quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Relatos selvagens

Por que nosso cinema brasileiro é tão inferior ao argentino? A Argentina está quebrada há anos. Sua política é risível (peronismo de todos os lados). Sua presidente atual, uma bolivariana louca.
 
Mas "los hermanos" continuam anos-luz à nossa frente em uma porção de coisas, entre elas o cinema. A "cultura" brasileira é ainda um atraso em comparação à argentina.
 
Nosso cinema patina na fórmula da comédia escrachada, masturbações ao redor do amor neurótico, do "coitadismo" (coitado do pobre, do bandido, do drogado) ou de seu contrário: pobre é lindo, bandido é lindo, drogado é lindo. E agora uma novidade: as questões de gênero.
 
Existe um lugar-comum para o cinema inteligentinho entre nós: a crítica social.
 
Parodiando o grande Oscar Wilde, quando dizia que toda poesia sincera é ruim, eu diria que todo filme de crítica social é ruim. No mínimo, chato. E não deve melhorar, na medida em que os jovens cineastas continuam sendo formados, em grande parte, no culto a Cuba como meca da resistência ao capital -dá até vontade de rir, se não fosse caso para chorar...
 
E aí, chegamos a "Relatos Selvagens", dirigido pelo argentino Damián Szifrón, que conta seis histórias curtas sobre violência.
 
Não, você não vai ver um filme falando de como o capital é responsável por todas as desgraças do mundo, nem sobre como a sociedade desigual produz todo o mal. "Relatos Selvagens" não é infantil -e, quem pensa que a violência é fruto do capitalismo, é infantil.
 
Mas, claro, as relações entre as pessoas num mundo do dinheiro são parte de como se dá a violência.
 
Por exemplo, numa das histórias do longa, o personagem de Ricardo Darín é esmagado por algo que conhecemos muito bem: a parceria criminosa entre governo e as empresas privadas que prestam serviços a ele, gerando todo o aparato de multas no trânsito nas grandes cidades, câmeras fotográficas, guinchos e afins.
 
Além, claro, da burocracia enlouquecedora, feita para inviabilizar qualquer tentativa de reação por parte das pessoas.
 
 
Entretanto, pela própria apresentação do filme, vemos que o lugar da violência parece estar além do maniqueísmo típico das ciências sociais: os animais selvagens olhando para as câmeras que os fotografam relevam nosso parentesco de alma com eles.
 
O tratamento da violência no longa parece ser o seguinte: a violência é constitutiva da espécie e a civilização faz o que pode com isso. Inclusive porque é a própria civilização quem estimula a violência, muitas vezes vista como o "ato de coragem" -que, em um dos relatos, faz um homem recuperar o respeito da própria esposa.
 
A violência é feia, destrutiva, ridícula. Mas, às vezes, a negação dela seria destrutiva, como na história em que um milionário, achacado pela corrupção do sistema judiciário argentino, decide ser mais agressivo na negociação da propina e consegue reduzir seus gastos com um crime que envolve seu filho, um mauricinho irresponsável.
 
Aliás, nesse mesmo caso vemos como as classes menos favorecidas sabem muito bem como manipular seus "ganhos" no esquema de corrupção. Um cínico diria que a corrupção também pode ser inclusiva.
 
 
Noutra história, a diferença de "natureza" entre duas pessoas distintas pode fazer com que uma, com todas as razões do mundo para se vingar, se mantenha imune ao instinto violento e outra, sem nenhuma relação com o caso em questão, se revele uma besta assassina.
 
 
Diferenças de caráter individual, claro, eram consideradas um "fetiche" burguês pelo velho Marx.
 
Não faltaria em uma obra consistente como "Relatos Selvagens" o reconhecimento da íntima relação entre violência e Eros. A história da festa de casamento traz à tona a sabida "energia positiva da agressividade" no tesão entre um homem e uma mulher. A paz eterna é brocha.
 
 
No primeiro relato, somos levados a pensar: qual gostosa nunca trocou o namorado bundão pelo amigo descolado? Quem nunca riu de alguém medíocre? Qual terapeuta nunca subiu o preço da sessão?
 
Bem vindos à vida real, e não à pasmaceira politicamente correta brasileira. 

 
Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, 'Contra um mundo melhor' (Ed. LeYa). Escreve às segundas.
 

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