Nietzsche escreveu sobre sua famosa teoria do eterno retorno em um parágrafo de “A Gaia Ciência” intitulado “O peso mais pesado”. Trata-se, no caso dessa doutrina de caráter amplamente psicológico, do peso do ressentimento, daquilo que não se pode esquecer. Do afeto que, denso e pesaroso, de algum modo é preciso carregar por toda a vida.
Cada pessoa tem alguma dor, ou talvez várias dores que são, no sentido do que a psicanálise chama de trauma, constitutivas de sua condição subjetiva. Mas o modo como cada um experimenta o que podemos chamar de ferida pessoal – como a ferida que Ivan Illitch no conto de Tolstói experimenta em silêncio e solitariamente – depende de muitos fatores. Verdade que o sofrimento não pode ser mensurado, porém, quando narrado por alguém, percebemos que o sofrimento assume intensidades diversas.
A intensidade do sofrimento é constantemente expressa pelo seu “peso”. Assim no texto de Nietzsche. Por isso, a pergunta implicada na doutrina do eterno retorno de Nietzsche, tal como exposta naquele parágrafo, diz respeito ao motivo de se carregar o peso que se carrega. Em outras palavras, está em jogo, na questão de Nietzsche, o motivo pelo qual um sofrimento não pode ser superado, por que há certo sofrimento que parece pesar mais. Ora, um sofrimento indelével é sempre um sofrimento muito poderoso. Seu poder vem de seu peso. O mais pesado de todos os pesos é um peso maior, quem sabe o mais valioso, o mais poderoso. Ao mesmo tempo, sendo “peso”, incomoda. por isso, é difícil carregá-lo. O que fazemos, então, com aquilo que nos pesa, já que ninguém deve querer, voluntariamente, carregar um peso? Justamente por isso, por ser difícil carregar o peso, é que cada um tende a jogá-lo em algum lugar. Podemos dizer que, no esforço de livrarmo-nos dele, tendemos a jogá-lo na direção de outro. Isso significa em termos “psicológicos”, projetá-lo na direção de outro.
Ao mesmo tempo, não é porque as coisas pesem que precisamos carregá-las, mas porque as carregamos é que elas nos pesam. Ora, o que pesa é o que não pode ser solto, o que não pode ser deixado para trás. Isso fica melhor compreendido quando Nietzsche em “Assim Falou Zaratustra” usa um morto como metáfora do peso que se carrega. O ressentimento, nesse caso, pode ser o sentir ininterrupto da dor que um dia se sentiu, é como o morto que Zaratustra tem às costas. Ele desapareceria se tivéssemos a capacidade de esquecer o que foi negativamente sentido e, a partir de então, aprendêssemos a aceitar o que nos aconteceu, o que sentimos, a não negar, portanto, o que sentimos. Isso seria o que Nietzsche chamou de “Amor Fati”, o “amor ao destino”. Amor, de algum modo, ao que se é, ao que se tem, ao que nos acontece. Esquecer, diante do ressentimento, seria uma espécie de virtude própria de quem vive o amor ao destino. Seria, no caso do confronto com o que se viveu em termos de peso, um ato de incentivo à leveza que se alcançaria com o amor. A leveza, contrária ao peso, seria, neste caso, uma força. Seria como deixar ir, como deixar passar.
A leveza seria o amor que se consegue deixando o ódio, peso morto, para trás. Alcançar essa condição parece, no entanto, uma verdadeira façanha psíquica. Quem conseguiria? Haveria um método para esquecer e, assim, poder, novamente, contra o peso do ressentimento, amar?
Amar o destino seria, antes de mais nada, um ato de desapego. Seria o ato de aceitação do peso das coisas, não de sua negação abstrata. Essa aceitação permitiria deixar as coisas no meio do caminho, abandoná-las a si mesmas e, por meio desse abandono (totalmente dialético), devolvê-las a si mesmas. À história, ao tempo, ao espaço. Neste caso, experimentaríamos o sofrimento, a dor, os afetos do amor – e também do ódio -, mas no momento em que se apresentariam como parte da vida e não como peso morto. Isso quer dizer que a doutrina do “Amor Fati” seria a doutrina da aceitação dos afetos. Quando seria evidente que não sentir é impossível, mas re-sentir pode ser melhor elaborado na direção de um afeto futuro, não ressentido. De um afeto aberto ao futuro.
O amor é esse afeto aberto ao futuro. O ódio é o afeto fechado para o futuro.
O “amor ao destino” implicaria abandonar o peso morto do ressentimento no meio do caminho. Seria, portanto, um ato que relativizaria o peso. Deixar o peso do passado ao passado seria como devolver-lhe, generosamente ao seu lugar, renovando, assim, o lugar do futuro.
Nietzsche usou o peso como uma metáfora negativa aplicada à afetividade. Mas como os óculos dialéticos melhoram nossa visão, devemos ver que peso e leveza são medidas de valor. Do mesmo modo como podemos dizer “peso pesado” ou “peso leve” para a força do lutador, do desportista profissional, o peso é sempre uma medida que implica o “maior” ou “menor”. Implica um valor maior ou menor e um peso – ou um preço – a ser pago quando se trata de alguma balança.
Em uma sociedade em que miséria e riqueza se confundem no mercado e na igreja, o poder do miserável está no sofrimento acumulado. O poder do opressor na produção desse peso. O mesmo que não permite que se mude o rumo da história. Sabemos que o maior ressentido é o dono do maior sofrimento, um sofrimento que ele pensa ser maior do que o dos outros quando visto de seu próprio ponto de vista. É o ressentimento que se expressa no discurso da vítima. Mas é também, e muito mais, o ressentimento que culpabiliza o outro por ser vítima. O ressentimento de quem é incapaz de ver o sentimento alheio, de fantasiar, pelo menos, o outro, de suspeitar de sua dor.
Maior ainda é o ressentido que administra o ressentimento alheio. O ressentimento do dono dos meios de produção do ressentimento. Os meios de comunicação, as igrejas, as empresas, os Estados, os regimes políticos e econômicos criam esse ressentimento criando o eterno retorno da dor.
Cada um, neste contexto, se torna, a seu modo, o mais poderoso dentre os miseráveis.
O ressentimento esconde o ódio e é a origem do fascismo que “pesa” sobre nossa cultura atual. No gesto de todo fascista – seja o homofóbico, o machista, o racista, o que defende a desigualdade de classes, ou a “natureza” superior de uns contra outros, no capitalista que diz que as coisas não podem ser diferentes – está o ressentimento, sinônimo de ódio, marca da impossibilidade de ir além de si mesmo, de produzir um mundo melhor para todos.
O ódio é fechado e triste, o mais pesado de todos os pesos. Ele é a base do fascismo.
O ressentimento é seu nome complexo. O seu contrário implica a amorosa e esbanjadora festa da liberdade na contramão do espírito de morte que é o espírito avarento do sistema econômico chamado capitalismo.
Que o ódio esteja chamando a atenção entre nós, gerando o cenário antipolítico que conhecemos, é um sinal de que podemos superá-lo. É sinal de que ainda existe amor como afeto amplamente político, como potência contra o ressentimento, contra o ódio requentado a cada dia, com seu miasma sempre pronto a sufocar qualquer um que esteja vivo.
A democracia é a luta amorosa contra esse fogo fraco e impotente que ameaça incendiar o mundo.
Contra o peso do ressentimento, menos ignorância: filosofia como aviso de incêndio.
Márcia Tiburi
Texto publicado originalmente na Revisa Cult
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