Manuel Bandeira precisou se desfazer de suas couraças para escrever
Os
elogios, por vezes, embora com efeito inverso ao esperado por aqueles que os
proferem, vêm nos libertar de grandes ilusões. Foi assim com Manuel Bandeira
(1886-1968). Depois de receber um elogio por poemas publicados no Jornal
do Commercio, do Rio de Janeiro — que criara um concurso de
versos livres —, o jovem Bandeira cai em si. “O elogio me pareceu muito
chochinho na ocasião; pouco tempo depois já estava consciente de que os meus
versos não passavam de um exercício poético, sem sombra de poesia”, ele escreve
no célebre Itinerário de Pasárgada,
de 1954. Não havia liberdade. E como pensar poesia sem liberdade?
É
muito importante aqui a distinção entre “exercício poético” — prática regida
pela técnica, pela ambição intelectual, pelo esforço cerebral — e “poesia”. A
poesia se passa em outra esfera. Está mais próxima das intuições e do
desconhecido. Não é o resultado de uma maquinação, mas de um “surto” — isto é,
de um rasgão no saber e de uma submissão ao que ignoramos. Começa a constatar
Bandeira, naquele momento, que estava prisioneiro da ideia de Progresso.
Escreve: “Vejam como eu estava atrasado. Em 1911 ainda não tinha ideia do que
fosse verso livre”. Tinha 25 anos de idade. Formava-se — ou melhor,
deformava-se, único caminho para escapar do alçapão das regras alheias e chegar
a si.
Nesse
ponto, ao elogio enfático, Bandeira preferiu o comentário, publicado em outro
jornal, do crítico Eurycles de Mattos, que, mais comedido, escreveu: “Tenham
paciência os senhores concorrentes cujas poesias foram publicadas peloJornal do Commercio:
nada daquilo é verso livre”. Sim, Manuel Bandeira ainda não estava livre. De
quê? Da própria formação, do peso do passado, da força da tradição. Ainda não
estava livre de si mesmo. Passa o poeta, a partir daí, golpeado e tonto, a
fazer a defesa dos “instintos”. Descobria-se preso a uma armadura — a da técnica
fria e inabalável. Transfigura-se.
O
poema Carinho triste é, então, sua primeira tentativa de
verso livre. “A tua boca ingênua e triste (…)/ É dele quando ele bem quer”,
escreve. “Só não é dele a tua tristeza (…)/ Porque ele não a quer”. Entra em
cena o desejo. Agora o poeta se move não só pelo instinto, mas pelos impulsos
interiores. Torna-se dono de si. Expõe-se, sobretudo, à influência do francês
Guillaume Apollinaire. Rasga seus horizontes, à procura de novas paisagens e,
mais ainda, de novas posições. A poesia é inquieta: exige do poeta uma
disposição para o deslocamento. A poesia é uma aventura: guarda a aparência de
uma viagem sem rumo, a que o poeta se entrega sem defesas e sem armaduras.
No
ano seguinte, Bandeira embarca para a Europa, para tratar da tuberculose no
sanatório de Clavadel, na Suíça. Para matar o tempo, volta a estudar alemão.
Transforma a doença em energia. O desejo, aos poucos, passa a se impor sobre a
desagradável realidade. No sanatório, apesar do sofrimento, faz amizades vibrantes
com o poeta Paul Éluard, e também com Gala, com quem Éluard se casaria e que
depois o deixaria para se tornar mulher de Salvador Dalí. Se Clavadel cura seu
corpo, se o restaura, ao mesmo tempo fere e deforma seu espírito. Rasga-o para
que o poeta, enfim, chegue a si. Só voltaria ao Brasil em outubro de 1914, em
fuga da Primeira Guerra Mundial. Já era outro poeta. A longa meditação sobre a
poesia o leva, enfim, a seu primeiro livro, A cinza das horas, de
1917.
No ano seguinte, Bandeira embarca para a Europa, para tratar da
tuberculose no sanatório de Clavadel, na Suíça. Para matar o tempo, volta a
estudar alemão. Transforma a doença em energia.
Bandeira
precisou se desfazer de suas couraças para escrever. Toda escrita poética,
enfim, surge de uma libertação — e ele aprende isso. Em Itinerário
de Pasárgada, porém, avalia: só se libertou inteiramente das
amarras intelectuais com A estrada, poema de
1921. Poema em que faz uma dura crítica ao pragmatismo da vida urbana. “Nas
cidades todas as pessoas se parecem./ Todo mundo é igual. Todo mundo é toda a
gente”. Na pequena estrada (interior) que o poeta percorre, ao contrário,
impõe-se o peso da diferença. “Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a sua
alma./ Cada criatura é única”. O poeta se defronta, enfim, com a potência do
singular. “Tudo tem aquele caráter impreciso que faz meditar.” Em vez de
ruminação intelectual, em vez de um efeito da lógica, a poesia se torna
meditação. Isto é: contato com o inominável e com o indizível. Puro instinto.
Considera
Bandeira, porém, que sua verdadeira libertação só acontece no ano de 1930, com
a publicação de Libertinagem. Só aí a
“metafísica da técnica”, enfim, se dissipa. Observando sua fase inicial, o
próprio Bandeira escreve: “Os três primeiros livros ainda estão contaminados
pela lucidez”. Refere-se a A cinza das horas,Carnaval e O ritmo dissoluto,
livros que, segundo ele, “ainda estão cheios de poemas que foram fabricados en
toute lucidité”. A claridade é, aqui, sua grande inimiga. Só
quando afrouxa os grilhões da razão com o vento da poesia livre, realiza,
enfim, o sonho antigo não se tornar um “grande poeta” — manto que pesa e sufoca
—, mas sim e apenas um “poeta menor”. Um poeta que conhece e celebra seu
próprio tamanho. Um poeta que, enfim, cabe dentro de si.
É
importante a ideia do “poeta menor”. Ela ajuda a desenhar os limites de um
destino. Diz: “Tomei consciência de que era um poeta menor, que me estaria para
sempre fechado o mundo das grandes abstrações generosas”. Conclui Bandeira,
então, que “o metal precioso eu teria que sacá-lo a duras penas, ou melhor, a
duras esperas, do pobre minério das minhas pequenas dores e ainda menores
alegrias”. Em vez do esforço intelectual, ele defende a submissão à espera.
Espera de quê? Daqueles momentos em que o singular irrompe, em que as
expectativas se quebram e a poesia se impõe não como uma maquinação, mas como
um destino.
Passa
Bandeira a procurar aqueles estados e sentimentos onde há “carga de poesia”. A
poesia não é uma construção, mas algo em potência que o poeta, como um caçador
assombrado, deve capturar — se for poeta mesmo. E nada mais. Importante
recordar hoje, em pleno século 21, essas meditações de Manuel Bandeira. Elas
ampliam não apenas o espaço da poesia, mas da própria liberdade.
JOSÉ CASTELLO
É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar,
entre outros livros. Vive em Curitiba (PR).
(http://rascunho.com.br/colunistas/josecastello/a-armadura-da-tecnica;
acesso em: 18-02-2016)
Sugestão de Postagem do amigo Adauto Neto
Nenhum comentário:
Postar um comentário