É um daqueles contos-não-contos de Machado de Assis, onde
ele (ou um “eu” pretextual) conta o que lhe foi contado por um amigo, no
intervalo de uma peça chamada A Sentença
ou o Tribunal do Júri. Esse amigo narrador diz-lhe que já presidiu júris no
passado e que não gostou da experiência, citando o preceito do Evangelho: “Não queirais
julgar para que não sejais julgados”.
O narrador diz, com saborosos detalhes, o que foi o
julgamento de um rapaz, “um moço limpo, acusado de haver furtado certa quantia,
não grande, antes pequena, com falsificação de um papel”. Ele comenta a atuação
do advogado, do promotor, lembra que o acusado admitia o crime, apenas atribuía
a uma terceira pessoa, que não quis nomear, a iniciativa e o benefício do
delito, para “acudir a uma necessidade urgente”.
E conta que no júri havia um sujeito ruivo, chamado
Lopes, que “parecia mais que ninguém convencido do delito e do delinquente”. O
júri condena o rapaz por onze votos contra um, mas mesmo assim o Lopes continua
inquieto, “e disse que seria um ato de fraqueza, ou cousa pior, a absolvição
que lhe déssemos”. Não se corre tal risco, com um placar de 11x1, mas o ruivo
Lopes continua indócil, e brada:
– O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo o réu
nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade! Tudo por uma
miséria, duzentos mil réis! Suje-se gordo! Quer sujar-se? Suje-se gordo!
O rapaz é condenado, o tempo vai se passando, e aquela
frase não sai da memória do narrador. Suje-se gordo! A princípio ele fica embasbacado, mas logo
explica a expressão: “era como se dissesse que o condenado era mais que ladrão,
era um ladrão reles, um ladrão de nada”.
E muito tempo depois nosso narrador está de novo num
júri, e quem se senta no banco dos réus, agora mais magro, mas igualmente
ruivo? O mesmíssimo Lopes de antes, portando o mesmo sobrenome, sendo agora
acusado de “uma falsidade e um desvio de cento e dez contos de réis”, o que nem
um pouco lhe tira o sossego:
Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou respondia de
maneira que trazia uma complicação ao processo. Circulava os olhos sem medo nem
ansiedade; não sei até se com uma pontinha de riso nos cantos da boca.
E nesse momento, vendo as esmagadoras provas acumuladas (inclusive
“uma carta de Lopes que fazia evidente o crime”) o narrador é assaltado pela
lembrança da famosa frase.
“Suje-se gordo!”. Vi que não era um ladrão reles, um ladrão de nada,
sim de grande valor. O verbo é que definia duramente a ação. “Suje-se gordo!”.
Queria dizer que um homem não se devia levar a um ato daquela espécie sem a
grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro patacas. Quer sujar-se?
Suje-se gordo!
E o narrador machadiano, com a melancolia de sempre,
relata que nem todos viram com os olhos dele os autos e os fatos: “Votaram
comigo dous jurados. Nove negaram a criminalidade do Lopes, a sentença de
absolvição foi lavrada e lida, e o acusado saiu para a rua”.
Um é condenado por um desfalque de duzentos mil réis,
outro é absolvido por um golpe de cento e dez contos. Parece familiar?
A Justiça, ao contrário do que se diz, não é cega: seus
olhos são tão sadios e tão afinados com a vontade que só enxergam o que querem
enxergar. O próprio narrador do conto reconhece que qualquer coisa pode ser
interpretada de modo diferente, dependendo de que lado do muro estejamos.
[O rapaz dos duzentos mil réis] disse isso sem ênfase, triste, a
palavra surda, os olhos mortos, com tal palidez que metia pena: o promotor
público achou nessa mesma cor do gesto a confissão do crime. Ao contrário, o
defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam a lástima da
inocência caluniada.
(...)
[O Lopes] ouvia, mas com o rosto alto, mirando o escrivão, o
presidente, o teto e as pessoas que o iam julgar; entre elas eu. Quando olhou
para mim não me reconheceu; fitou-me algum tempo e sorriu, como fazia aos
outros. Todos esses gestos do homem serviram à acusação e à defesa, tal como
serviram, tempos antes, os gestos contrários do outro acusado. O promotor achou
neles a revelação clara do cinismo, o advogado mostrou que só a inocência e a
certeza da absolvição podiam trazer aquela paz de espírito.
De fato, não importa muito o que esteja gravado nos autos
ou que seja alegado por um réu. A sentença que proferimos é uma questão de
identificação ou repulsa à primeira vista. Lemos ali o que já estávamos prontos
para ler.
Nosso atavismo emocional e social nos empurra para o
gesto instintivo de condenar uns e absolver outros, e depois dessa decisão tudo
se resume a ter alguma retórica inventadora de motivos. O ruivo Lopes estava
mais magro, anos depois, mas isso não o impediu de sujar-se gordo, com “a
grossura da soma”, e impor respeito ao júri.
Ia esquecendo: o conto é de Relíquias de Casa Velha, de 1906.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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