Por
causa do meu trabalho recente com teatro, tenho voltado a encontrar algumas
dessas imagens que nunca nos largam. Imagens associadas a um gênero narrativo.
Elas são como um pequeno objeto que a gente toma nas mãos, fica mudando de
posição, e cada ângulo nos revela uma informação nova.
A imagem
do momento é a da Barca, porque a companhia teatral com quem tenho trabalhado é
a Barca dos Corações Partidos, do Rio.
Bastaria
esse nome para ganhar meu voto, porque isso por um lado me lembrava o “Mote do
Navio” de Pedro Osmar (“Lá vem a barca / trazendo o povo, / pra liberdade / que se conquista”) e
por outro evocava o Clube dos Corações Solitários do Sargento Pimenta.
Por
falar em Pimenta, o “Mote do Navio” de Pedro, uma música que é a cara do seu
grupo em João Pessoa, o Jaguaribe Carne, foi gravado por Lenine no CD que fez
em 1983 com Lula Queiroga, o Baque Solto
(PolyGram).
“Lá Vem
a Barca” era também o nome do show que eu, Fuba e Tadeu Mathias fazíamos à
meia-noite no Teatro Lira Paulistana, em São Paulo, em 1980. Uma temporada que
me abriu os olhos musicalmente, levando-me a conhecer, na amizade com o pessoal
do teatro (alô Gordo, Fernandão, Riba, Chico Pardal, Plínio, Inimá) a música do
Rumo, de Itamar Assumpção, do Premê, de Arrigo Barnabé, do Língua de Trapo.
A canção
de Pedro Osmar servia como anúncio de uma Nau Catarineta mística que nos traz a
liberdade. Uma espécie de Sebastianismo marítimo, ao qual nem mesmo Bob Dylan
ficou imune; basta lembrar “When the Ship Comes In” (1963).
Esse
arquétipo da Barca significa algo que está vindo e que vai trazer para nós um
mundo melhor. Ou, dependendo do poeta, nos levar para um mundo que seja melhor
do que esta coisa-sem-jeito em que vivemos. Pode ser a Arca de Noé que nos
salva de um cataclismo, e pode ser o navio que depois de longo sofrimento nos
resgata na ilha deserta em que nos aguentamos.
A Barca,
“enquanto” elemento mítico narrativo, pertence a uma extensa família de espaços
fechados que conduzem no seu interior uma memória cultural inteira.
Roland
Barthes, em Mitologias (1957), citava
como exemplo o “Nautilus” de Julio Verne em Vinte
Mil Léguas Submarinas (1870). Um submarino cheio de obras de arte,
instrumentos científicos, biblioteca de milhares de livros, tudo isso num tubo
de metal e vidro viajando pelo fundo do mar. Um conceito terminal de condomínio
fechado. Com o agravante de ser também um vaso de guerra.
Foi
nessa altura que me ocorreu que a Barca, transposta para a terra, vira a Carroça.
Pode ser o carro-de-bois que geme com seus viajantes em qualquer livro
regionalista, e pode ser a carroça de um circo ambulante.
Pode
ser a carruagem que cruza com ousadia o território infestado de índios em No Tempo das Diligências de John Ford
(1939) e pode ser a trupe ambulante da commedia
dell’arte do filme As Aventuras do
Capitão Tornado (1990) de Ettore Scola.
Tudo
isto faz lembrar também a “Barraca” com que o poeta e dramaturgo Garcia Lorca
percorria a Espanha montando autos em praça pública, e que tanto influenciou o
jovem Ariano, Hermilo Borba Filho e seus companheiros no Teatro do Estudante de
Pernambuco, nos anos 1940, quando ele escreveu Uma Mulher Vestida de Sol (1947).
Remete
também à trupe teatral de Monsieur Binet em que André Luís Moreau descobre o
teatro e se transforma em Scaramouche,
no romance de Rafael Sabatini (1921). Remete ao Circo ambulante que Dom Pedro
Dinis Quaderna planeja botar na estrada no final do Romance da Pedra do Reino.
A Barca,
que é ao mesmo tempo uma Carroça, expressa para alguns a volúpia da vida
nômade, da vida cigana. Bruce Chatwin tinha uma teoria de que o sedentarismo e
a civilização tinham estragado a aventura humana, o “sonho de Adão” como disse
Gilberto Gil. Nascemos para ser nômades, pastores, viajantes; nascemos para ser
leves e aventureiros.
Como
disse Deus a Tonheta em Brincante
(1992): “Nessa carroça seguirás pelo mundo, depois de nela colocar tudo que
tens; e durante o resto da tua vida não poderás possuir nada que nela não possa
caber”.
É uma
prescrição de desapego. De que adianta sair em aventura pelo mundo levando a
banheira de água quente, a poltrona de leitura, dez baús de roupa, todos os automóveis
da família? Não, amigo. Terás direito a uma carroça, não mais.
Quando
um grupo de artistas (circo, música, etc.) sai de mundo afora numa carroça,
mais do que o espaço físico importa a mescla social e psicológica de tantos
tipos humanos em interação permanente ao longo da rotina da estrada. E das
surpresas da estrada.
Nesse
sentido, esses filmes de super-heróis coletivos, como X-Men, lembram os filmes sobre circo. Ali, cada personagem se
distingue e se afirma pela façanha que é capaz de realizar, mas, tirando
esse aspecto excepcional, são pessoas tão complicadas e tão pouco heróicas
quanto qualquer um de nós.
Em todo
coletivo humano, existe um fator de nivelamento (coisas que todos sabem fazer,
com a mesma competência, ao mesmo tempo, solidariamente) e um fator de
individuação (coisas que somente um sabe fazer de forma excepcional). As
posições dos jogadores, no futebol, exprimem um pouco disso.
Dizem
que a história folclórica da “Branca de Neve e os Sete Anões” referia-se aos
anões sempre coletivamente: eles não tinham nome, nem perfil próprio. Foi Walt
Disney (ou alguém a quem ele pagava um ótimo salário) quem teve a idéia de
personalizar os anões, transformando-os em Mestre, Zangado, Feliz, Soneca, Atchim,
Dengoso e Dunga.
Todo
agrupamento que viaja numa Barca ou numa Carroça precisa disso. O coletivismo
solidário e a individualidade marcante.
Esta é
uma das coisas que precisamos não esquecer, nos tempos que virão.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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