Clarice
Lispector nasceu em Tchetchel, na Ucrânia, cidade localizada perto do Mar
Negro, na Europa Oriental. Aos dois anos de idade, mudou-se com a família para
o Recife. Seu segundo romance, "O lustre", foi escrito em Nápoles. O
terceiro, "A cidade sitiada", em Berna. Muitos de seus contos foram
escritos durante a temporada em que viveu na Inglaterra, acompanhando o marido,
o diplomata Maury Gurgel Valente. Começou a escrever "A maçã no
escuro" em Washington. O manejo genial da língua portuguesa _ ou, como
prefere a filosofa francesa Hélène Cixous, do "brasileiro" _ lhe
assegurou, apesar do destino errático, uma identidade brasileira. Cixous vai
mais longe ainda quando afirma que Clarice escrevia, na verdade, em
"lispector". Manejava uma língua própria e única, que não pode ser
captura por nenhum sistema linguístico. Que não é de mais ninguém.
Tive a alegria de me reencontrar, mais uma
vez, com essa mulher que nunca está onde esperamos durante uma oficina
literária sobre sua obra que dei, anteontem e ontem, em Belo Horizonte, a
convite de José Eduardo Gonçalves. É sempre como se eu a encontrasse pela
primeira vez. O susto é o mesmo. O esplendor também. Li Clarice, pela primeira
vez, aos 19 anos de idade. Comecei por seu romance maior, "A paixão
segundo GH", de 1964. Caí doente _ passei a "sofrer" do livro.
Não consegui mais parar de ler. Até hoje, sempre que o releio, termino
atordoado. Em 1977, estive em seu velório, no cemitério Israelita do Caju, no
Rio de Janeiro. Mesmo depois de morta, Clarice nunca deixou de me
assombrar.
Agora, reencontrando-a mais uma vez, me
ponho a pensar no que me liga tão intensamente a ela e a seus escritos.
Lembro-me, então, de uma sentença luminosa de Hélène Cixous, para quem Clarice
faz da escrita "a arte de ter aquilo que temos". Como prefiro dizer:
a arte de "cair em si". Costumamos procurar nosso destino em lugares
distantes. Imaginá-lo como um ponto muito longínquo, que insiste em nos escapar
e pelo qual devemos lutar. Algo a que só chegamos depois de uma grande
transformação. Clarice mostra o contrário: que o destino se esconde, na
verdade, dentro de nós. Ele já está ali. Ele é uma espécie de núcleo,
inacessível, mais profundo que o coração, em torno do qual as palavras se
limitam a rondar. Núcleo que as palavras se limitam a beijar.
A canadense Claire Varin defende a ideia de
que só conseguimos ler Clarice se usarmos o que ela chama de "método
telepático". Só é possível ler Clarice se colocando no lugar de Clarice.
"Sendo" Clarice. A própria Clarice Lispector escreveu certa vez:
"O personagem leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que
inteiramente individual e com reações próprias, é tão terrivelmente ligado ao
escritor que na verdade ele, o leitor, é o escritor". Sabia do que falava:
todo escritor é, antes disso, um leitor também. Todos nós, mesmo os mais
celebrados especialistas, somos, antes de mais nada, leitores comuns.
Ainda hoje, eu me sinto "devorado"
pela escrita de Clarice. Escrita que busca o núcleo da consciência, ou, a
hiper consciência. A telepatia, de que Claire nos fala, é a comunicação direta
e à distância entre duas mentes. Talvez ela sirva também para definir o ato da
escrita: ao escrever, Clarice tentava se comunicar com uma segunda voz,
refratária e distante, que se escondia dentro dela. Sempre fracassou nesse
projeto _ esse núcleo simplesmente não pode ser atingido. A insistência de
Clarice, sua busca infatigável é, em resumo, sua literatura.
Daí, provavelmente, a posição marginal que,
ainda hoje, Clarice ocupa em relação ao sistema literário. Muitos tentam
domesticá-la. "É uma filosofa", dizem alguns. "Faz uma
literatura religiosa", dizem outros. "Não passa de
uma bruxa", chegam a dizer. Nenhum nome dá conta do que Clarice fez.
Sentia-se, ela própria, em algum lugar muito distante da literatura. Não era
por outro motivo que não gostava de ser chamada de escritora. "Eu não
escrevo para fora, escrevo para dentro". Como cidadã, foi uma mulher
engajada: pode ser vista na primeira fila da Passeata dos Cem Mil, que desafiou
a ditadura militar no Rio de Janeiro. Mas, como escritora, era neutra. O neutro
_ que ela chamava de A Coisa, ou de O Isso _ foi seu caminho.
O que é o neutro? É aquilo que está além da
intervenção e do controle humanos. Aquela zona autônoma da vida que nem
mesmo a linguagem é capaz de alcançar. Sua personagem G. H. só toca o neutro
quando prova da gosma branca que escorre do corpo de uma barata morta. Sim: o
neutro provoca horror, porque é violento e cru. Daí que o projeto literário de
Clarice é quase suicida: ela usa a literatura para saltar para fora da
literatura. "A vida se me é e eu não entendo o que digo", diz G.H. _
ressoando a voz de sua autora. Quanto ao neutro, será que ele se esconde?
Parece que é o contrário: ele brilha tão intensamente que não conseguimos
vê-lo. Porque ver o neutro é encarar nossa humanidade. E a humanidade, sim, é
talvez o melhor sinônimo para o insuportável.
Por isso também a literatura de Clarice não
pode ser vista como um "projeto intelectual". Colocou-se, sempre,
além da inteligência. A inteligência não a interessava _ buscava, ao contrário,
aquilo que lhe escapava. Teve na humildade um valor fundamental. Clarice
escreveu para nos fazer encarar a insuficiência da inteligência. Em
conseqüência: para nos colocar diante de nossa fragilidade e impotência. Disse,
certa vez, Otto Lara Resende: "É engraçado como Clarice me atinge e me
enriquece, ao mesmo tempo em que me faz certo mal, me faz sentir menos sólido e
seguro".
A literatura de Clarice Lispector nos
carrega para um terreno sem salvaguardas. Não temos garantias, não estamos
protegidos. De quem? De nós mesmos. A queda em si não é uma experiência fácil.
Daí que a escrita de Clarice é ciclônica (cheia de correntes que convergem das
bordas para o centro, como nos ciclones). É, também, um turbilhão (ventos nos
atravessam em alta velocidade e nos mobilizam). Parece, para alguns, uma
escrita enlouquecida. Tenho um amigo, psicanalista, que sempre me pergunta:
"Por que você insiste em ler essa louca? Por que ler essa mulher que diz
sempre a mesma coisa?" Clarice buscou o coração selvagem da vida. É uma
busca sem fim, em que os golpes e as quedas se repetem e se repetem. Ainda
assim, é uma busca que nos torna menos arrogantes e mais humanos.
José Castello
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