Fui ao salão onde corto o cabelo e perguntei se tinha sido feriado na véspera, pois o salão não abriu. O barbeiro respondeu: “Uma das meninas que trabalha aqui o pai dela morreu.” Eu entendi, embora vendo a frase escrita pareça haver algo de errado nela. A comunicação falada tem uma sintaxe mais frouxa, mais permissiva do que a escrita, porque tem a vantagem de reforços como mudança de tom de voz, pausas, expressões faciais, gestos... Ele poderia ter dito: “Morreu o pai de uma das meninas que trabalham aqui.” Seria mais gramatical. Mas do modo que disse, não tive nenhuma dúvida. “Uma das meninas que trabalha aqui---“ houve então uma pequena pausa, para que eu guardasse esse “sujeito” da frase, e depois o complemento: “O pai dela morreu.” Houve algum engano? Alguma dúvida, algum ruído na comunicação? De jeito nenhum. Por mim, comunicação 100%.
Raymond Queneau já fez algumas tentativas quixotescas de mudança no francês, que é uma das línguas mais artríticas do mundo apesar da beleza. O francês é cheio de consoantes mudas, vogais mudas, uma porção de cacoetes de sintaxe. No seu livro Bâtons, Chiffres et Lettres (1952), ele fala no “chinook”, um idioma de índios americanos. Nele, segundo Queneau, começa-se dizendo as indicações gramaticais (os morfemas) e depois os dados concretos (os semantemas). Uma frase como “Tua prima ainda não viajou para a África”, em francês, sairia em chinook mais ou menos como “Ela ainda não viajou, tua prima, para a África”.
Queneau usou isso de brincadeira na frase inicial de seu romance Le Dimanche de la Vie (1952), que começa assim: “Ele não tinha dúvidas de que quando passava diante da loja dela ela o observava, a balconista, o soldado Brû.” A organização da frase é chinookiana, e é uma tática de Queneau para dar um pequeno susto no leitor, mantê-lo acordado. Na mesma página um personagem diz: “Le vlá” (=le voilà), porque é assim que se pronuncia, mas nenhum outro francês ousaria escrever assim nos anos 1950.
A língua falada conta com muitos recursos paralelos (faciais, sonoros, etc.), e pode se permitir uma aparente imprecisão que seria intolerável na forma escrita, a qual geralmente depende só das palavras para dizer algo. Daí que, quando escrevemos um romance, muitas vezes os diálogos, apesar de inteligentes e expressivos, são escritos em linguagem escrita, nada guardam das lacunas, das repetições, dos aparentes “non sequiturs” da linguagem falada. É muito difícil usar a linguagem escrita para dar a impressão de que aquilo foi falado. Não é só uma questão de botar gírias ou termos coloquiais, é a própria estrutura sintática do que está sendo dito.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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