Alguém já disse que uma autobiografia é um livro onde um cara explica que quem tinha razão era ele. É isto, mas é muito mais.
Em “As palavras”, Sartre descreve a sua infância num tom tão impiedoso que parece estar contando a vida de um idiota qualquer. Ele radiografa sem piedade as variações de caráter por que passamos quando crianças; as ingenuidades, as pequenas calhordices, as fantasias de grandeza, as angústias da covardia.
Seguindo a máxima existencialista de que ninguém é inocente, ele desvenda a si mesmo, desmascara o menino que foi. E com isto nos mostra a grandeza do escritor adulto que é (ou seja: mais uma vez, quem tinha razão era ele).
Já me referi nesta coluna (“A arte da cura”, 23 de abril) à autobiografia de Georges Perec, onde ele mistura suas recordações de infância com trechos de uma novela kafkeana que serve de contraponto ao fato mais importante dessa infância – a morte de seus pais, judeus, durante a II Guerra.
Em vez de simplesmente contar sua vida, Perec a usa como uma simples peça num mecanismo literário mais complexo. Isso relativiza as tragédias do passado, ao mesmo tempo que confirma o fato de que toda tragédia fica acontecendo para sempre.
Estas notas aparecem aqui em função do recente lançamento de Viver para contar, o primeiro volume das memórias de Gabriel Garcia Márquez. Li os capítulos iniciais há cerca de um ano, quando foram reproduzidos no “Globo”. Garcia Márquez costuma dizer que nada de interessante ocorreu em sua vida depois dos oito anos, quando morreu seu avô, que lhe contava as histórias fabulosas cujo espírito ele recriou a partir de Cem anos de solidão.
A este respeito há uma história curiosa. Enquanto escrevia Cem anos de solidão, Márquez ficou virtualmente recluso em casa, enquanto a mulher cortava um dobrado para garantir a sobrevivência da família.
Marquez escrevia o dia inteiro, e ao anoitecer, exausto, saía para tomar um drinque com seu amigo, o escritor Álvaro Mutis. Enquanto relaxava, comentava com Mutis o livro que estava escrevendo: falava dos personagens, das situações, dos seus problemas para resolver tal ou tal aspecto do enredo. Mutis dava sugestões, lembrava episódios parecidos, propunha alternativas; o tipo de ajuda que escritores prestam habitualmente uns aos outros. Márquez recusava-se a mostrar ao amigo o manuscrito, mas concordava em discutir com ele as peripécias.
Isto durou um ano e meio. Quando o livro por fim ficou pronto, Márquez colocou o gigantesco original datilografado nas mãos de Mutis, que, ao começar a ler, não acreditou no que via. Cem anos de solidão era um livro totalmente diferente. O “livro” que Garcia Márquez discutira com ele durante todos aqueles meses existia somente na sua imaginação; era um exercício para relaxar.
Ninguém me tira do juízo a possibilidade de que as memórias de Márquez pertençam ao mesmo gênero literário: a Fantasia da Memória, aqueles livros onde a imaginação tem sempre razão.
Em “As palavras”, Sartre descreve a sua infância num tom tão impiedoso que parece estar contando a vida de um idiota qualquer. Ele radiografa sem piedade as variações de caráter por que passamos quando crianças; as ingenuidades, as pequenas calhordices, as fantasias de grandeza, as angústias da covardia.
Seguindo a máxima existencialista de que ninguém é inocente, ele desvenda a si mesmo, desmascara o menino que foi. E com isto nos mostra a grandeza do escritor adulto que é (ou seja: mais uma vez, quem tinha razão era ele).
Já me referi nesta coluna (“A arte da cura”, 23 de abril) à autobiografia de Georges Perec, onde ele mistura suas recordações de infância com trechos de uma novela kafkeana que serve de contraponto ao fato mais importante dessa infância – a morte de seus pais, judeus, durante a II Guerra.
Em vez de simplesmente contar sua vida, Perec a usa como uma simples peça num mecanismo literário mais complexo. Isso relativiza as tragédias do passado, ao mesmo tempo que confirma o fato de que toda tragédia fica acontecendo para sempre.
Estas notas aparecem aqui em função do recente lançamento de Viver para contar, o primeiro volume das memórias de Gabriel Garcia Márquez. Li os capítulos iniciais há cerca de um ano, quando foram reproduzidos no “Globo”. Garcia Márquez costuma dizer que nada de interessante ocorreu em sua vida depois dos oito anos, quando morreu seu avô, que lhe contava as histórias fabulosas cujo espírito ele recriou a partir de Cem anos de solidão.
A este respeito há uma história curiosa. Enquanto escrevia Cem anos de solidão, Márquez ficou virtualmente recluso em casa, enquanto a mulher cortava um dobrado para garantir a sobrevivência da família.
Marquez escrevia o dia inteiro, e ao anoitecer, exausto, saía para tomar um drinque com seu amigo, o escritor Álvaro Mutis. Enquanto relaxava, comentava com Mutis o livro que estava escrevendo: falava dos personagens, das situações, dos seus problemas para resolver tal ou tal aspecto do enredo. Mutis dava sugestões, lembrava episódios parecidos, propunha alternativas; o tipo de ajuda que escritores prestam habitualmente uns aos outros. Márquez recusava-se a mostrar ao amigo o manuscrito, mas concordava em discutir com ele as peripécias.
Isto durou um ano e meio. Quando o livro por fim ficou pronto, Márquez colocou o gigantesco original datilografado nas mãos de Mutis, que, ao começar a ler, não acreditou no que via. Cem anos de solidão era um livro totalmente diferente. O “livro” que Garcia Márquez discutira com ele durante todos aqueles meses existia somente na sua imaginação; era um exercício para relaxar.
Ninguém me tira do juízo a possibilidade de que as memórias de Márquez pertençam ao mesmo gênero literário: a Fantasia da Memória, aqueles livros onde a imaginação tem sempre razão.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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