A Rússia é uma potência. E somos muito
ignorantes em relação à sua história e identidade. Ainda a vemos com os olhos
da "derrotada na Guerra Fria", derrota esta devido à inapetência da
economia socialista em dar conta da vida das pessoas reais. Se o comunismo
tardou a quebrar a União Soviética, se deveu, justamente, à riqueza gigantesca
da Rússia. Veja que nos demais lugares onde o socialismo se instalou, ele
quebrou o país em pouco mais de duas semanas.
Mas a ideia de que os russos se vejam como uns
derrotados na Guerra Fria é uma percepção distorcida, ainda fruto da
"propaganda americana" das últimas décadas. Não. Muitos russos veem o
Ocidente como uma legião de fracos. Voltaremos a esse "olhar russo".
Suspeito de que logo a história enxergará a
Revolução Russa como "apenas" um capítulo na história do
"messianismo russo da terceira Roma" (Roma, Constantinopla, Moscou).
Recentemente, dois lançamentos editorais nos
ajudam a entender essa revolução russa para além dos debates ideológicos, que
quase sempre dominaram as tentativas de entender o fenômeno bolchevique.
O primeiro é "História da Guerra Civil
Russa 1917-1922", de Jean-Jacques Marie, da editora Contexto. A obra
descreve de forma empírica (partindo de uma multiplicidade de fontes) a guerra
civil que se instalou na Rússia após a revolução bolchevique. Milhões de
mortos. Um dos maiores méritos do trabalho de Marie é nos dar indicações do que
"deu errado" no projeto bolchevique entre as mãos de Lênin e Stálin.
A paranoia que destruiu a revolução foi, em
muito, fruto dessa guerra civil fratricida. Ela, de certa forma, "nunca
acabou", e o regime de terror de Lênin e Stálin (muitos querem salvar a
pele do Lênin e pôr a conta toda na mão do Stálin, mas isso é manobra
ideológica) foi continuação dessa guerra civil, contra objetivos já não mais
propriamente "militares".
O segundo é "Do Czarismo ao Comunismo, as
Revoluções Russas do início do século XX", de Marcel Novaes, da editora
Três Estrelas. Entre os diversos méritos dessa obra, como a escrita simples e
direta sem "afetações acadêmicas", está em nos apresentar o processo
que nos levou da Rússia dos Romanov (uma potência das maiores na Europa de
então) às revoluções russas do início do século 20. É exatamente nesse caráter
"plural" do processo revolucionário russo do período que reside um fato
essencial que, de certa forma, dialoga com a obra de Marie.
O próprio período dos Romanov, identificado com
a criação de São Petersburgo (a grande capital europeia da Rússia dos Romanov)
em 1703 pelo czar Pedro, o Grande, é, em si, uma revolução, e, penso eu, mais
definitiva para a identidade "moderna" da Rússia do que a revolução
bolchevique enquanto tal.
A famosa divisão da alma russa, marcante no
século 19, representada na literatura do período entre ocidentalizantes e
eslavófilos tem raiz segura na revolução europeizante dos Romanov.
Muitos debates políticos e intelectuais do
século 19 russo têm essa oposição como chave importante de leitura. Para uns, a
Rússia deveria se tornar uma nação europeia (portanto, ocidental); para outros,
reativos ao que representava São Petersburgo, a Rússia deveria oferecer uma
resistência à "degeneração" ocidental niilista (classicamente
identificados com a quase milenar Moscou).
Essa tensão permanece até hoje. Muitos russos
olham para o Ocidente como uma legião de fracos, sem valores, sem identidade,
sem coragem. Os EUA e a Europa ocidental representam essa legião.
A posição eslavófila, marcadamente religiosa,
influencia em muito o chamado euroasianismo de Putin, sem o caráter
essencialmente teológico dos eslavófilos.
No euroasianismo, a Rússia é vista como uma
"parede" contra as modas ocidentais, sejam elas a crença
"excessiva" na democracia, o sócio-construtivismo das ciências
humanas, a pós-modernidade e suas obsessões identitárias ou a "revolução
gay". Há um quase desprezo pela crença do Ocidente em si mesmo. Neste
olhar reside, também, uma quase piedade dos russos para com as fraquezas
ocidentais.
Luiz Felipe Pondé (Folha online)
(Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2017/10/1925422-muitos-russos-enxergam-o-ocidente-como-legiao-de-fracos-sem-valores.shtml.
Acesso em: 12 de outubro de 2017.)
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