sábado, 4 de abril de 2015

Hilda Hilst e a ética

      Inspirado pela leitura da poesia de Hilda Hilst, rememoro uma forte experiência pessoal. Certa vez dirigi, por quatro noites, um grupo de leitura do "Coração das trevas", de Joseph Conrad. Em um dos momentos mais avançados do romance, de repente, uma das leitoras começou a chorar. "Você não tem o direito de fazer isso comigo", ela repetia, entre soluços, atribuindo a mim a responsabilidade sobre as palavras mortais de Conrad. Anunciou que não participaria mais do grupo. Retirou-se logo em seguida _ e acho que tomou a melhor decisão. Essa leitora chegou a seu limite _ e o maior compromisso que temos com nós mesmos é respeitar nossos próprios limites. 

          A lembrança me veio na semana passada, quando fiz, em São Paulo, na "Ocupação Hilda Hilst", do Itau Cultural, uma leitura pública de "Do desejo", um dos mais belos livros de poemas que Hilda escreveu. Enquanto me preparava para a leitura, esbarrei, várias vezes seguidas, em um tema hoje discutido à exaustão, mas ainda assim aparentemente alijado do ofício do escritor: o problema da ética. Hilda, porém, nunca o perdeu de vista. Para Hilda Hilst, a ética do escritor não é uma questão política _ como a maior parte das pessoas, sob a influência dos acontecimentos contemporâneos, talvez possa imaginar. Não interessa se o escritor defende essa ou aquela ideia; se ele se filia a essa ou aquela corrente de pensamento; se apoia esse, ou aquele partido político. Tudo isso, para a literatura, é irrelevante.
       
          Mas então onde fica a ética do escritor? Na literatura, a questão ética essencial, julgava Hilda, pode ser sintetizada em uma pergunta: _ Será que o leitor suporta a intensidade do texto que o autor lhe oferece? Para ela, a literatura só podia ser medida por um valor: a intensidade. Acreditava que o escritor escreve para "ultrapassar-se", isto é, "ir além de si". A literatura seria uma lupa, que nos permite "ver além". Nesse esforço para ver, ela arrasta consigo o leitor _ sem lhe perguntar se ele deseja segui-la, ou não. Colho suas severas palavras em "Fico besta quando me entendem", coletânea de entrevistas com Hilda Hilst, organizada por Cristiano Diniz para o selo Biblioteca Azul. 

          Hilda descrevia a literatura como "uma torrente, que leva o leitor a explodir". Será lícito, porém, levar o leitor a tal ponto de despedaçamento? Eis a pergunta que a torturava: será ético? Ler Hilda _ assim como ler Clarice, ou ler Pessoa, ou ler Noll _ é, sempre, uma experiência aflitiva. Terá o escritor, Hilda se perguntava, o direito de despertar em seu leitor tanta aflição? Reconhecia sempre a inutilidade de sua luta com as palavras. Para ela, a poesia (a literatura) é, no fim, sempre inútil. "É mais fácil chegar aos outros gravando vozes dos mortos do que escrevendo", declarou em uma das entrevistas. Mas então, uma vez que não se consegue chegar, será justo despertar tanta agitação inútil em seu leitor? Será justo lançá-lo em um abismo do qual não poderá mais sair? 
 
          Há, porém, um segundo espaço ético que é preciso examinar: aquele que fala da relação do escritor com ele mesmo. E talvez aqui esteja a chave de tudo. Para Hilda, todo escritor escreve "movido por uma compulsão ética". Mas que compulsão? A de não pactuar. Entendia (seguindo o pensamento de Wilhelm Reich) que vivemos todos encobertos por uma couraça mental. Escrever é perfurar essa armadura, compromisso de que um escritor, se escreve para valer, não pode fugir. Em consequência, a literatura salta para fora do papel e se incorpora à existência. Em Hilda, as ficções deixam de ser parte do imaginário para se tornarem parte do real. Ciente disso, e muito aflita, ela admitia: "Você corre o risco de levar o leitor a um ponto do qual ele não retorna". Será justo? 
 
          Amparava-se, outras vezes, no pensamento de Oscar Wilde: "Todos nós estamos na sarjeta, mas alguns de nós olham para as estrelas". Contudo, terá o escritor o direito de obrigar seu leitor a erguer os olhos? Não será ele, a partir daí, o responsável (ética) por tudo aquilo que acontece com aquele que lê? Ética, ou culpa? Como fixar esse limite entre o escritor e seu leitor? Essa questão atordoou Hilda durante toda a sua vida. A partir do momento em que decidiu escrever contra o "bem escrito" e o "médio", porém, ela transformou a literatura numa espécie de explosivo. E, talvez sem perceber isso, resolveu seu próprio impasse. Foi esse mesmo explosivo que, disparado pela escrita de Joseph Conrad, fulminou minha aluna. Certamente isso a machucou. Mas será que também não a salvou?   
 
          A literatura está aí para agitar e para comover. A questão ética, então, é individual. É íntima. Cada leitor deve respeitar seus próprios limites. Deve respeitar a si mesmo _ e o escritor nada pode fazer a respeito. Cada leitor deve levantar-se e ir embora, ou simplesmente fechar o livro, quando não suporta mais ler. Por certo, isso não diz respeito aos escritores que escrevem para o mercado, ou, em uma fraude oposta, que escrevem só para o sucesso e a aprovação intelectual. É um dilema (triste constatação) que não interessa, portanto, à maioria dos escritores. 

          Mas aqueles que ousam cutucar o fogo das palavras e nelas queimar as próprias mãos não têm escapatória: estarão sempre atordoados por essa pergunta sem fim. Aqueles que, como dizia Hilda, incluindo a si mesma, "têm o mau hábito de pensar" já não têm de onde fugir. A literatura se torna, então, uma experiência de risco, na qual o leitor está inevitavelmente incluído. Não: o leitor não é um simples observador distante. Ele se queima no mesmo fogo. Também ele se engrandece e se ergue. E só por isso a literatura nos inspira e ilumina. 


José Castello 


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