segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Muitos russos enxergam o Ocidente como legião de fracos, sem valores



A Rússia é uma potência. E somos muito ignorantes em relação à sua história e identidade. Ainda a vemos com os olhos da "derrotada na Guerra Fria", derrota esta devido à inapetência da economia socialista em dar conta da vida das pessoas reais. Se o comunismo tardou a quebrar a União Soviética, se deveu, justamente, à riqueza gigantesca da Rússia. Veja que nos demais lugares onde o socialismo se instalou, ele quebrou o país em pouco mais de duas semanas.

Mas a ideia de que os russos se vejam como uns derrotados na Guerra Fria é uma percepção distorcida, ainda fruto da "propaganda americana" das últimas décadas. Não. Muitos russos veem o Ocidente como uma legião de fracos. Voltaremos a esse "olhar russo".

Suspeito de que logo a história enxergará a Revolução Russa como "apenas" um capítulo na história do "messianismo russo da terceira Roma" (Roma, Constantinopla, Moscou).
Recentemente, dois lançamentos editorais nos ajudam a entender essa revolução russa para além dos debates ideológicos, que quase sempre dominaram as tentativas de entender o fenômeno bolchevique.

O primeiro é "História da Guerra Civil Russa 1917-1922", de Jean-Jacques Marie, da editora Contexto. A obra descreve de forma empírica (partindo de uma multiplicidade de fontes) a guerra civil que se instalou na Rússia após a revolução bolchevique. Milhões de mortos. Um dos maiores méritos do trabalho de Marie é nos dar indicações do que "deu errado" no projeto bolchevique entre as mãos de Lênin e Stálin.

A paranoia que destruiu a revolução foi, em muito, fruto dessa guerra civil fratricida. Ela, de certa forma, "nunca acabou", e o regime de terror de Lênin e Stálin (muitos querem salvar a pele do Lênin e pôr a conta toda na mão do Stálin, mas isso é manobra ideológica) foi continuação dessa guerra civil, contra objetivos já não mais propriamente "militares".

O segundo é "Do Czarismo ao Comunismo, as Revoluções Russas do início do século XX", de Marcel Novaes, da editora Três Estrelas. Entre os diversos méritos dessa obra, como a escrita simples e direta sem "afetações acadêmicas", está em nos apresentar o processo que nos levou da Rússia dos Romanov (uma potência das maiores na Europa de então) às revoluções russas do início do século 20. É exatamente nesse caráter "plural" do processo revolucionário russo do período que reside um fato essencial que, de certa forma, dialoga com a obra de Marie.

O próprio período dos Romanov, identificado com a criação de São Petersburgo (a grande capital europeia da Rússia dos Romanov) em 1703 pelo czar Pedro, o Grande, é, em si, uma revolução, e, penso eu, mais definitiva para a identidade "moderna" da Rússia do que a revolução bolchevique enquanto tal.

A famosa divisão da alma russa, marcante no século 19, representada na literatura do período entre ocidentalizantes e eslavófilos tem raiz segura na revolução europeizante dos Romanov.

Muitos debates políticos e intelectuais do século 19 russo têm essa oposição como chave importante de leitura. Para uns, a Rússia deveria se tornar uma nação europeia (portanto, ocidental); para outros, reativos ao que representava São Petersburgo, a Rússia deveria oferecer uma resistência à "degeneração" ocidental niilista (classicamente identificados com a quase milenar Moscou).

Essa tensão permanece até hoje. Muitos russos olham para o Ocidente como uma legião de fracos, sem valores, sem identidade, sem coragem. Os EUA e a Europa ocidental representam essa legião.

A posição eslavófila, marcadamente religiosa, influencia em muito o chamado euroasianismo de Putin, sem o caráter essencialmente teológico dos eslavófilos.

No euroasianismo, a Rússia é vista como uma "parede" contra as modas ocidentais, sejam elas a crença "excessiva" na democracia, o sócio-construtivismo das ciências humanas, a pós-modernidade e suas obsessões identitárias ou a "revolução gay". Há um quase desprezo pela crença do Ocidente em si mesmo. Neste olhar reside, também, uma quase piedade dos russos para com as fraquezas ocidentais. 

Luiz Felipe Pondé (Folha online)

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