A noite chegou, o trabalho acabou,
é hora de voltar para casa. Lar, doce lar? Mas a casa está escura, a
televisão apagada e tudo é silêncio. Ninguém para abrir a porta, ninguém
à espera. Você está só. Vem a tristeza da solidão… O que mais você
deseja é não estar em solidão…
Mas
deixa que eu lhe diga: sua tristeza não vem da solidão. Vem das
fantasias que surgem na solidão. Lembro-me de um jovem que amava a
solidão: ficar sozinho, ler, ouvir, música… Assim, aos sábados, ele se
preparava para uma noite de solidão feliz. Mas bastava que ele se
assentasse para que as fantasias surgissem. Cenas. De um lado, amigos em
festas felizes, em meio ao falatório, os risos, a cervejinha. Aí a cena
se alterava: ele, sozinho naquela sala. Com certeza ninguém estava se
lembrando dele. Naquela festa feliz, quem se lembraria dele? E aí a
tristeza entrava e ele não mais podia curtir a sua amiga solidão. O
remédio era sair, encontrar-se com a turma para encontrar a alegria da
festa. Vestia-se, saía, ia para a festa… Mas na festa ele percebia que
festas reais não são iguais às festas imaginadas. Era um desencontro,
uma impossibilidade de compartilhar as coisas da sua solidão… A noite
estava perdida.
Faço-lhe uma
sugestão: leia o livro A chama de uma vela, de Bachelard. É um dos
livros mais solitários e mais bonitos que jamais li. A chama de uma
vela, por oposição às luzes das lâmpadas elétricas, é sempre solitária. A
chama de uma vela cria, ao seu redor, um círculo de claridade mansa que
se perde nas sombras. Bachelard medita diante da chama solitária de uma
vela. Ao seu redor, as sombras e o silêncio. Nenhum falatório bobo ou
riso fácil para perturbar a verdade da sua alma. Lendo o livro solitário
de Bachelard eu encontrei comunhão. Sempre encontro comunhão quando o
leio. As grandes comunhões não acontecem em meio aos risos da festa.
Elas acontecem, paradoxalmente, na ausência do outro. Quem ama sabe
disso. É precisamente na ausência que a proximidade é maior. Bachelard,
ausente: eu o abracei agradecido por ele assim me entender tão bem. Como
ele observa, “parece que há em nós cantos sombrios que toleram apenas
uma luz bruxoleante. Um coração sensível gosta de valores frágeis”. A
vela solitária de Bachelard iluminou meus cantos sombrios, fez-me ver os
objetos que se escondem quando há mais gente na cena. E ele faz uma
pergunta que julgo fundamental e que proponho a você, como motivo de
meditação: “Como se comporta a Sua Solidão?” Minha solidão? Há uma
solidão que é minha, diferente das solidões dos outros? A solidão se
comporta? Se a minha solidão se comporta, ela não é apenas uma realidade
bruta e morta. Ela tem vida.
Entre
as muitas coisas profundas que Sartre disse, essa é a que mais amo:
“Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com
aquilo que fizeram com você.” Pare. Leia de novo. E pense. Você lamenta
essa maldade que a vida está fazendo com você, a solidão. Se Sartre está
certo, essa maldade pode ser o lugar onde você vai plantar o seu
jardim.
Como é que a sua solidão se
comporta? Ou, talvez, dando um giro na pergunta: Como você se comporta
com a sua solidão? O que é que você está fazendo com a sua solidão?
Quando você a lamenta, você está dizendo que gostaria de se livrar dela,
que ela é um sofrimento, uma doença, uma inimiga… Aprenda isso: as
coisas são os nomes que lhe damos. Se chamo minha solidão de inimiga,
ela será minha inimiga. Mas será possível chamá-la de amiga? Drummond
acha que sim: “Por muito tempo achei que a ausência é falta./ E
lastimava, ignorante, a falta./ Hoje não a lastimo./ Não há falta na
ausência. A ausência é um estar em mim./ E sinto-a, branca, tão pegada,
aconchegada nos meus braços,/ que rio e danço e invento exclamações
alegres,/ porque a ausência, essa ausência assimilada,/ ninguém a rouba
mais de mim.!”
Nietzsche também tinha
a solidão como sua companheira. Sozinho, doente, tinha enxaquecas
terríveis que duravam três dias e o deixavam cego. Ele tirava suas
alegrias de longas caminhadas pelas montanhas, da música e de uns poucos
livros que ele amava. Eis aí três companheiras maravilhosas! Vejo,
frequentemente, pessoas que caminham por razões da saúde. Incapazes de
caminhar sozinhas, vão aos pares, aos bandos. E vão falando, falando,
sem ver o mundo maravilhoso que as cerca. Falam porque não suportariam
caminhar sozinhas. E, por isso mesmo, perdem a maior alegria das
caminhadas, que é a alegria de estar em comunhão com a natureza. Elas
não vêem as árvores, nem as flores, nem as nuvens e nem sentem o vento.
Que troca infeliz! Trocam as vozes do silêncio pelo falatório vulgar. Se
estivessem a sós com a natureza, em silêncio, sua solidão tornaria
possível que elas ouvissem o que a natureza tem a dizer. O estar juntos
não quer dizer comunhão. O estar juntos, frequentemente, é uma forma
terrível de solidão, um artifício para evitar o contato conosco mesmos.
Sartre chegou ao ponto de dizer que “o inferno é o outro.” Sobre isso,
quem sabe, conversaremos outro dia… Mas, voltando a Nietzsche, eis o que
ele escreveu sobre a sua solidão:
“Ó solidão! Solidão, meu lar!… Tua voz – ela me fala com ternura e felicidade!
Não discutimos, não queixamos e muitas vezes caminhamos juntos através de portas abertas.
Pois onde quer que estás, ali as coisas são abertas e luminosas. E até mesmo as horas caminham com pés saltitantes.
Ali
as palavras e os tempos/poemas de todo o ser se abrem diante de mim.
Ali todo ser deseja transformar-se em palavra, e toda mudança pede para
aprender de mim a falar.”
E o
Vinícius? Você se lembra do seu poema O operário em construção? Vivia o
operário em meio a muita gente, trabalhando, falando. E enquanto ele
trabalhava e falava ele nada via, nada compreendia. Mas aconteceu que,
“certo dia, à mesa, ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita
emoção ao constatar assombrado que tudo naquela casa – garrafa, prato,
facão – era ele que os fazia, ele, um humilde operário, um operário em
construção (…) Ah! Homens de pensamento, não sabereis nunca o quando
aquele humilde operário soube naquele momento! Naquela casa vazia que
ele mesmo levantara, um mundo novo nascia de que nem sequer suspeitava. O
operário emocionado olhou sua própria mão, sua rude mão de operário, e
olhando bem para ela teve um segundo a impressão de que não havia no
mundo coisa que fosse mais bela. Foi dentro da compreensão desse
instante solitário que, tal sua construção, cresceu também o operário.
(…) E o operário adquiriu uma nova dimensão: a dimensão da poesia.”
Rainer
Maria Rilke, um dos poetas mais solitários e densos que conheço, disse o
seguinte: “As obras de arte são de uma solidão infinita.” É na solidão
que elas são geradas. Foi na casa vazia, num momento solitário, que o
operário viu o mundo pela primeira vez e se transformou em poeta.
E me lembro também de Cecília Meireles, tão lindamente descrita por Drummond:
“…Não
me parecia criatura inquestionavelmente real; e por mais que aferisse
os traços positivos de sua presença entre nós, marcada por gestos de
cortesia e sociabilidade, restava-me a impressão de que ela não estava
onde nós a víamos… Distância, exílio e viagem transpareciam no seu
sorriso benevolente? Por onde erraria a verdadeira Cecília…”
Sim,
lá estava ela delicadamente entre os outros, participando de um jogo de
relações gregárias que a delicadeza a obrigava a jogar. Mas a
verdadeira Cecília estava longe, muito longe, num lugar onde ela estava
irremediavelmente sozinha.
O primeiro filósofo que li, o
dinamarquês Soeren Kiekeggard, um solitário que me faz companhia até
hoje, observou que o início da infelicidade humana se encontra na
comparação. Experimentei isso em minha própria carne. Foi quando eu,
menino caipira de uma cidadezinha do interior de Minas, me mudei para o
Rio de Janeiro, que conheci a infelicidade. Comparei-me com eles:
cariocas, espertos, bem falantes, ricos. Eu diferente, sotaque ridículo,
gaguejando de vergonha, pobre: entre eles eu não passava de um patinho
feio que os outros se compraziam em bicar. Nunca fui convidado a ir à
casa de qualquer um deles. Nunca convidei nenhum deles a ir à minha
casa. Eu não me atreveria. Conheci, então, a solidão. A solidão de ser
diferente. E sofri muito. E nem sequer me atrevi a compartilhar com meus
pais esse meu sofrimento. Seria inútil. Eles não compreenderiam. E
mesmo que compreendessem, eles nada podiam fazer. Assim, tive de sofrer a
minha solidão duas vezes sozinho. Mas foi nela que se formou aquele que
sou hoje. As caminhadas pelo deserto me fizeram forte. Aprendi a cuidar
de mim mesmo. E aprendi a buscar as coisas que, para mim, solitário,
faziam sentido. Como, por exemplo, a música clássica, a beleza que torna
alegre a minha solidão…
A sua
infelicidade com a solidão: não se deriva ela, em parte, das
comparações? Você compara a cena de você, só, na casa vazia, com a cena
(fantasiada ) dos outros, em celebrações cheias de risos… Essa
comparação é destrutiva porque nasce da inveja. Sofra a dor real da
solidão porque a solidão dói. Dói uma dor da qual pode nascer a beleza.
Mas não sofra a dor da comparação. Ela não é verdadeira.
Mas essa conversa não acabou: vou falar depois sobre os companheiros que fazem minha solidão feliz.
Rubem Alves
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