Profundamente religioso, devoto de São Francisco, Tancredo não temia a morte. Era um fatalista. Repetia sempre: “Eu faço a minha parte, o resto é com Deus”
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Rio, Palácio do Catete. Em tensa reunião do presidente com o ministério para exame do quadro político, na madrugada de 24 de agosto de 1954, muitas surpresas. Na agenda, a crise, o impasse, o que fazer. Getúlio deve licenciar-se ou resistir? E a hipótese de renúncia? As palavras do ministro da Guerra, general Zenóbio da Costa, considerado herói da Força Expedicionária Brasileira (FEB), causam espanto. Acusa e chama de traidores os generais golpistas, mas conclui assim, dirigindo-se ao presidente: “Se V. .Exa. me der ordem, eu irei realmente aplacar esse movimento de insubordinação. Mas não quero assumir a responsabilidade pelo sangue que vier a ser derramado.
Vez de Tancredo Neves, ministro da Justiça, fiel ao presidente e a seu projeto de nação. Propõe resistência com as tropas fiéis e até com as pessoas ali presentes que queiram correr o risco do presidente. Direto ao general Zenóbio da Costa, em voz pausada e firme: “Poucos homens, general, têm a oportunidade de morrer por uma grande causa. Por que não aproveitamos esta?”
O ministro Osvaldo Aranha, das Relações Exteriores, e Alzira Vargas, filha de Getúlio, também pedem a resistência a qualquer custo, assim como o general Caiado de Castro. Mas prevalece a ideia da licença. Getúlio encerra a reunião assim: “Eu decidi entrar em licença. Recomendo aos meus ministros militares que mantenham a ordem. Na hipótese de não ser mantida a ordem, tomarei a providência que me parecer mais adequada”.
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Quando Tancredo estava formando sua equipe de governo em Minas, um deputado fez o diabo para ser secretário de Estado. Qualquer secretaria servia. Saiu dizendo aos quatro ventos e plantando notas na imprensa que tinha sido sondado. Depois se promoveu a convidado. Acabou citado em todas as listas de secretariáveis. Mas os dias passavam, e nada da confirmação do governador. Na semana da posse, aflito, foi a Tancredo.
- Governador, não sei mais o que fazer. Há dias que os jornalistas, os amigos, minha família toda, e até os adversários não param de me perguntar se vou ou não vou ser seu secretário. Já estão até ironizando. Não quero constrangê-lo, mas não sei mais o que dizer...
- Diga que convidei e você não aceitou.
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Hélio Garcia, governador de Minas, provoca o presidente eleito Tancredo Neves:
- Tem quatro mineiros no seu Ministério, mas nenhum indicado por Minas. José Hugo e Costa Couto foi o senhor mesmo quem escolheu. Aureliano Chaves veio do PFL, em nome da Aliança Democrática. Dornelles foi o senhor quem me disse para indicar.
--Ora, governador, quem tem a maçaneta da minha porta precisa indicar ministro?
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O gaúcho Pedro Simon, empossado no Ministério da Agricultura, na manhã de 15 de março de 1985 levou um susto: “O que o doutor Tancredo nem ninguém podia imaginar é que nós chegaríamos ao Palácio do Planalto, depois de lutar a vida inteira pelo restabelecimento da democracia, e que o encontraríamos totalmente vazio, aberto, sem um oficial de gabinete, um guarda, absolutamente ninguém. Depois de tanta luta, a gente podia pensar um milhão de coisas. Menos que o Palácio estaria vazio e que o ex-presidente sairia pelos fundos”.
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Dizem em Minas que ele fez política até para morrer. Seu longo martírio permitiu que o universo político assimilasse a nova realidade. Seu sofrimento uniu mais ainda o povo brasileiro em torno da democracia e da liberdade. Permitiu as rearticulações necessárias para consolidar transição sem o principal protagonista.
Profundamente religioso, devoto de São Francisco, Tancredo não temia a morte. Era um fatalista. Repetia sempre: “Eu faço a minha parte, o resto é com Deus”. E também: “Política é destino”.
Adorava a vida. Conseguia combinar seriedade e alegria. Tratava até a morte com bom humor. Certa vez, ao prever o rápido esquecimento de grande homem público brasileiro que acabara de ser enterrado, ironizou a memória nacional: “O Brasil tem os melhores cemitérios do mundo. Raro é o morto aqui lembrado depois da missa de sétimo dia”.
Em outra ocasião, numa roda no Senado, após sessão de homenagem à memória de admirável estadista, a conversa era sobre os epitáfios preferidos. Frases tristes, pesadas, ou então carregadas de religiosidade. Menos a de Tancredo: “Aqui jaz, muito a contragosto, Tancredo de Almeida Neves”.
Ronaldo Costa Couto, economista e escritor, doutor em história pela Sorbonne (França), foi ministro do Interior e ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República (governo Sarney). É autor, entre outros, dos livros Tancredo Vivo -casos e acaso (Editora Record, 1995)
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