Para Paulo Mendes Campos, os livros servem como um espelho: ao
falar de um livro, é de si mesmo, sempre, que ele acaba por falar
Criticar para se
confessar? Desviar a atenção da literatura alheia para falar de si e de seu
próprio estupor diante do que lê? O que talvez pareça uma traição à crítica
pode ser, na verdade, um caminho para descongelá-la dos rituais solenes que, há
muito, a asfixiam. “Sou um aliado da minha própria confusão, tomei o partido
dos seus erros, não me responsabilizo pelos descaminhos a que me levar o meu
inconformismo”, escreve Paulo Mendes Campos, no ano de 1947, na coluna Semana literária, que
mantém no Diário Carioca.
Em vez de enfraquecer
seus argumentos, a confissão de Paulo só o fortalece. Tem 25 anos de idade — é
um jovem crítico. Fala de um grande escritor 40 anos mais velho que ele,
naquele momento ainda vivo: André Gide (1869-1951). Trata de uma biografia de
Gide que Klaus Mann, o filho de Thomas Mann, acaba de publicar, livro que o
desagradou justamente por sua frieza e equilíbrio. Paulo gostaria de ler um
relato mais apaixonado, que correspondesse melhor à atração que o escritor
francês exerceu sobre ele e sobre sua geração. Não o encontra. Reclama,
irrita-se.
“Hoje estamos
confusos. Não sabemos mais o que fazer de um antigo ídolo como André Gide. Ele
era o nosso guia. A malícia do tempo ensinou-nos que nós o guiamos”, desabafa
Paulo. Suas palavras nos desviam, por momentos, do livro em si, para tratar de
algo que fica entre o próprio livro e o leitor: a figura enigmática do
escritor. Ao se lamentar da própria confusão, Paulo não está falando de um
sentimento que é apenas seu, mas de toda uma geração. Amplia assim o espaço da
crítica, tornando-a não mais a mera inspeção racional de uma obra, mas um
instrumento para avaliar os estragos — mas também as transformações — que um
livro provoca em seus leitores.
Leio o artigo de
Paulo Mendes Campos em De um caderno cinzento,
coletânea de “crônicas, aforismos e outras epifanias” organizada por Elvia
Bezerra para a Companhia das Letras. Para Paulo, os livros servem como um
espelho: ao falar de um livro, é de si mesmo, sempre, que ele acaba por falar.
Será só ele? Não será esse um efeito incontornável da leitura? Não estarão os
leitores sempre dentro dos livros que leem? Não é a si mesmo, no fim das
contas, que um leitor sempre chega?
Em uma crônica de
duas décadas depois, publicada na revista Manchete, Paulo escreve,
sem ter medo do que escreve, sem precisar falsificar ou disfarçar: “Também eu
poderia escrever a história de meu ideal: como ser derrotado na vida sem fazer
força. Mas, mesmo para ser derrotado, tenho feito um pouco de força”. A leitura
exige concentração e empenho. O esforço despendido pelo leitor, contudo, não é
garantia de que ele “desvendará” o que lê. Todo leitor termina sua leitura um
pouco fracassado. Há uma parede invisível que o separa do livro que lê,
obstáculo que ele não consegue ultrapassar. Essa parede é o próprio livro.
Também
quando escreve a respeito da literatura, Paulo inclui sempre a fragilidade e a
hesitação.
Outros críticos,
mais solenes, teriam pudor em admitir — até para eles mesmos — o fracasso de
sua aventura. Paulo não: ele expõe, sem qualquer timidez, até suas limitações
mais íntimas. Tem medo de lagartixas. “Diante de uma lagartixa perco todo o meu
valor moral. Está acima de minhas forças. Sinto nojo e medo.” A confissão
aparece na coluna Jornal, que assina no Diário
Carioca em 1948.
Por que um crítico só deve tratar de grandes temas? Por que não pode tratar,
também, de seus pequenos temores, conferindo-lhes o mesmo status de uma grande
dúvida intelectual?
Em vez de
vergonha — como provavelmente a maioria pensará —, há sim, Paulo nos mostra,
coragem. Uma espécie muito humana de bravura, quando alguém se dispõe a
desmascarar, sem nenhum mal-estar, a si mesmo. Isso, em vez de afastar o
crítico do leitor, o aproxima. Nivela as duas leituras e abre caminho para
aquilo que a crítica, antes de tudo, deve ser: um diálogo. Só assim a crítica
pode aceitar seus limites e incorporá-los. Escreve Paulo, em artigo publicado
em O Estado de S. Paulo em 1953, sem nenhum receio de parecer
inocente, ou frágil: “O máximo de lógica mental e linguística de que formos
capazes não nos impedirá, por um lado, de viver em um mundo misterioso; por
outro lado, por mais rigorosa que seja nossa maneira de exprimir, nossa
linguagem será sempre fantasiosa, irreal”. Não é qualquer escritor que tem a
coragem de sustentar essas palavras.
Também quando
escreve a respeito da literatura, Paulo inclui sempre a fragilidade e a
hesitação. Quando fala da poesia, em artigo publicado no Correio
da Manhã em
1946, cita Paul Valéry para dizer que ela “é a tentativa de representar por
meio da linguagem articulada aquelas coisas que os gestos, as carícias, os
beijos procuram obscuramente exprimir”. Primeiro: a definição de Valéry não
disfarça a condição da escrita como “tentativa” (isto é, rascunho), e não como
“realização”. Segundo: para defini-la, ele recorre ao corpo — e as dores
humanas — como metáfora essencial. É um pouco da própria impotência que Paulo
nos fala através do crítico francês. Reconhece a debilidade de seu objeto. Mais
ainda: inclui-se nessa debilidade. Sabe que apenas “tenta fazer”.
Pensando na
origem da poesia, Paulo recorre agora a Claude Roy para dizer: “Sobre a gênese
do poeta, ninguém disse nada melhor do que Roy: — Em todo grande poeta habita o
mau poeta que ele calou”. Usa, mais uma vez, a voz alheia para falar de si e
daquilo (“mau poeta”) que os escritores, em geral, preferem não expor. O estilo
confessional de Paulo, mesmo que quase sempre sutil, percorre toda sua escrita.
Em outro momento, tratando da fragilidade do conhecimento, ele relata um sonho:
“Sonho que um amigo, chegando de Paris, me dá a notícia da morte de Samain. O
poeta Samain, consulto um manual, morreu em 1900”. A lembrança de Paulo
aparece em uma crônica do ano de 1953. O erro de meio século assinala não
apenas a precariedade de nosso saber, mas o quanto essa precariedade, no fim
das contas, nos constitui.
Misturando
pensamento e confissão, crítica intelectual e memória pessoal, Paulo, por fim,
explode a fronteira entre os gêneros. Antecipando assim o que faria, com grande
brilho, a crônica brasileira do século 20. Ele nos lega uma definição
apaixonada da literatura, quando anota: “A poesia é o estado febril da
linguagem”.
JOSÉ CASTELLO
É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar,
entre outros livros. Vive em Curitiba
(PR).
(http://rascunho.com.br/colunistas/josecastello/paulo-com-febre;
acesso em: 18-02-2016)
Sugestão de postagem do amigo Adauto Neto
Nenhum comentário:
Postar um comentário