mas de toda uma geração. Amplia assim o espaço da crítica, tornando-a não mais a mera inspeção racional de uma obra, mas um instrumento para avaliar os estragos — mas também as transformações — que um livro provoca em seus leitores.

Leio o artigo de Paulo Mendes Campos em De um caderno cinzento, coletânea de “crônicas, aforismos e outras epifanias” organizada por Elvia Bezerra para a Companhia das Letras. Para Paulo, os livros servem como um espelho: ao falar de um livro, é de si mesmo, sempre, que ele acaba por falar. Será só ele? Não será esse um efeito incontornável da leitura? Não estarão os leitores sempre dentro dos livros que leem? Não é a si mesmo, no fim das contas, que um leitor sempre chega?

Em uma crônica de duas décadas depois, publicada na revista Manchete, Paulo escreve, sem ter medo do que escreve, sem precisar falsificar ou disfarçar: “Também eu poderia escrever a história de meu ideal: como ser derrotado na vida sem fazer força. Mas, mesmo para ser derrotado, tenho feito um pouco de força”. A leitura exige concentração e empenho. O esforço despendido pelo leitor, contudo, não é garantia de que ele “desvendará” o que lê. Todo leitor termina sua leitura um pouco fracassado. Há uma parede invisível que o separa do livro que lê, obstáculo que ele não consegue ultrapassar. Essa parede é o próprio livro.

Também quando escreve a respeito da literatura, Paulo inclui sempre a fragilidade e a hesitação.

Outros críticos, mais solenes, teriam pudor em admitir — até para eles mesmos — o fracasso de sua aventura. Paulo não: ele expõe, sem qualquer timidez, até suas limitações mais íntimas. Tem medo de lagartixas. “Diante de uma lagartixa perco todo o meu valor moral. Está acima de minhas forças. Sinto nojo e medo.” A confissão aparece na coluna Jornal, que assina no Diário Carioca em 1948. Por que um crítico só deve tratar de grandes temas? Por que não pode tratar, também, de seus pequenos temores, conferindo-lhes o mesmo status de uma grande dúvida intelectual?

Em vez de vergonha — como provavelmente a maioria pensará —, há sim, Paulo nos mostra, coragem. Uma espécie muito humana de bravura, quando alguém se dispõe a desmascarar, sem nenhum mal-estar, a si mesmo. Isso, em vez de afastar o crítico do leitor, o aproxima. Nivela as duas leituras e abre caminho para aquilo que a crítica, antes de tudo, deve ser: um diálogo. Só assim a crítica pode aceitar seus limites e incorporá-los. Escreve Paulo, em artigo publicado em O Estado de S. Paulo em 1953, sem nenhum receio de parecer inocente, ou frágil: “O máximo de lógica mental e linguística de que formos capazes não nos impedirá, por um lado, de viver em um mundo misterioso; por outro lado, por mais rigorosa que seja nossa maneira de exprimir, nossa linguagem será sempre fantasiosa, irreal”. Não é qualquer escritor que tem a coragem de sustentar essas palavras.

Também quando escreve a respeito da literatura, Paulo inclui sempre a fragilidade e a hesitação. Quando fala da poesia, em artigo publicado no Correio da Manhã em 1946, cita Paul Valéry para dizer que ela “é a tentativa de representar por meio da linguagem articulada aquelas coisas que os gestos, as carícias, os beijos procuram obscuramente exprimir”. Primeiro: a definição de Valéry não disfarça a condição da escrita como “tentativa” (isto é, rascunho), e não como “realização”. Segundo: para defini-la, ele recorre ao corpo — e as dores humanas — como metáfora essencial. É um pouco da própria impotência que Paulo nos fala através do crítico francês. Reconhece a debilidade de seu objeto. Mais ainda: inclui-se nessa debilidade. Sabe que apenas “tenta fazer”.

Pensando na origem da poesia, Paulo recorre agora a Claude Roy para dizer: “Sobre a gênese do poeta, ninguém disse nada melhor do que Roy: — Em todo grande poeta habita o mau poeta que ele calou”. Usa, mais uma vez, a voz alheia para falar de si e daquilo (“mau poeta”) que os escritores, em geral, preferem não expor. O estilo confessional de Paulo, mesmo que quase sempre sutil, percorre toda sua escrita. Em outro momento, tratando da fragilidade do conhecimento, ele relata um sonho: “Sonho que um amigo, chegando de Paris, me dá a notícia da morte de Samain. O poeta Samain, consulto um manual, morreu em 1900”. A lembrança de Paulo aparece em uma crônica do ano de 1953. O erro de meio século assinala não apenas a precariedade de nosso saber, mas o quanto essa precariedade, no fim das contas, nos constitui.

Misturando pensamento e confissão, crítica intelectual e memória pessoal, Paulo, por fim, explode a fronteira entre os gêneros. Antecipando assim o que faria, com grande brilho, a crônica brasileira do século 20. Ele nos lega uma definição apaixonada da literatura, quando anota: “A poesia é o estado febril da linguagem”.

JOSÉ CASTELLO

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros. Vive em Curitiba (PR).

Sugestão de postagem do amigo Adauto Neto

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