Passando pela porta de um colégio, me veio uma sensação
nítida de que aquilo era a porta da própria vida. Banal, direis. Mas a sensação era tocante. Por
isto, parei, como se precisasse ver melhor o que via e previa.
Primeiro há uma diferença de clima entre aquele bando de
adolescentes espalhados pela calçada, sentados sobre carros, em torno de
carrocinhas de doces e refrigerantes, e aqueles que transitam pela rua. Não é só
o uniforme. Não é só a idade. É toda uma atmosfera, como se estivessem ainda
dentro de uma redoma ou aquário, numa bolha, resguardados do mundo. Talvez não
estejam. Vários já sofreram a pancada da separação dos pais. Aprenderam que a
vida é também um exercício de separação. Um ou outro já transou droga, e com
isto deve ter se sentido (equivocadamente) muito adulto. Mas há uma sensação de
pureza angelical misturada com palpitação sexual, que se exibe nos gestos
sedutores dos adolescentes. Ouvem-se gritos e risos cruzando a rua. Aqui e ali
um casal de colegiais, abraçados, completamente dedicados ao beijo. Beijar em
público: um dos ritos de quem assume o corpo e a idade. Treino para beijar o
namorado na frente dos pais e da vida, como que diz: também tenho desejos, veja
como sei deslizar carícias. Onde estarão esses meninos e meninas dentro de dez
ou vinte anos?
Aquele ali, moreno, de cabelos longos corridos, que
parece gostar de esportes, vai se interessar pela informática ou economia;
aquela de cabelos loiros e crespos vai ser dona de butique; aquela morena de
cabelos lisos quer ser médica; a gorduchinha vai acabar casando com uma gerente
de multinacional; aquela esguia, meio bailarina, achará um diplomata. Algumas
estudarão Letras, se casarão, largarão tudo e passarão parte do dia levando
filhos à praia e praça e pegando-os de novo à tardinha no colégio. Sim, aquela
quer ser professora de ginástica. Mas nem todos têm certeza sobre o que serão.
Na hora do vestibular resolvem. Têm tempo. É isso. Têm tempo. Estão na porta da
vida e podem brincar. Aquela menina morena magrinha, com aparelho nos dentes,
ainda vai engordar e ouvir muito elogio às suas pernas. Aquela de
rabo-de-cavalo, dentro de dez anos se apaixonará por um homem casado. Não saberá
exatamente como tudo começou. De repente, percebeu que o estava esperando no
lugar onde passava na praia. E o dia em que foi com ele ao motel pela primeira
vez ficará vivo na memória.
É desagradável, mas aquele ali dará um desfalque na
empresa em que será gerente. O outro irá fazer doutorado no exterior, se casará
com estrangeira, descasará, deixará lá um filho – remorso constante. Às vezes
lhe mandará passagens para passar o Natal com a família brasileira.
A turma já perdeu um colega num desastre de carro. É
terrível, mas provavelmente um outro ficará pelas rodovias. Aquele que vai tocar
rock vários anos até arranjar um emprego em repartição pública. O
homossexualismo despontará mais tarde naquele outro, espantosamente, logo nele
que é já um don juan. Tão desinibido aquele, acabará líder comunitário e talvez
político. Daqui a dez anos os outros dirão: ele sempre teve jeito, não lembra
aquela mania de reunião e diretório? Aquelas duas ali se escolherão madrinhas de
seus filhos e morarão no mesmo bairro, uma casada com engenheiro da Petrobrás e
outra com um físico nuclear. Um dia, uma dirá à outra no telefone: tenho uma
coisa para lhe contar: arranjei um amante. Aconteceu. Assim, de repente. E o
mais curioso é que continuo a gostar do meu marido.
Se fosse haver alguma ditadura no futuro, aquele ali
seria guerrilheiro, mas esta hipótese deve ser descartada. Quem estará naquele
avião acidentado? Quem construirá uma linda mansão e um dia convidará a todos da
turma para uma grande festa rememorativa? Ah, o primeiro aborto! Aquele ali
descobrirá os textos de Clarice Lispector e isto será uma iluminação para toda a
vida. Quantos aparecerão na primeira página do jornal? Qual será o tranquilo
comerciante e quem representará o país na ONU?
Estou olhando aquele bando de adolescentes com evidente
ternura. Pudesse passava a mão nos seus cabelos e contava-lhes as últimas
estórias da carochinha antes que o lobo feroz assaltasse na esquina. Pudesse
lhes diria daqui: aproveitem enquanto estão no aquário e na redoma, enquanto
estão na porta da vida e do colégio. O destino também passa por aí. E a gente
pode às vezes modificá-lo.
Affonso Romano de Sant’Anna, in “Porta de colégio e outras crônicas”
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