Tem uma espécie de Herói que vem reaparecendo aqui e ali
na literatura e no cinema. Eu os chamaria “os pícaros da História” embora essa
definição não cubra tudo que eles representam.
Chamo-os de pícaros porque são personagens menores, de baixa extração social, sem nenhum heroísmo, sem nenhuma grandiosidade. São apenas personagens espertos ou esforçados que vivem numa época (ou numa condição social) perigosa, mas que sobrevivem. Sujeitos comuns que estão “se virando” para escapar, numa época de grandes convulsões sociais.
Chamo-os de pícaros porque são personagens menores, de baixa extração social, sem nenhum heroísmo, sem nenhuma grandiosidade. São apenas personagens espertos ou esforçados que vivem numa época (ou numa condição social) perigosa, mas que sobrevivem. Sujeitos comuns que estão “se virando” para escapar, numa época de grandes convulsões sociais.
Uma
característica das histórias a respeito deles é o fato de que a
narrativa conta a vida deles, e as “grandes convulsões sociais” ficam
meio que em segundo plano. O mundo está a ponto de se acabar, mas tudo
que a
narrativa se preocupa é saber o que vai ser do Fulaninho que é o pícaro
protagonista.
Vejam o caso de Forrest Gump, por exemplo. Ele passa
incólume e meio abestado por dentro de conflagrações sociais como a Marcha
Pelos Direitos Civis, a Guerra do Vietnam, etc.
Mal percebe o que está acontecendo. Nós nos comovemos com ele e com o
seu abestalhamento – que é próximo o bastante do nosso para que possamos nos
identificar, e distante o suficiente para que possamos ficar na confortável
posição de “ter peninha do rapaz retardado”.
E os autores (o filme se baseia num romance, que não
cheguei a ler) insistem o tempo inteiro em colocar Forrest na fímbria dos
grandes acontecimentos, usando para isso de trucagens eletrônicas, etc.,
manipulando imagens para inseri-lo na História com H maiúsculo. O herói pícaro
contracena digitalmente com Martin Luther King, Richard Nixon, John Lennon, etc.
Forrest Gump me
lembrou muito, quando o vi, do filme Zelig
de Woody Allen. Mais uma vez temos um protagonista que é o zé-ninguém, um
zero-da-silva, sem a menor importância, mas que sempre dá um jeito de estar no
lugar certo na hora certa, ou seja, de aparecer de algum modo na vitrine da
História.
E mais uma vez temos as trucagens visuais inserindo o personagens em
cenas que são familiares a todo mundo. (Vale lembrar que Zelig é de 1983, e Forrest
Gump veio depois, em 1994, baseado num livro de 1986).
Penso nesses dois heróis enquanto leio Baudolino (2000) de Umberto Eco, um
romance ambientado no século 12. Baudolino é um herói picaresco típico, por sua
origem (filho de camponeses ignorantes) mas que graças a algumas coincidências
bem cordelescas acaba encontrando e caindo nas graças do Imperador Frederico
Barbarossa, e se torna seu protegido.
Daí em diante Baudolino, feito um Zelig ou um Forrest
Gump, começa a participar de todos os eventos históricos importantes do seu
tempo (final do século 12).
Quando Umberto Eco publicou seu primeiro romance, O Nome da Rosa, alguém perguntou numa
entrevista por que ele escolhera ambientar seu primeiro livro na Idade Média.
Ele disse: “Porque conheço a Idade Média com mais detalhes e mais profundidade
do que conheço a época contemporânea”.
Para Eco, a vantagem de livros assim é aquela em que a gente
diz que “a pesquisa já foi feita”, ou seja: passei a vida inteira lendo a
respeito disso, não preciso sentar para aprender somente porque vou usar num
livro.
A espantosa quantidade de informações no romance Baudolino deve ter sido assimilada por
Eco ao longo de muitas décadas de leitura, daí a facilidade com que ele sai
costurando os episódios históricos da época com a linha ficcional das
peregrinações de Baudolino.
Um dos episódios mais engraçados é o modo como a cidade
de Alessandria (onde Eco nasceu) é fundada e acaba resistindo às tentativas do
Imperador Frederico para destruí-la. Claro que no livro a cidade se salva
graças a uma artimanha, uma lenda local, que no livro ele atribui a Baudolino.
A famosa carta do Prestes João, o mítico rei cristão de
um reino perdido no Oriente, é também atribuída a Baudolino e seus amigos de
farra, uma porção de “goliardos” (estudantes poetas cachaceiros) de Paris. (Um
dos quais, aliás, na vida real, é um dos autores dos versos da “Carmina
Burana”).
Há um episódio em que Baudolino se apaixona pela
imperatriz e escreve para ela, sem assinar, uma porção de cartas românticas e
eróticas; escreve também as respostas que ela “poderia” ter lhe dado. Ainda não
localizei esse dado, mas imagino que seja algum conjunto de cartas medievais de
autor não-sabido, e que Eco, obedecendo à lei estrutural do Romance Picaresco
da História, atribui ao seu aventureiro.
Mesmo que alguém não esteja disposto a encarar o romance
(estou lendo na edição da BestBolso, que tem 600 páginas), vale a pena ler o
capítulo 1, “Baudolino começa a escrever”. O texto reproduz as primeiras
tentativas do herói de contar sua própria história, numa algaravia que mistura
latim e outras línguas, cheia de erros cômicos de ortografia, palavrões,
etc. Algo certamente difícil e divertido
de traduzir (a tradução é de Marco Lucchesi).
Nesse capítulo alfabetizatório, Baudolino afirma estar
usando um palimpsesto, ou seja, uma superfície onde já havia algo escrito e que
o usuário raspa, deixando novamente em branco, para escrever em cima. A
raspagem de Baudolino é deficiente, de modo que algumas frases em latim do
texto antigo sobrevivem no meio das coisas que ele está escrevendo.
É o mesmo efeito que os diretores de Forrest Gump e Zelig
obtêm misturando suas imagens ficcionais a imagens de telejornais da época –
uma maneira direta de misturar o Romance Picaresco com os fatos da História.
E que Ariano Suassuna usou fartamente no seu ciclo de
romances da Pedra do Reino, inserindo
o impagável Dom Pedro Dinis Quaderna e sua família em episódios políticos e literários da história do
Brasil e da Paraíba.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
Nenhum comentário:
Postar um comentário