quarta-feira, 19 de novembro de 2014

grandesertao.br

Na bibliografia enorme sobre Guimarães Rosa, tem muita coisa preciosa e muita coisa irrelevante. A maldição de um grande autor é virar um cômodo pretexto para trabalhos de estudiosos meio indolentes, que têm preguiça de ter idéias originais, e estudam os autores mais famosos porque sabem que o tema é nobre e conta pontos, a bibliografia é vasta, e a esta altura ninguém espera grandes novidades a respeito.


Willi Bolle é o autor de grandesertão.br, assim mesmo em minúsculas como num nome de saite (Editoras Duas Cidades / 7Letras, 2004). É uma dessas investigações minuciosas que dão gosto, porque é como se o autor relesse o livro inteiro para nós, descobrindo, destacando, reinterpretando. A tese principal de Bolle é de que o romance de Rosa é um romance de formação do Brasil. A história de Riobaldo vale como uma alegoria ou uma ilustração prática, rica, variada, minuciosa e nítida, da formação da nação brasileira que temos, com suas qualidades e defeitos.


É uma tese detalhadamente exemplificada e argumentada. O sistema jagunço (o exercício da força das armas, para afirmar e legitimar o poder político e econômico) está no cerne da nossa formação. Riobaldo, um homem velho que no fim da vida reconta sua história, tenta entender seu próprio percurso, justificar suas ações, e livrar-se um pouco das culpas que carrega, das muitas mortes que praticou e da cegueira que o afastou de Diadorim.


Bolle examina o conflito entre discurso erudito e linguagem popular, e contrasta as abordagens de Euclides em Os Sertões (o intelectual que glorifica o povo, mas não lhe dá voz) e de Rosa, que dá voz ao povo procurando a síntese entre a sabedoria tradicional e a cultura livresca. Bolle observa que o pacto com o Diabo nas Veredas Mortas é “uma representação criptografada da modernização do Brasil”. Quando Riobaldo diz, referindo-se ao seu trato com o Demônio: “Trato? Mas trato de iguais com iguais. Primeiro, era eu que dava a ordem”, isso reflete os pactos sociais brasileiros, uma “retórica do faz de conta”, em que as duas partes (elites e povo) são supostamente iguais em direitos, mas é uma delas que manda. Ecoando a famosa frase de Orwell na Revolução dos Bichos: “Todos os bichos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros”.


Riobaldo é sempre visto como o jagunço vivendo aventuras guerreiras e uma história de amor, mas Bolle o recoloca com clareza na sua posição final de fazendeiro, dono de terras herdadas do pai biológico, alguém que fez carreira dentro do sistema jagunço e de empregado tornou-se patrão. Para isso, ele faz um sacrifício: ele é “um homem que deixou morrer o grande amor de sua vida”.
 
 
Bráulio Tavares
(mundofantasmo)

 

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