domingo, 9 de novembro de 2014

Fim de jogo

A ideia de 'agir' no Ocidente pressupõe reorganização, apaziguamento; mas nunca mais haverá paz

 
Em “Fim de jogo”, a peça de Samuel Beckett, o protagonista Hamm, em sua cadeira de rodas diante de um mundo acabado, diz a frase: “que saudades das velhas perguntas e das velhas respostas!...”. Hoje, sua frase poderia ser: “temos novas perguntas, mas velhas respostas”. Isso: em nosso tempo, as novas perguntas são respondidas confusamente por velhas ideias. Diante dos labirintos de labirintos que surgem no planeta, criados pela superpopulação, pelo crescimento da miséria, pelo Oriente Médio, pelo terrorismo, pelas mudanças climáticas etc., só dispomos de velhas respostas.
 
Respostas velhas para novas perguntas, numa situação mundial (e por tabela a brasileira) que está muito além dos velhos métodos de análise histórica. Por exemplo, a ideia de “solucionar”, de “resolver” (muito americana), terminou. Surgiu a era da insolubilidade. Os processos normais, com início, meio e fim, desmoronaram. As coisas surgem e ficam para sempre, se bem que a expressão “para sempre” também ficou arcaica. O que é “sempre”? É uma sucessão de presentes sem fim?
 
Aliás, o que é o “futuro”? Quando ele chega? E (como se pensava) trará a “harmonia”? Que harmonia?
 
O “fim da História” — tanto do Hegel como o “fim” do Fukuyama — não haverá. Não porque o “tempo não para”, não; mas porque as novas novidades (parece pleonasmo, mas não é) são múltiplas, tentaculares, inauditas em suas formas “aracnídeas” de influir.
 
Começou no 11 de Setembro. Quem imaginaria aquilo? Para os terroristas islâmicos foi natural, simples, porque eles trabalham fora da História, furando nossa “marcha pelo progresso”. Eles são intempestivos, na acepção perfeita do termo: “fora do tempo”. Quem imaginaria algo como o Estado Islâmico? A primavera árabe mixou — ingenuamente achávamos que os teocráticos “ansiavam” por democracia (rs rs rs). E aqui? Como suportar a estupidez do conto do vigário populista tipo “chavismo” que já raiou na pátria amada? Sem contar o admirável mundo novo da internet deformando nossa forma de pensar. A circularidade do mundo aumenta, um furacão de dados infinitos nos rege e vai nos governar — um grande quebra-cabeças que nunca se resolve.
 
O novo tempo inaugura a incapacidade de ação. A ideia de “agir” no Ocidente pressupõe reorganização, apaziguamento. Mas nunca mais haverá paz. Os resíduos de uma ética só existem para discursos demagógicos e impotentes. Nada impede a predação dos dinheiros públicos, porque o “público” não existe mais. Não há mais um limite “hobbesiano” para escândalos e crimes. Diante disso tudo, só temos os fracos recursos dos direitos humanos. Mas que direitos? Ninguém lembra.
 
(Este artigo está muito “papo cabeça”; perdão — mas vamos em frente).
 
O tempo está fora do eixo (“Time is out of joint”) diz Hamlet a Horatio no primeiro ato. Agora também está — mundo sem rumo, sem utopias, sem esperança. A democracia está sob a luz torta da desconfiança. Oportunistas políticos querem ressuscitar sonhos de revolução para posarem de “irados intelectuais” que marcham contra a corrente dos fatos. Há uma grande confusão entre Bem e Mal. Surgem desejos de algum autoritarismo com mão forte que possa “acelerar” a História e a política. Muitos querem no mundo a eficácia até do Mal, se preciso — já não aguentam a monotonia do bem, do correto, do democrático. A grande sedução do Mal é que ele é uno, com contornos concretos. Mata-se um sujeito e ele cai, vira uma coisa nossa, apropriada como objeto total. Por outro lado, o Bem pressupõe tolerância, autocontrole, implica em renúncias, direitos, leis. O Mal, não. O Mal é excitante, sem limites. O Mal parece uma forma perversa de liberdade.
 
O que houve no mundo foi o fim de uma “grande narrativa” — como dizem os pós-modernos. O que acabou foi a ideia de “UM”.
 
Com a chegada da desesperança, hoje temos vidas e opiniões unidas em “tribos”. Em seu luto, as tribos querem alcançar uma identidade alternativa. Há uma recusa ao mundo, considerado algo irremediável. E esse tribalismo é apolítico. Quando se pensava em “derrubar” a América o grito era: “Marche conosco!”. Mas as tribos não querem a adesão de outros, pois elas não almejam o poder; almejam não tê-lo. Se antes a ideia de alienação era condenável, hoje a alienação é aquilo que se deseja.
 
O paradoxo é que o mundo se globaliza em economia, mas se “balcaniza” em ilhas culturais e psicológicas; melhor que “ilhas”, o mundo se “desunifica” em esponjas, em vazios, em avessos, em buracos brancos que vão se alargando à medida que o tecido da sociedade se esgarça. Não são células de resistência, mas buracos de desistência.
 
Se, antes, havia a polarização de ideologias em oposições binárias, pretos contra brancos, socialismo versus capitalismo, isso vinha da ideia de “sistema e contrassistema”, de cultura e contracultura. Isso acabou. Tudo era banhado pela luz vertical e “orwelliana” das multidões massificadas, da “mídia” centralizada, buscando uma narrativa única. Vemos hoje que a distopia iluminista de Orwell foi desmontada pelas linhas tortas da História, da técnica e pelos restos podres do mercado.
 
Que teremos no futuro? Na boa? Acho que teremos os terrorismos islâmicos, bombas de destruição em massa que cabem nos bolsos, escassez econômica, extermínios e um vai e vem de fascismos nas nações emergentes. No mundo central, teremos fria competência no “mainstream” e ilhas alternativas na periferia.
 
Jean Baudrillard em seu ensaio “A ilusão vital” cita uma linda e profética frase de Heidegger: “Quando olhamos para a essência ambígua da tecnologia, nós contemplamos a constelação, o curso estelar do mistério”. E conclui: “Além da Razão, além do discurso da ‘verdade’, reside o valor poético e enigmático do pensamento. Pois, diante de um mundo que é ininteligível e problemático, nossa tarefa é clara: precisamos tornar este mundo ainda mais ininteligível, ainda mais enigmático”.

 
Falou e disse.
 

 
Arnaldo Jabor

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