quinta-feira, 2 de abril de 2015

Literatura de prazer ou de mercado?

Em uma sexta-feira qualquer do verão de 2012, um grupo de mulheres que trabalham juntas, e entre elas alguns colegas, tomam uma cerveja na saída do trabalho. É aniversário de uma delas. De presente, recebeu o livro do momento, Cinquenta Tons de Cinza. Enquanto desembrulha o livro, começam as risadas. Abrem uma página ao acaso e leem um trecho: “... Que invasão. Estou flutuando, meus membros estão suaves e lânguidos, totalmente gastos...”. As risadas retornam, umas mais exageradas do que outras. Uma delas olha ao redor e diz alto: “O que vão pensar?”, fazendo referência aos que ocupam outras mesas no terraço. Mas não se importam muito. Passam o livro de uma para a outra e continuam lendo. Os dois homens que estão com elas não pegam o livro.
Essa é a maneira que os textos eróticos são lidos? Em uma praça, rodeados de gente e com a temperatura in crescendo, fruto, unicamente, do caloroso verão madrilenho?
Tradicionalmente não era a maneira de “desfrutar” esse gênero, mais ligado ao clandestino, às listas de livros proibidos. Fevereiro de 2015: estreia o filme baseado no livro da cena anterior. Mais de 270 milhões de reais arrecadados em todo mundo no primeiro fim de semana no cinema, “por coincidência”, no Dia de São Valentim, ou Dia dos Namorados, data paradigmática na qual se mescla o amor e o consumo, com a permissão do mártir romano.
Entre os dois momentos anteriores, verão de 2012 e inverno de 2015 no hemisfério norte, foram aparecendo várias publicações nas prateleiras das livrarias, originais nos escritórios das editoras, volumes empilhados sobre as mesas dos jornalistas e críticos de suplementos e revistas culturais.

Novidades de temática mais ou menos erótica se acumulam formando pilhas que poderiam formar um castelo, o de Lacoste do Marquês de Sade ou o de Roissy, lugar onde se passa História de O, escrito em 1954 por Pauline Réage, pseudónimo de Anne Desclos (1907-1998), ícone dessa literatura, que estaria passando por um momento de retomada?


O número de publicações é maior do que há uma década, quando foi suspenso o prêmio de romance erótico “La Sonrisa Vertical”, uma das referências desse gênero na Espanha. A coleção da editora Tusquets continua ativa, num ritmo de duas ou três publicações por ano. A editora Ana Estevan, que começou a trabalhar em 1993 com Luis García Berlanga, diretor e criador do prêmio, afirma que o mercado editorial nesse campo sempre tem sido um “pêndulo”. Destaca que sobe e desce mas, de uma forma ou de outra, tem se mantido. Oboom dos últimos anos aparentemente responde ao fenômeno representado pela publicação da trilogia de E.L. James Cinquenta Tons de Cinza (Editora Intrínseca), com quase cinco milhões de cópias vendidas no Brasil. O tsunami provocado por seu lançamento foi aproveitado pelo mercado editorial para buscar novidades e fabricar obras à imagem e semelhança das muitas sombras e poucas luzes da Bela e a Fera desses cinco anos, Anastasia Steele e Christian Grey, protagonistas do best-seller.

Editoras e livrarias não podem negar que o fenômeno favoreceu o movimento e isso é sempre positivo. Almudena Grandes (Madri, 1960) concorda que fazem bem em aproveitá-lo. Em sua opinião, essas novas publicações são fruto da união de dois fatores: o sexo já não está proibido, não pertence unicamente aos homens; além do fato de que os maiores “consumidores” e compradores de ficção são as mulheres. Et voilá!,um novo gênero “que nada tem a ver com o erótico”, afirma Grandes, autora de As Idades de Lulu (Prêmio La Sonrisa Vertical de 1989). Segundo ela, afirmar que os leitores de E.L. James vão ler Sade é fazer um erro de cálculo. No entanto, comenta com certa ternura como lhe comovem as garotas na casa dos 20 anos que se aproximam dela com seu primeiro romance, recomendado pelas mães. “Pergunto a elas: ‘Estava lendo Cinquenta Tons...?’, e não erro.”Não se aproveitou apenas nesses casos. Mayra Monteiro (Havana, 1952), vencedora do prêmio La Sonrisa Vertical em 2000 com Púrpura Profunda, se mostra chateada quando os livros de James são classificados de transgressores. “Não são”, diz, enquanto admite pode se beneficiar dessa fase, que de certa forma será proveitosa aos que já escreviam romances eróticos há muito tempo.


Adaptando a máxima de Anaïs Nim (1903-1977), outra referência clássica do gênero, “qualquer forma de amor que você encontre, viva esse amor...” se poderia chegar ao “qualquer forma desse gênero que você encontre, viva esse gênero”, porque nos últimos anos as maneiras se multiplicaram. E, assim, com essa desculpa, ou graças a ela, a Errata Naturae publica agora História do Erotismo, de George Bataille (Autêntica Editora). Em ensaio que aborda a sexualidade, o desejo, verdadeiro ingrediente intangível gerador dessa temática. O autor defende uma ideia contrária à atual de dar visibilidade ao sexo. Torná-lo público o expõe mais e o torna mais vulnerável ao ser submetido à regra e controlado pelo Estado e pelo capital.

Longe de Bataille no tempo de criação, mas contemporânea à sua publicação em espanhol, está a edição de Mauro Armiño de romances eróticos dos séculos XVIII e XIX, intitulada Os Domínios de Vênus. Armiño explica que são a continuação deContos e Relatos Libertinos (Siruela, 2008), bastante anterior ao fenômeno Cinquenta Tons de Cinza, portanto, não corresponde a nenhuma tendência, mas segue sua linha editorial. Dentro dessa antologia podem ser destacados os romances A Vênus das Peles, de Leopold von Sacher-Masoch (1836-1895), o Sade austríaco. O que seria de Grey sem o imaginário criado por esses clássicos?
Esse romance foi reeditado, além disso, devido ao prêmio Sonrisa Vertical em 2014, e depois de ter sido levado ao cinema por Roman Polanski em 2013, com o qual ganhou o prêmio César por melhor direção. O que causou um reposicionamento comercial da coleção, já que de 2013 a 2014 houve um aumento de 50% das vendas, segundo dados enviados à Confederação de Grêmios e Associações de Livrarias (CEGAL).
A Alfaguara se une a essa corrente com Lisario ou o Prazer Infinito das Mulheres, da escritora italiana Antonella Cilento, que retrata a protagonista a partir de sua dimensão sexual. A Cátedra também acompanha essa onda, já que publicou há seis mesesCulturas do Erotismo na Espanha, 1898-1939, da professora da Universidade da Califórnia (UCLA), Maite Zubiaurre. Uma enciclopédia tanto de textos quanto de imagens que mostram o gênero erótico do início do século XX. A Reino de Cordelia lançou Um Paraíso Depois do Paraíso (E Outros 9 Relatos Eróticos), um compêndio de 10 histórias, as finalistas de um novo prêmio de literatura erótica para o qual está sendo preparada a segunda edição. O prêmio “Válgame Dios” conta com José Luis García Berlanga, filho do diretor de cinema, entre seus incentivadores, o que inevitavelmente faz com que se associe à La Sonrisa Vertical, embora não tenham nenhum vínculo e, como diz o próprio Berlanga filho, ele não é tão erotômano quanto seu pai, que fez disso uma de suas paixões. Reino Cordelia, com esse livro, dá continuidade a uma linha que já estava sendo construída ao publicar em 2012 Os 120 Dias de Sodoma, o catálogo de perversões do Marquês de Sade, ilustrado por desenhos explícitos de Miguel Ángel Martín; e em 2013 editou A Mulher e o Fantoche, outro dos clássicos de erotismo com mais de um século de existência, de Pierre Louÿs. Por sua vez, Rey Lear, seu outro selo, acaba de resgatarEscritos Pornográficos, de Boris Vian.
Berlanga dizia que o erotismo é a pornografia vestida de Chanel. As novidades do gênero não são tanto, muitas são reedições ou traduções. As que realmente são novas, com exceções como Cilento, não buscam um Chanel exclusivo. Não são transgressoras, pelo contrário, são muito convencionais: romances românticos salpicados de cenas de sexo explícito cuja inovação não vai além de colocar o leitor no quarto e não deixá-lo sair como antes. Exatamente como nas séries e filmes onde os personagens deixaram de ter os lençóis convenientemente colocados entre as axilas, mas sem exagerar, e que tampouco mostram demasiadamente o púbis. Mais que alta costura, busca-se a roupalow cost, acessível para todos os públicos. Nas palavras de Almudena Grandes: “A literatura erótica morreu com o sucesso no final do século XX, e essa é a melhor maneira de morrer. O que é preciso fazer agora é dançar sobre seu túmulo”.

El país

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