O mundo corporativo é a distopia perfeita. De um
lado, um modo inequívoco de produção de riqueza que elevou a condição material
de vida dos seres humanos a um nível jamais imaginável, do outro lado, um
sistema que esmaga o sujeito obrigando-o a competir cotidianamente, sem
descansar nunca. Se a perfeição da vida material é uma utopia contínua no mundo
contemporâneo, essa mesma perfeição produz níveis elevadíssimos de mal estar,
provavelmente garantindo um futuro de mais riqueza regada a desespero a cada
dia. Ninguém aguenta mais, mas ninguém pode parar.
Dentro desse quadro, chama atenção a obsessão
pela ideia de "inovação". Ela aparece em todos os níveis da vida, do
corporativo as pressões psicológicas sobre os mais velhos e mais jovens, num
nível epidêmico.
A ideia, profundamente inscrita no
"DNA" (como gosta de dizer o mundo corporativo quando "reflete
sobre identidades") da modernidade, tem raízes filosóficas claras em obras
como a do inglês Francis Bacon (1561-1626), entre outros. Seu projeto de
"atar a natureza" a fim de conseguir as respostas necessárias para a
melhoria das condições materiais de vida "na natureza" numa futura
"Nova Atlântida", associado aos avanços do saneamento básico de
Londres ao longo do século 19, são fundamentos básicos dos ganhos técnicos e de
gestão de problemas na modernidade. Da natureza ao esgoto, o projeto é o mesmo.
Na vida pessoal, essa epidemia da inovação
aparece no modo nefasto como as pessoas buscam "se reinventar" a todo
momento. Ela obriga as pessoas a se vem como start ups contínuas num mercado
infinito de demandas que vão da saúde física permanente, a beleza sustentável
as custas de obsessões, a espiritualidade a serviço da commoditização da alma,
enfim, a uma insatisfação existencial contínua como "motivação" para
o imperativo da inovação.
É evidente que a proposta é patológica no nível
humano, inclusive porque, apesar dos reais avanços tecnológicos na engenharia
médica, marchamos para o envelhecimento e a morte, e isso tem impactos
definitivos, mesmo que a indústria da inovação, regada a moda da Singularity
University, a bola da vez, venda a ideia de que seremos imortais.
A epidemia da inovação no plano psicológico
corrói a capacidade, principalmente dos mais jovens, de lidar com o tédio, o
fracasso e a as frustrações "normais" da vida, impondo-nos o
imperativo do sucesso crescente, que nos assola das nossas camas, a vida
profissional, a lida com filhos até o esgotamento de nossas capacidades
intelectuais e afetivas.
Um fato evidente nesse processo é o que muitos
chamariam de "pressão do capital". Essa pressão nos obriga a pensar
em nós mesmos como uma commodity buscando "investimento" no mercado
de um mundo em "movimento", em direção a multiplicação do próprio
capital que se expande a medida em que habita a inovação como condição sine qua
non de adaptação a ele.
No mundo corporativo, que gasta dinheiro com
palestras circenses, a fim de fazer seus "colaboradores riem", assim
como uma sessão de meditação em meio ao massacre cotidiano, a epidemia da
inovação é um mercado em si mesma.
Neste mundo, o futuro é uma commodity em si
mesmo, vendido pelas consultorias de futuro. Citando casos conhecidos como a
implantação de fake memories (diante destas, fake news é conversa de crianças),
esse mercado da inovação vende a ideia de que num mundo próximo, a indústria de
implantação no cérebro de memórias falsas, mas "felizes", eliminará a
depressão e toda uma série de quadros clínicos indesejáveis.
Para além do absurdo da ideia, de um ponto de
vista meramente médico, a própria noção de uma humanidade vivendo continuamente
num parque temático "cognitivo" assusta não pelo suposto avanço
médico em si, mas pelo modo como as consultorias do futuro vendem a ideia como
o máximo da felicidade e da saúde. É a condição definitiva de idiotas
cognitivos, sonâmbulos que caminham pela vida como um pós-humano em processo de
extinção. Os neandertais, do alto de sua sabedoria de espécie já extinta,
chorariam de pena de nós.
LUIZ FELIPE PONDÉ (FOLHA
ONLINE)
(Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2017/10/1927325-a-epidemia-da-inovacao.shtml.
Acesso em: 16 de outubro de 2017.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário