Na bibliografia enorme
sobre Guimarães Rosa, tem muita coisa preciosa e muita coisa irrelevante. A maldição de um grande autor é virar um
cômodo pretexto para trabalhos de estudiosos meio indolentes, que têm preguiça
de ter idéias originais, e estudam os autores mais famosos porque sabem que o
tema é nobre e conta pontos, a bibliografia é vasta, e a esta altura ninguém
espera grandes novidades a respeito.
Willi Bolle é o autor de
grandesertão.br, assim mesmo em minúsculas como num nome de saite
(Editoras Duas Cidades / 7Letras, 2004).
É uma dessas investigações minuciosas que dão gosto, porque é como se o
autor relesse o livro inteiro para nós, descobrindo, destacando,
reinterpretando. A tese principal de
Bolle é de que o romance de Rosa é um romance de formação do Brasil. A história de Riobaldo vale como uma alegoria
ou uma ilustração prática, rica, variada, minuciosa e nítida, da formação da
nação brasileira que temos, com suas qualidades e defeitos.
É uma tese detalhadamente
exemplificada e argumentada. O sistema
jagunço (o exercício da força das armas, para afirmar e legitimar o poder
político e econômico) está no cerne da nossa formação. Riobaldo, um homem velho
que no fim da vida reconta sua história, tenta entender seu próprio percurso,
justificar suas ações, e livrar-se um pouco das culpas que carrega, das muitas
mortes que praticou e da cegueira que o afastou de Diadorim.
Bolle examina o conflito
entre discurso erudito e linguagem popular, e contrasta as abordagens de
Euclides em Os Sertões (o intelectual que glorifica o povo, mas não lhe
dá voz) e de Rosa, que dá voz ao povo procurando a síntese entre a sabedoria
tradicional e a cultura livresca. Bolle observa que o pacto com o Diabo nas
Veredas Mortas é “uma representação criptografada da modernização do
Brasil”. Quando Riobaldo diz,
referindo-se ao seu trato com o Demônio: “Trato? Mas trato de iguais com iguais.
Primeiro, era eu que dava a ordem”, isso reflete os pactos sociais brasileiros,
uma “retórica do faz de conta”, em que as duas partes (elites e povo) são
supostamente iguais em direitos, mas é uma delas que manda. Ecoando a famosa frase de Orwell na
Revolução dos Bichos: “Todos os bichos são iguais, mas uns são mais
iguais do que os outros”.
Riobaldo
é sempre visto como o jagunço vivendo aventuras guerreiras e uma história de
amor, mas Bolle o recoloca com clareza na sua posição final de fazendeiro, dono
de terras herdadas do pai biológico, alguém que fez carreira dentro do sistema
jagunço e de empregado tornou-se patrão. Para isso, ele faz um sacrifício: ele é
“um homem que deixou morrer o grande amor de sua vida”.
Bráulio Tavares
(mundofantasmo)
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