Ler um poeta desconhecido é a travessia de um abismo. Você não
sabe onde está pisando. Sofre do inevitável medo de não ver. A cegueira _ os
preconceitos, os clichês, as opiniões congeladas _ podem, de fato, turvar a
leitura. Medo de ceder e de cair. Conheço Caê Guimarães pessoalmente. Por duas
vezes, em anos diferentes, ele foi meu entrevistador em eventos literários no
Espírito Santo. Mas o que isso realmente significa? Nada. Ao abrir Vácuo
(editora Cousa, Vitória), defronto-me com um desconhecido.
É verdade que a literatura é
filha da contaminação. “Somos feitos da mesma velha mistura/ sangue e sonhos/
violência e ternura”, o poeta escreve. No mesmo poema, Caê ainda me oferece uma
advertência: “perceba o quanto tudo é pouco/ e siga em frente”. É o que tento
fazer. Ainda sugere mais: “abrace o vazio que parece ser simplório/ mergulhe no
transitório/ e barbeie-se com a navalha do esquecimento”. Não é fácil, mas um
leitor precisa _ na medida do possível, que é sempre impossível _ despir-se de
si. Não adianta: carregamos nosso inevitável corpo. Arrastamos nosso espírito.
Devemos aceitar que ler só pode ser uma deformação.
Começo pelo título do livro.
Vácuo, isto é, me ensina o Houaiss, “que nada contém, absolutamente vazio,
oco”. Estranho livro que, já pelo título, se apresenta como nada. Coisa alguma.
É com as mãos vazias, portanto, que me ponho a ler _ como se avançasse na
leitura de um livro inexistente. Em outro poema, Caê me ajuda um pouco. Ele me
oferece uma definição pessoal: “o vácuo/ entre o início e o fim/ a que chamamos
de meio”. Estou a meio caminho de _ e, de fato, a poesia não tem fim, ela
parece sempre transbordar dos versos. Leia Vinicius, leia Cabral, leia Hilda
Hilst, leia Orides Fontela. Fechamos seus livros, mas o atordoamento continua.
A poesia continua, feito uma mancha, uma nódoa de que não conseguimos nos
livrar. Sim: temos o espírito formado por leituras, mesmo aquelas que foram
esquecidas.
Ler (está em outro poema) é
abrir “uma porta para o lado de dentro”. Livros nos escavam. Livros nos
interrogam e devassam. Não temos escapatória _ ou nos deixamos invadir pela voz
alheia, ou não lemos. Se fugirmos, limitamo-nos a patinar sobre as palavras.
Tento, então, acessar as palavras de Caê. Primeiro passo: escutar (um pouco,
pelo menos) sua própria voz. Ele mesmo nos deixa a advertência: “assim como é
da natureza da lua despertar o lobo e seu assovio/ é da natureza da carne
cicatrizar a ferida e deixar no couro um dolo”. Ouvir um poeta _ escutar seu
assovio. Deixar-se ferir por seus versos, à espera da cicatriz salvadora que
será a palavra própria.
Não é fácil. Pois, adverte Caê,
a palavra fica “na borda de tudo que entorna”, seja o silêncio ensurdecedor,
seja a prosódia sem fim. Um poeta escreve sempre no limite _ e é justamente
essa fronteira que eu, como resignado leitor, me empenho em acessar. Até onde a
poesia de Caê Guimarães se estende? Que vazios, que vácuos, que ocos ela
recobre? Para chegar a uma resposta, e por mais que um leitor lute para se
manter de pé, é preciso ceder. A queda inevitável diante da palavra plena.
Sugere Caê: “mira atento e leve
o que está no fim/ no início/ e no meio/ deixa que o universo inteiro te
percorra”. Não é fácil suportar a voz alheia, pois ela é sempre uma ameaça. A
leitura é um jogo. De um lado, o poeta se ergue. De outro, o leitor se defende
_ mas quanto mais se defende, para sobreviver inteiro, mais se deixa afetar.
Essas afetações (feridas) são a própria leitura. Tudo gira, diz o poeta,
“tornando/ o final/ no meu começo”. Somos engolidos _ ou não lemos.
A vida _ a leitura _, ele nos
adverte em outro poema, está espremida entre dois silêncios. “Um silêncio, um
uivo, um silvo”. A voz do poeta é tão frágil quanto eles. Deve ser capturada
com a armadilha da delicadeza, ou se perde, se esfarela – ela se torna o que
não é. Adverte, ainda, Caê: “não há rota ou bússola”. A leitura é uma aventura
às cegas. Todo leitor é um cego que, lutando contra sua própria natureza,
insiste em ver. Nova advertência vem em outro poema: “conjugue verbos
contrariado/ não seja modulado e perfeito”. Não há que acertar _ há que se
expor. Estamos todos, ele diz, a “navegar sobre o fio”. Estamos sempre a meio
caminho de _ no vácuo, no “entre” de que o título nos fala.
O leitor também deve dispensar
as certezas a seu próprio respeito. É, mais uma vez, o poeta quem nos orienta:
“após um rosto há outro/ e na camada de baixo mais um/ difícil saber qual deles
melhor me traduz”. Posso avançar um pouco mais: a cada leitura, um rosto. A
cada página, um leitor. É claro: há um fio que permanece _ essa fibra sutil que
é nosso espírito. Há algo no leitor que nunca se modifica. Não é preciso temer:
a leitura não vai nos despedaçar. Feridas não são facadas. Um ferimento _ um
verso, uma linha, uma palavra _ não é a morte. Está muito mais próximo da
beleza.
Por isso, porque um caroço
sempre permanece, não há que temer o desvio de si. Um leitor deve pensar assim:
“entro no labirinto/ e deixo de lado de fora o novelo”. O poeta pode estar
falando não das palavras, mas de um corpo amado. No lugar da leitura, o
erotismo. Mas não há sempre uma sutil excitação no ato de ler? Toda escrita
poética é uma torrente. Diz o poeta, com firmeza: “eu chovo torrencialmente no
deserto mais seco/ e no degredo reconheço a geografia do espanto”. Mais uma
vez, Caê nos ajuda a ler o próprio Caê. O livro se enrosca sobre si mesmo e se
torna seu próprio espelho.
O precário leitor precisa,
ainda, se conformar com a ideia de que, assim como ele, o poeta também se
alimenta de segredos. Ele tem imensa “sede de me perder nos fios sedosos do
segredo”. A leitura é um contato (uma ponte?) entre dois segredos. Eles não se
desvelam, mas ainda assim se alimentam. Transitam no imenso vazio que os une,
mas também os separa. Nunca entramos, de fato, na escrita alheia. Algo sempre me
escapa. Embora nos desloque e atordoe, ela, do mesmo modo, nunca nos captura a
alma. Ler um poeta é dizer ao poeta: “Sim, eu o ouço”. E como é reconfortante o
murmúrio que ouvimos como resposta.
(Texto
publicado no suplemento "Prosa" de O GLOBO no sábado 14/03/2015)
JOSÉ
CASTELLO
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