sábado, 10 de abril de 2010

Contagem do amor maior

Se uma imagem com cores de tinta opaca lhe saltava aos olhos, era fatal. Mesmo que as bordas lhe remetessem às cores da Rua de Arco Íris que ficava a um quarteirão da sua, era em vão, até porque há poucos dias terminara de ler O Quinze e o cinza sobre as pedras, sobre as vidas secas lhe causara sofrimento lúcido e interventivo, capaz de levantar a voz contida e serena para ...

Estava ficando tarde e era preciso voltar. Antes, porém, recobrar pelo menos a cor da tez, afinal tinha sobre si o peso das palavras que deveriam sair precisas e sem o gosto de tinta sangue que tinha na ponta da língua. Às vezes achava fácil, era só não procurar alegorias, ser fria, impávida.

Resolveu dar outra volta, desta vez passando pela Rua de Arco Íris, e foi pior. Seus sentimentos se misturaram e uma curva violenta a fez voltar, quer dizer, ir para frente, para casa com as mãos úmidas e a certeza da falta de coragem, entretanto com o discernimento apurado para revelar a imagem do inferno de Dante que vira sem que tivesse ninguém por perto para sequer remontá-la em eufemismos. Garantia para si mesma que era a última vez que se permitia tal horror. Era a coragem da fé que dava esta certeza a sua alma, pois sempre fora inteira no seu amor, no sexo, no zelo com os sentimentos dele e agora era tudo e nada ao mesmo tempo.

- Venha até a porta, por favor.

Seu olhar de sobressalto a fita e uma paisagem de outono o embaça, mas era preciso caminhar sem pensar por medo de perder a mina dos olhos dela e assim a segurança para transpor não apenas a porta, mas também o próprio limite de reclusão. A um passo do seu cheiro ele desiste e volta e volta e fica. O amor a incomodara como fogo que arde às palavras que por ventura sairiam naquele momento. Por isso se cala e o sente nervoso e frágil como no dia em que tomara a decisão de beijá-la após colocar em seu dedo o anel, cujo desfecho seria aquela cena shakespeareana? Melhor seria mesmo fazer de conta que já falara pelo menos o texto introdutório que preparara até a entrada da rua, ou não?

E ela falara tanto, mas tanto, que se ele não tivesse servido água com gás talvez ela tivesse tido ali mesmo uma aguda crise de diverticulite. Porém as palavras finais não saíram. Tudo em vão. Não saíram porque quem as disse foi ele em tom de sonata, ora allegro, ora minueto.

Um grande hiato se instaura entre os dois. O que fazer? Nenhuma palavra por mais sagrada que fora sucederia aquele absurdo silêncio. Silêncio de covardia, de gritos guardados. Quem sabe – eu te amo! Ou – volte pro inferno! Uma noite com fartas porções de dizeres não dito, de amores doídos, sem nenhuma taça de vinho, entretanto com um único álibe; a ponta dos dedos que se tocara, mesmo às vezes com tom de choque. Contudo, labirinto teria que ser percorrido e desfeito.

O sol nascia e aí parecia ser necessário dormir. E foram.

O sol queria se esconder, o jantar só teria sabor naquele lugar. E foram.

O Bolero de Ravel e depois a Ave Maria. Quase como sempre, mas também sempre como nunca, é que o pôr do sol nunca cintilara tanto ao ponto de se confundir com advertência. E eles recolhiam todos aqueles sinais para o olhar que se desviava em direção ao anel, ao sentimento, às bocas que avidamente ansiavam o beijo.

Os ermos caminhos que fizeram naquele fatídico dia iam se perfazendo em palavras aquareladas. Era o perdão que se convertia ao amor.

E ele – Eu aqui pensando em nossos vitrais... agora assim!



Profª Maria Daguia de Morais

Um comentário:

Unknown disse...

Daguia...grande figura !!! (gosto dela!)