Estreia o filme que revela como o grande poeta do Tropicalismo decifrou a melancolia de um país que se julga alegre.
Eu brasileiro, confesso, minha culpa meu pecado, meu sonho desesperado... Não bati panelas,
que seja dito, porém pouco fiz para evitar a desgraceira, engoli,
engolimos, goela abaixo, no máximo fui bolchevique de redes sociais, é
pouco, muito pouco, pouco mesmo, piada, que fraqueza, meu rapaz.
A
barra está pesada e a geleia geral brasileira, bicho, virou uma
gororoba intragável de botar os bofes pra fora, como se diz no melhor
português das nossas plagas. Tudo anda meio sem graça, os milicos voltaram a dar as caras
com moral padrão meia-oito. Pense num fetiche da farda como salvação da
ordem e do progresso, pense. Nunca fomos tão bocós e cívicos cornos
conformados da brasilidade. Em bom nordestinês, estamos mais lascados do
que maxixe em cruz. Uma gracilianíssima angústia a moer os ossos. De
abrir o gás.
E sabe aquele seu melhor amigo de infância, lá da sua rua em
Teresina, o Wellington? Rapaz, não te conto. Está por trás dessa
ressaca toda. É um dos homens da tramoia que levou o Vampirão às
cabeças. Sabia que você, amante dos filmes “B” de terror, iria curtir
essa parada. A gente ri de nervoso, compreende?, isso alivia pra
caramba. Ave. Calma que o drama nem começou deveras. Abrem-se as
cortinas.
Wellington Moreira Franco.
Ele mesmo. O que são os destinos na mão da mesma cigana. Você partiu
para a Bahia, tropicalista sina, o gato angorá -apelido dado pelo
Brizola- seguiu os rastros da bufunfa da política. Sejamos grato ao
angorá pelo menos em uma coisa: o desalmado falou com carinho sobre você
no filme. Memória delicada. Vade retro. Corta. Você e esse miserável na
mesma rua e no mesmo gibi dos primeiros passos.
Ah, que filme fodidamente lindo os meninos fizeram sobre sua
trajetória. Chorei. Que pancada. Seu filho Thiago Nunes... Psiu! Não
vamos acordá-lo às três da madrugada. Choro e alento, juro que me aluí
do canto. No conjunto da obra, o filme também me animou para a
existência, vide quão paradoxal a essa altura. Não, não falarei sobre o
falso anti-Édipo em relação à mamãe coragem, só indo ao cinema. Dona
Maria Salomé estava certa: o tropicalismo que se danasse, ela queria o
filho no prumo da venta. Só lhe restou pegar uns panos para lavar, ler
um romance, vê as contas do mercado, como aconselhara o filho. Mamãe,
mamãe não chore.
Eu, brasileiro, nesse perigo da hora, recomendo, não deixe de se ver neste filmaço: Torquato Neto — Todas as horas do fim,
de Eduardo Ades e Marcus Fernando. Estreia nos cinemas na próxima
quinta-feira, dia 8. Tanta violência, mas tanta ternura. Recitaria o
poeta Mário Faustino (1930-1962), igualmente genial e piauiense, na sua
balada eterna para um vate suicida.
Deu saudade de Teresina. De beber e conversar com Albert
Piauí e Kenard Kruel. De comer “Maria Isabel”, marca da culinária da
terra, um dos pratos que justificam a descoberta do fogo pelos primeiros
homens da América -piauienses, óbvio, lá da serra da Capivara, se é que o leitor esclarecido me entende. Deu água na boca em pensar no capote com cuscuz que comi da vez derradeira.
Que filme, rapazes. O ator Jesuíta Barbosa,
que “dubla” em off o poeta, é para arrombar a tabaca de Chola, como se
diz na hipérbole pernambucana -jovens, ao Google. Bonito demais. Deu
drama e dignidade a tudo na prosódia. Ler Torquato doravante é ter essa
voz como eco no sótão do inconsciente.
Prestem atenção na fala de Tom Zé e no entendimento de
Gilberto Gil, parceiros que compreendem, de cara, a agonia criativa de
Torquato. Por favor, se liguem como as imagens do Cinema Novo de Glauber
etc e do Cinema Terrir/Udigrudi de Ivan Cardoso & companhia
encobrem e descobrem a inadaptação, a estranheza do
Torquato-Nosferatu-do-Brasil diante do sol do tropicalismo. Era muita
“alegria, alegria” para um estrangeiro do Piauí, minha gente.
O filme é tão rico que esta pobre crônica-resenha não passa
de um bilhete de boas intenções aos náufragos. Torquato parece ter,
tinha, a consciência da vida como permanente tic-tac das horas finais .
Tanta coisa a essa altura. Três da madrugada em São Paulo, quase nada, a
cidade abandonada, Irene dorme, Larissa idem, os dois corações são meus
atabaques babilônicos, minhas sístoles e diástoles. Tudo e nada, a mão
fria toca bem de leve em mim.
Bem que o escritor Marcelino Freire elegeu como homenageado
da Balada Literária do ano passado esse gênio-mor estranhamente ainda
desconhecido para muitos brasileiros. Torquato Neto ou nada. Torquato
Neto ou morte.
Tanta violência, mas tanta ternura. Só vendo o filme outra vez e sempre. Beijos.
Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de Big Jato (editora Companhia das Letras), entre outros livros.
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